domingo, 7 de fevereiro de 2010

Tenho mais almas que uma


Gerhard Richter "Abstracto" 1992

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Ricardo Reis, in "Odes"

Festa campestre: o girassol, o gelo

Julian Artl passou uns tempos em minha casa. Era editor de uma revista de literatura que começava a receber boas críticas. Escreveu uma novela fragmentada e dois livros de contos. Nunca os publicou, só tinha um exemplar de cada uma das obras, com encadernações baratas. Apagou os ficheiros do computador. Nunca os tinha enviado por mail a ninguém, embora me tivesse lido vários contos e partes da novela ao telefone. Num domingo de chuva foi até à foz, estacionou o carro e atirou os três exemplares para o fundo do rio, na parte onde saíam uns esgotos e onde as taínhas saltavam e lutavam pelo seu pedaço de lodo – Como se fossem escritores – Disse-me ao telefone Artl – As taínhas pareciam escritores – Ri-me, não da frase em si, mas da sua voz, de quem tinha bebido muito. Falou-me sobre taínhas e literatura acidental. Imaginei as pastas de papel no fundo do rio. Alguns dos textos mais sinceros e completos que tinha lido, forravam o fundo do rio.
Enquanto tinha estado em minha casa, tinha por hábito, cozinhar gelatina ao fim da noite. Gelatina de morango com rum. Comia enquanto via um filme, não falava muito. Às vezes quando chegava a casa, via-o a cozinhar a gelatina artesanal. Comprava no supermercado, folhas de gelatina de marca branca, e com um marcador azul, usada para escrever nos cd’s, escrevia nas folhas de gelatina alguns contos completos. Um dia vi, seis folhas de gelatina que serviam de páginas a um conto. Li todo o conto. Artl estava no quarto de banho, não reparou que eu já tinha entrado. Toda a casa cheirava a haxixe e o espanta espíritos estava desalinhado. A panela estava cheia de água e de rum.


Percebi porque é que o meu dálmata estava doente. Artl dava-lhe gelatina de rum e morango enquanto eu estava a trabalhar. Nunca saía de casa, por mais que eu lhe dissesse, para ir ao parque, ao estádio, conhecer a cidade, ver igrejas e museus, Artl era licenciado em História de Arte.
O cão comia a gelatina feita com as folhas onde estavam alguns contos inéditos de Artl. Reparei no seu prato as bordas da cor do morango que ele lambia até à aflição. Imaginei, que Artl pusesse também xanax esmigalhado na gelatina ou uma ou outra droga legal que mandava vir pela net. Para o estômago do dálmata a mistura devia ser corrosiva. Tinta de marcador cozida na água, rum e muito açúcar. Reparei que o dálmata dormia na varanda de barriga para o ar. Parecia estar a ter um sonho erótico. Talvez de uma cadela spaniel. Imaginei também Artl a aparecer no sonho do meu cão, com uma taça de gelatina e a Spaniel excitada ao lado dele. Chamei-o várias vezes mas não acordou. Deixei-o dormir e liguei a televisão para ver o resumo das notícias do dia. Artl saiu do quarto de banho. Sentou-se à minha beira. Fiz de conta que não tinha visto o seu conto. Falamos um bocado. Depois disse-me que estava a fazer gelatina e foi à cozinha. Pôs o rum a cozer com as folhas onde estava o seu conto.

Alguns contos consegui salvar nos dias seguintes. Enquanto Artl dormia, descobri um por cima da sua mala. No total doze folhas escritas com uma letra perfeita. O conto falava de um homem que vai ver uma exposição de escultura clássica. As personagens, as estátuas do museu falavam entre si sobre o visitante, que era uma atracção. Falavam dos seus calções, do seu penteado. Como se o museu fosse móvel e fosse todas as pessoas que entram e saem. Um museu vivo e único, sempre aleatório de gente que entra e sai. Trouxe-o para a beira do computador e transcrevi-o. No fim havia um pequeno aforismo sobre a perenidade do suporte.
Art foi embora três dias depois. Ao contrário daquilo que pensava, a saída de Artl foi para o meu cão, indiferente, como se ele nunca tivesse entrado. A sua passagem na literatura foi feita do mesmo modo, como se nunca tivesse escrito.
Transcrevi de uma folha de gelatina “Três caras no gelo”. Nunca mais tive notícias suas

Três caras no gelo
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Ao lado da sepultura de Adriano há um ringue de gelo, um castelo e um homem estátua. Há também uma ponte com muitos anjos, um anjo de bronze no cimo do castelo, e um marroquino que vende guarda-chuvas. No ringue de gelo está uma rapariga sozinha a patinar, como que por missão, repete-se (como que por missão) a rapariga parece a rapariga mais triste do mundo, mas cumpre a sua missão, patinar, ser triste, estar neste conto.
A rapariga patina e escreve um poema no gelo, que não aparece porque no gelo já há muitas riscas, tal como em muitos braços e na alma de muitas patinadoras solitárias. Há muitos riscos que se fazem, e sobretudo, os riscos não se podem apagar, aconselhou-me, um anjo, um verdadeiro anjo, que para apagar um risco, se tem que desenhar um novo risco por cima, seja na memória, nos braços, numa conversa, em toda a história da humanidade: Nada se apaga, tudo se constrói/escreve/ relaciona por cima. E há vários riscos e os riscos de baixo, que não cicatrizam, na (memória, nos braços na parede) vão perdendo em força, porque há informação nova que se sobrepôs. Amanhã vou fazer uma tatuagem, a imagem de uma rapariga que levanta voo agarrada a uns balões; Foi desenhada por Banksy nos muros da Palestina. Pedi na loja das tatuagens que ocupasse toda a parte de cima do braço direito.


Patinei durante a tarde toda, mais uma vez ele não ligou, ninguém passava ao lado do castelo, patinava sozinha, só um homem de chapéu estranho me olhava; Parecia a pessoa mais sozinha do planeta, tirava apontamentos, consigo ver sem os olhos, consigo patinar no gelo, e sentir o meu sexo quente, enquanto tenho uma visão de cima do castelo, do outro lado da ponte, vejo pelos olhos do que tira apontamentos, vejo o seu caderno quadriculado cheio de escrita nervosa e rascunhado. Vejo como se estivesse no Google Word, no topo de um satélite, o homem estátua, os que olham o homem estátua, aquele indiano que o aguarda à entrada da ponte, porque sabe que ele vai passar ali e está a chover, e provavelmente vai comprar um guarda-chuvas, e isso dá-me riso. Escrevi um poema no gelo, metia as palavras “girassol”, “Perenidade” e "meta-gelo" – Tudo me dá vontade de rir. Várias coisas ficaram por dizer, debaixo do gelo há um girassol.

Só me falta vender um guarda-chuva, aquele é americano, tem dinheiro, vou-lhe vender um guarda-chuva, sei por Alá, e depois vou para casa. Está frio. Está frio fodasse.

Julian Artl

Nuno Brito

Ode ao gato


Gerhard Richter "Abstracto" 1992



Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.

José Jorge Letria, in "Animália Odes aos Bichos"