sábado, 7 de julho de 2012

nirvana




abro-me  como as corolas
com o perfume imediato das manhãs
sempre na direcção da luz.
surge primeiro o sol com um pensamento nas mãos
nas palmas abertas, nos dedos despertos
nos olhos lampião na cor do ébano.
as estrelas cintilantes dão lugar ao esquecimento da noite
recuperam a memória do sonho, a sua lucidez
e anoto a existência de cristais transparentes em julho
orvalhos decrescentes até à absorção das gotas
até á limpidez das folhas, até ao imenso poder do silêncio
que se instala  neste acordar na natureza, no profundo campo
e separa o espaço,  desde a superfície da terra, pelos troncos enrugados
até ao  verde das árvores –

essa é também  a condição humana
nascer, crescer, permanecer, e mudar de roupa conforme as rotações
as estações, escutar a voz dos pássaros e a paz sem som
renascer, traçar linhas e rumos em direcção ao azul
a direito ou obliquamente, a noventa graus, caminhando nos dois sentidos
a norte e a sul, a este e a oeste, na clareza do ar e no manto das raízes –

somos tão complexos como a primeira célula, como a nebulosa
como a atmosfera que esconde moléculas, somos e não somos
como a inversão da direcção dos ventos, como um desenho semipintado
um ser e ainda não ser, em movimento, na dinâmica dos tecidos, orgânicos
de alimentos e sinergias, faíscas
um ser em construção, de incompletudes, em formação, de amálgama
no almofariz da química humana, nós e os outros –

mas somos nós, somos únicos
tu,  com os teus olhos âncora, com o cimo das estrelas e os dedos
as polpas de seda, a deslizarem como  barcos na imensidão das costas
 rodeando os obstáculos, das vértebras até ao cerebelo
como se fossem rochas salientes entre as margens de um rio –

eu,  como uma criança, pedindo-te  que sejas a mulher, a essência
que ponhas a mão na minha cabeça
e entregando-te  a concha do corpo, o lume descomposto do rosto
num sorriso luminoso, explosivo, deixando fluir a cor dos afectos
em cada gesto
enquanto te seguro o rosto, enquanto me apoio no teu ombro
e enquanto nos tornamos lisos, esmagando toda a densidade do ar
todas as montanhas, sem precipícios, unidos, como um nirvana -

josé ferreira 7 julho 2012



Leda e o Cisne

Súbito golpe: as grandes asas a bater
Sobre a virgem que oscila, a coxa acariciada
Por negros pés, a nuca, um bico a vem reter;
O peito inane sobre o peito, ei-la apresada.

Dedos incertos de terror, como empurrar
Das coxas bambas o emplumado resplendor?
Pode o corpo, sob esse impulso de brancor,
O coração estranho não sentir pulsar?

Um tremor nos quadris engendra incontinenti
A muralha destruída, o teto, a torre a arder
E Agamêmnon, o morto.

Capturada assim,
E pelo bruto sangue do ar sujeita, enfim
Ela assumiu-lhe a ciência junto com o poder,
Antes que a abandonasse o bico indiferente?
 
William Butler Yeats

(trad. de Paulo Vizioli)