domingo, 14 de junho de 2009

Dedicatória a um amigo

Não queria o telefonema, o encontro.
Alguns minutos, como amigo.
Impossível recusar.

Sabia que a dor seria mútua
no previsto problema
adivinhava as paredes desfeitas
os estilhaços, as ruínas;
ninguém gosta das partes más
o inverter de horizontes
a gravidade ao contrário
que afoga na queda dos mares
e projecta a alma nua de agulhas
nas pontas das estrelas
quando se perdem as luas.

As verdades já não eram.
Um abraço
forte, apertado, sentido.

Falei dos jogos de ténis, das férias em Ibiza
das noites no fim das praias
do "rouge" das queimaduras
mas não querias, não era esse o motivo.
Disseste: "Senta-te como amigo."

Tentei de novo, tinha receio do fungo
o cogumelo anelar que crescia, colocava
a cabeça perto de nuvens densas.

Falei da origem de uma viagem a Elvas,
os comícios políticos, o comboio, outros amigos.
Tu nervoso, um sorriso ténue, por fim
o grito:"Não digas nada! Ouve-me!
Por um instante! Como amigo!"

Eu sabia
eu e a tua barba de três dias
por isso falava de um resto de outras vigas
férreos alicerces onde tinhamos nascido:
o mesmo bairro, a bola de trapos
o jogo da casquinha, as caricas
das águas do Cruzeiro (mais estáveis
nas curvas devido aos vazios.
Os sumos Cristalina, as gasosas
os bailes de aldeia, as fugas
nas cavas rochas,abrigos de pastores
e do calor, o calor imenso das lareiras
dos caldeirões de pernas metálicas, pretas.

Tu: "Como amigo!"

Pedi um Whiskie, baixei os olhos
na dança das pedras frias. Ouvi.

"Sabes a Isabel, o Matias, a Maria...
...comigo!"

E por aí fora, não era uma história nova
durava, parava, retorcia, aviltava
aqui um pouco mais de sal, ali escura
ou clara na expressão de um facto
o excesso de pimenta. Uma hora. Ouvi.
Como amigo. O balão esvaziava no rodopio
até ao nível de uma lágrima.

Silêncio. Silêncio. Silêncio.

As minhas palavras : "Tem calma!"

Nascia em mim outro desejo
um outro universo que consumia
emergente, a vontade, a mão no ombro
e o retorno aos anteriores lugares
não das derrotas modernas que doíam
mas sim das vitórias antigas
e das outras que viriam.

"Tem calma! Se hoje há chuva amanhã é dia!"

Não havia mais pedras na roda do copo.
Cessa o frio.Disseste:
"Sabes é bom ter um amigo!"

À memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão -
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida - esta boémia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo...
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
- Autênticos patifes bem falantes...
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver -
Sem estímulo, sem fé, sem convicção...
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar -
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!



António Botto
Poema de Cinza
As Canções de António Botto
Editorial Presença
1999