domingo, 31 de outubro de 2010

um café com o tempo

Vi-o espalhar-se pelos outros, por dentro de tudo, tudo que se movesse lhe servia e ele lambia. só há tempo se houver movimento e quando me chegou escorria pelas fendas certas e outras que abro só para ver quem entra. veio assim, em liquido vermelho polvilhado de azul, direito ao colo, onde nada se endireita pela curvatura que o alimenta. não tentou nada antes. se tivesse arriscado os olhos, mãos ou qualquer música horizontal com pescoço de tango eu tinha travado. um poço de líquido azul no colo e o ranger do embalo de um balde. enquanto me explicava a minha explicação ria-se muito e é sempre verde e verdade, sem saltos altos e sem algas nos olhos. a explicação era de pó verde tira-nódoas e depois de usada ninguém via a mancha da saia e pude sair, com muito pó nas fendas, para tomar um café com o tempo.


Quando entrei no café as cadeiras desenvolveram uma velocidade incómoda de sentido contrário à história e isso era tão real como o poço. não caibo continuamente. sentia-o por fora, a travagem à procura das linhas e o deslizar por dentro. o espaço de travagem à volta do meu corpo. em alguma das cadeiras mais lentas percebi que seria apenas eu a dançar, sozinha num lago vermelho de pó azul, que afinal não tinha entrado pelas fendas, mas saído lentamente do centro de mim. queria trocar de pernas, mostrar que a dança é só uma, com uma perna e milhões de braços em todas as direcções mas a minha explicação era verde e o tempo comia milhares de bailarinos em jejum à medida que empurravam os ponteiros.


E então dancei no meio do lago e fechei as luzes da margem. deixei o tempo observar-me. não estava mais ninguém no café, escolhemos um em que o movimento das cadeiras não perturbasse o lago. estava escuro e havia relógios parados que boiavam à minha volta. e senti faróis negros ao longe e já não sabia se tinham prazer em observar-me ou se registavam apenas. mas como ando cansada de ver os bichos a dançar sozinhos fechei os olhos enquanto o fazia. ouvi-o dizer, eu leio.


No dia seguinte, ou anterior, havia bocados de tempo, alguns meus, colados em folhas de um jornal. os faróis eram afinal lentes com a abertura temporal de exacta solidão. as imagens não sabiam parar e ele ria-se baixinho para o outro lado do universo. ângulos onde me via mas não eram meus e às vezes parecia que eram. e alguém na margem parecia dar-me corda. os ângulos eram de todos para todos e olhavam-se por infinitos. retalhos de bichos publicados, ainda vivos, e a forma como se causavam- jactos de luz rápida que me rebentaram as fendas e me iluminaram o corpo por dentro. nunca tinha vista o meu corpo por dentro. fechei o jornal.


Só voltei a encontrar o tempo em espaço público com granadas no bolso a correr numa circunferência de mínima possibilidade. estava disfarçado de outro líquido qualquer, talvez amarelo clean, mas a suspensão denunciava-o. tinha as mesmas lentes, reparei nas lentes e como fotografava outro movimento qualquer, entrado pelo pescoço em tango e saído noutro estado, talvez inter-ligado e afastei-me devagar. talvez pudesse passar-lhe ao lado, dar passos sem tempo. abri novamente o jornal. bocados de danças lambidas aos outros, feridas de caras esmagadas no papel e linhas sempre lógicas, sem umas não havia as outras e os novelos voavam ao plano de uma melodia horizontal. reparei que as linhas tinham sido sugadas com carinho para não partirem e imaginei o medo no tempo. que talvez não saiba que está espalhado por todo o espaço. pensei em dizer-lhe que não deixe parar o movimento do universo apesar da forma se ri dele. riu-se. só pode haver tempo se souber rir.


A terceira vez que o vi estava nervoso, a enrolar freneticamente a gravidade, e ouvi dizer que era preciso agarra-lo. cidades inteiras giravam-lhe à volta e as árvores ultrapassavam-nas em emergência de um velho saber. eu caminhava devagar na circunferência, desta vez sem granadas. começava então a perceber que o tempo é mais branco e o medo que o contínuo nos pode fazer. era preciso um referencial e até o meu espelho servia. como se organiza uma circunferência, e eu repetia, repetia sem centro. mais uma vez os bancos do jardim não se decidiam e eu percebia a necessária imprecisão do espaço quando o encontro. as árvores pararam, envergonhadas ao longe, e só nós em pico de energia de uma superfície subitamente alisada. numa cadeira uma pedra tentava o movimento e na outra magma doce directamente do centro a perguntar-me, tens frio? não tinha frio, estava só a transformar-me em pedra. teria sido convidada para assistir ao colapso de um buraco - nos buracos fecho os olhos para descansar, não são tristes são só negros dizia-me - teria o buraco rodado demasiado ou seria ainda só o velho poço - estava dentro do horizonte, não podia ficar sentada - isto é urgente, tens que inverter a seta, fazer voltar todo o magma para dentro do vulcão até um único ponto - perguntava-me se sabia que a probabilidade de eu não estar ali existia e ria-se. o riso do tempo é um passar de mão pelo pêlo da humanidade. despacha-te, dizia-lhe, e o magma ia derretendo a pedra que só tinha solidificada nas fendas. e eu corria e contava e contei tanto e corri tanto contra os ponteiros que julguei que o tempo fosse parar - no balde subiu só uma lágrima. perguntou-me: será que só se sai do horizonte quando se sabe amar o tempo?


nada mudou na janela acesa. nem as borboletas


Marc Chagall " a mulher e as rosas"


a folha em branco e uma chuva intensa.
tento escrever o poema como quem faz arqueologia;
calças de bolsos largos e bloco de notas moleskine
no meio dos sinais, dos labirintos
indiferente ao deserto, envolto de areias fluidas –

as palavras chegam na incerteza de um rosto indefinido
cobertas de pó como um cacho de uvas, uma a uma –

junto-as nas suas teias de polifonia e escrevo
sobre as memórias escondidas e súbitas
sobre o mar e sobre os rios, sobre os livros
sobre o calor e sobre o frio
sobre as ausências e a dualidade dos caminhos
colocando de um lado o cálice bordado de pratas
e do outro o vidro frágil de uma loja dos trezentos –

as palavras no altar sagrado rodeadas de pecados
numa rua escura de prédios altos, na cidade
junto-as em bando na primeira linha e escrevo
sobre a seringa e o copo de whiskie
de cabeça ao lado por cada um dos motivos
como queimaduras de um inferno
que provocam o grito, o sentido da dor
e um vago inconsciente alívio –

escrevo essencialmente por sobre a tua pele
como se fora um papiro de humana característica
em que as palavras vivas, dinâmicas e líquidas
entrem como lava ardente e sejam companhia –

e enrolo-me e enrolas-te pela noite dentro.
suicido-me pelas vastas madrugadas e pelos dias
tão longe dos alegres juncos
tão próximo de um caminho de ciprestes
quando se afasta aquele canto de flauta
e se arrasta uma nebulosa incorpórea
que transporta o fumo e a cinza do inverno –

nada mudou na janela acesa. nem as borboletas
soltas, epidérmicas e tímidas -