Margarida Cepeda
escrevo-te esta carta para que a guardes
sobre o teu colo, de pernas esticadas, olhando o mar
o infinito das ondas, o seu brilho num dia de sol
quando se espera a cor laranja ou o rosa de um crepúsculo
o adormecer diurno, sem
vento nem saliências, brando.
vou-te contar, começa assim:
começo pelo desejo, pelo que anda mais perto:
o estar de mãos dadas na nossa cidade, a cidade que tem
barcos
a cidade que tem jardins imensos, de tílias e plátanos
que tem riachos a correr escondidos e braços inatendidos e
suaves
que tem metros velozes, várias linhas e muitos caminhos
nem sempre direitos, de algumas curvas mas de muita alma –
a cidade, a nossa cidade, granitos e basaltos
muros e ruas de muitos carros, e um desejo
a nossa cidade, de mãos dadas–
sopram as mesmas brisas de outros dias, não é o dia
diferente.
como sempre, escuto o
teu rosto mesmo que longe
mesmo que pousado num outro lugar
e há tempo, muito tempo, para tornar a nascer
para ver o mar –
resumo da forma mais simples o correr dos segundos, o estreitar
de um abraço
que passa pela proximidade, que passa pelas cartas e que passa pelos poemas;
a sua forma inaudita,
a forma inaudita como chegam,
como uma corrida de borboletas, persistentes, em todos os momentos –
chegam na vontade dos anjos
como a seta suave e a gota mais límpida;
o belo lugar onde se dirige
o lugar onde
adormeces, o lugar onde estás adormecida –
não me pertencem as palavras. recebe-as puras como uma flor
que desponta
uma seiva persistente, uma corrida de fotossíntese
um tudo junto, a completude de um mundo, junto –
na ausência desses olhos, dessas mãos, desses braços, desses
dedos
sem a caligrafia azul
da tinta
seria difícil que as palavras subissem a escada, os degraus
de tábuas
a escada de degraus pendurada no ar em direcção à atmosfera
o lugar das estrelas –
seria difícil, e não seria eu este cantor das ruas, este ser
impressionado
este ser de folhas e folhas e folhas, de poemas intensos
e um fluxo contínuo, um fluxo contínuo, um fluxo contínuo –
se não fosse esse teu modo, esse teu afago, esse teu sonho
este meu sonho, seria impossível
e não seria o poeta das noites perdidas
seria apenas um outono monótono, uma
árvore só de braços
sem as folhas e sem milhares de palavras
assinadas com a pele, com afectos, com cordas e teclas
nesta música de existência, como o mundo, como o magma e como
a lua –
desculpa, por vezes tenho que deixar cair a caneta para que repousem
as letras
são muitas, correm sem
nunca se sentarem, correm na força de um braço distante
que me agarra os pulsos e levanta, mas não quero que te canses
não quero que te canses, e deixo cair a caneta.
com as duas mãos tapo a boca
e indico-lhes um trajecto de veias na direcção das
prateleiras
a biblioteca do pensamento
para que repousem, para que não te cansem, e para que não as
esqueça –
sabes, a lua é clara e as pálpebras estão pesadas, não
sossegam.
mesmo fechadas, continuam a surgir quadros, aguarelas
o aconchego de um ninho, um suave sussurro nos ouvidos
ecos em todos os
quartos, os quartos da lua
que podem ser as minhas mãos, as duas, segurando as faces
o teu rosto redondo, os teus olhos de ninfa, abrindo e fechando janelas
como se, uma serenata de rua, como se, um boomerang das
alturas –
um boomerang que lança perfume
uma iluminação nas ondas, uma claridade nas espumas -
e espero que sorrias, que sorrias agora, espero que sorrias,sempre -
espero
ouvir os teus olhos e o levantar dos lábios
os olhos e a boca, a brancura dos dentes
como janelas num palácio de Julieta
que se fecham e que se abrem –
sabes, não quero que te canses, calo-me.
fecho esta metade de conchas para que sejas a descoberta
a pérola mais profunda, a maior de todas as luas, a
magnífica, a dupla
e quero que adormeças
tranquila, calma, sempre, e no maior sossego –
hoje tenho uma lágrima no rosto, cai de forma muito lenta
não devia dizê-lo, desculpa -
e queria fazer-te festas no cabelo –