quinta-feira, 10 de maio de 2012

esta carta que te escrevo ( XVIII )


                                    Margarida Cepeda


escrevo-te esta carta para que a guardes
sobre o teu colo, de pernas esticadas, olhando o mar
o infinito das ondas, o seu brilho num dia de sol
quando se espera a cor laranja ou o rosa de um crepúsculo
o adormecer  diurno, sem vento nem saliências, brando.
vou-te contar, começa assim:

começo pelo desejo, pelo que anda mais perto:
o estar de mãos dadas na nossa cidade, a cidade que tem barcos
a cidade que tem jardins imensos, de tílias e plátanos
que tem riachos a correr escondidos e braços inatendidos e suaves
que tem metros velozes, várias linhas e muitos caminhos
nem sempre direitos, de algumas curvas mas de muita alma –

a cidade, a nossa cidade, granitos e basaltos
muros e ruas de muitos carros,  e um desejo
a nossa cidade, de mãos dadas–

sopram as mesmas brisas de outros dias, não é o dia diferente.
como sempre,  escuto o teu rosto mesmo que longe
mesmo que pousado num outro lugar
e há tempo, muito tempo, para tornar a nascer
para ver o mar –

resumo da forma mais simples o correr dos segundos, o estreitar de um abraço
que passa pela proximidade, que passa pelas cartas e que passa  pelos poemas;
 a sua forma inaudita, a forma inaudita como chegam,
como uma corrida de borboletas,  persistentes, em todos os momentos –

 ofereço-te os poemas,  ofereço-te os poemas, cuida deles, não me pertencem.

chegam na vontade dos anjos
como a seta suave e a gota mais límpida;
o belo lugar onde se dirige
o lugar onde adormeces, o lugar onde estás adormecida –

não me pertencem as palavras. recebe-as puras como uma flor que desponta
uma seiva persistente, uma corrida de fotossíntese
um tudo junto, a completude de um mundo, junto –

na ausência desses olhos, dessas mãos, desses braços, desses dedos
sem a caligrafia azul  da tinta
seria difícil que as palavras subissem a escada, os degraus de tábuas
a escada de degraus pendurada no ar em direcção à atmosfera
o lugar das estrelas –

seria difícil, e não seria eu este cantor das ruas, este ser impressionado
este ser de folhas e folhas e folhas, de poemas intensos
e um fluxo contínuo, um fluxo contínuo, um fluxo contínuo –

se não fosse esse teu modo, esse teu afago, esse teu sonho
este meu sonho, seria impossível
e não seria o poeta das noites perdidas
seria apenas um outono monótono, uma árvore só de braços
sem as folhas e sem milhares de palavras
assinadas com a pele, com afectos, com cordas e teclas
nesta música de existência, como o mundo, como o magma e como a lua –

desculpa, por vezes tenho que deixar cair a caneta para que repousem as letras
são muitas,  correm sem nunca se sentarem, correm na força de um braço distante
que me agarra os pulsos e levanta,  mas não quero que te canses
não quero que te canses, e deixo cair a caneta.
com as duas mãos tapo a boca
e indico-lhes um trajecto de veias na direcção das prateleiras
a biblioteca do pensamento
para que repousem, para que não te cansem, e para que não as esqueça –

sabes, a lua é clara e as pálpebras estão pesadas, não sossegam.
mesmo fechadas, continuam a surgir quadros, aguarelas
o aconchego de um ninho, um suave sussurro nos ouvidos
 ecos em todos os quartos, os quartos da lua
que podem ser as minhas mãos, as duas, segurando as faces
o teu rosto redondo, os teus olhos de ninfa, abrindo e fechando janelas
como se, uma serenata de rua, como se, um boomerang das alturas –

um boomerang que lança perfume
uma iluminação nas ondas, uma claridade nas espumas -


e espero que sorrias, que sorrias agora, espero que sorrias,sempre -

espero ouvir os teus olhos e o levantar dos lábios
os olhos e a boca, a brancura dos dentes
como janelas num palácio de Julieta
que se fecham e que se abrem –

sabes, não quero que te canses,  calo-me.
fecho esta metade de conchas para que sejas a descoberta
a pérola mais profunda, a maior de todas as luas, a magnífica, a dupla
e quero que adormeças
tranquila, calma, sempre, e no maior sossego –

hoje tenho uma lágrima no rosto, cai de forma muito lenta
não devia dizê-lo, desculpa -

e queria fazer-te festas no cabelo –