quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A carta da corcunda para o serralheiro - por Maria José : heterónimo feminino de Fernando Pessoa

Maria José

"Senhor António:
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O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.

O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.

O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.

Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.

Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
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Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.

Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.

Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.

Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
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Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
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Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.

Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.

Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.

(...)

- e enfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta?
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O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.

O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm batizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.

Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.

A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém conosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.

O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
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Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.

Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.

Aí tem e estou a chorar."

Amendoins

Não sou capaz, bem tento que ele venha,
o tal olhar diagonal das coisas,
mas as pessoas surgem-me tão sérias,
tão capazes nos seus discernimentos .

À minha frente agora, por exemplo,
um grupo com cerveja e amendoins.
Se fosse um tempo antes, conseguia
fazer de amendoins um qualquer tema,

descascar um poema devagar
feito de amendoins, cerveja e gente.
Mas tudo me parece tão normal
e os amendoins coisas sensatas

[apanhados do prato vorazmente,
entre gestos nervosos e correntes
conversas baloiçadas]


Ana Luisa Amaral

Há palavras que nos beijam



Poema de Alexandre O’Neill, interpretado por Mariza

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas Inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

O mar no seu lugar por um relâmpago

Quem pôs o mar no seu lugar?
Gostava de ter sido eu por instantes.
Brincar a Deus.
Pôr cada coisa em seu lugar.
Num relâmpago criar vida, luz, mar, terra e estrelas.
O mar.
O mar é tudo.
O princípio.
Essa casa abrigo que nos abraça e empurra em cada onda
num ir e vir de força
O relâmpago.
Luz que rasga o céu em energia de cor.
A vida em gotas de água.
A vida em ondas de sal.
Luz. Luz. Luz.
O lugar certo das coisas.
O lugar incerto das coisas.
O meu lugar é aqui.
Junto ao mar.
Contigo.

O mar no seu lugar por um relâmpago

Um relâmpago.
Surge a luz.
A vida ressurge numa estrela.
As estrelas escondem segredos que me contas ao ouvido com a tua luz.
O meio ser do meu ser.
Os outros que me completam.
O lugar incerto da vida.
Em todo o lado a vida.
Como um mar que nos rodeia.
O lugar da nossa alma talvez seja o mar.
Um buraco negro cheio de cor.
A caixa dos mistérios da vida.
O pequeno lugar das coisas simples que guardam as nossas chaves.
O mar no seu lugar por um relâmpago.
O amor no seu lugar por um relâmpago.
O nosso lugar em nós.

O mar no seu lugar por um relâmpago

Hoje não há trovões.
Só relâmpago.
Só a tua luz sem a tua voz.
O mar no seu lugar.
Calmo e sereno.
A maresia indiscreta dos teus sentidos.
As ondas do teu cabelo.
O meu lugar em ti.
As caves perdidas dos nossos pensamentos
Como velhos porões de um navio afundado.
Perdidos no fundo do mar das nossas memórias.
O brilho das nossas histórias
em relâmpagos de memória que nos abraça em encontros.
Luzes, luzes, luzes
Os nossos lugares.
Os amigos, portos de vida.
Âncoras macias e firmes.
O abraço do mar.
O mar em nós.
Os nossos mares.
Os lugares do nosso afecto.
Somos quase só água.

O mar no seu lugar por um relâmpago

A calma madrugada
onde as rotinas não existem
o nada é tudo
o sono, o sonho e os abraços
os laços
o amadurecer do silêncio na noite
o lugar do abraço
o relâmpago sonoro da dor
o mar, guardião de contos, aventuras e heróis
o lugar das fadas, das sereias e dos tesouros perdidos de piratas
guardo o mar no meu lugar interior
os meus lugares de calma
tu és o mar nos dias quentes
relâmpagos em mim que se moldam em cor
a energia em abraços
tudo o que não sabemos no mar
o mar em nós
a vida em pequenas partículas
quase invisíveis
grandes como nós

O abismo e o sublime

"Wanderer"
Kaspar David Friedrich, 1774-1840


"o mar,
no seu lugar, pôr um relâmpago."

Luís Miguel Nava, 1957-1995