quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Receita de Ano Novo




Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade
(Poema retirado do excelente blog Imaginário Poético de Daniela Paulinelli)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Seres




não sabia a cor do teu mar.
encontrei sedas como um cego.
sobressaía a lisura que era a tua.
a impressão digital no tamanho dos dedos
tocados de tão leve que mesmo não tocados
soavam harpas e sons doces, sábios. éramos
cegos e internos como náufragos de uma branca tempestade.
unos e abstractos de todos os outros lugares.

não sabia a altura das tuas ondas.
encontrei um desenho de gaivota na forma dos teus lábios
como um cego,
e um sabor a mel de madressilva de mãos em arco
os pés juntinhos.
as gaivotas dos desenhos encontraram as minhas
em alquimia. um bater de asas em sintonia
e um sentido vibrante entre a lua reflectida
e as ondas que ora próximas ora recolhidas
eram tão altas e eu não sabia.

não sabia das boas lágrimas de sal, da maresia
dissolvido ao som dos búzios
como um cego
na hipérbole de um céu
e ser por um segundo deus
e seres -
e ser... e seres...

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

2010 oxigénio na terra


Salvador Dali "céu hiparxiológico" 1960

O champanhe para este ano é de Lamego
sem escadas nem rosário.
As passas mais doces são coríntias
num prato de palmas e aleluias.
Os desejos? Os desejos são sempre muitos
os segredos não denunciados dentro de brilhos
os paraísos de lagoas sem penumbras
e pássaros de fogo.

Uma década e um desejo colectivo.
Para todo o universo como um perfume
que oscile o rosto, eleve na cor da nuvem.
Nem todas as premonições na atmosfera
no planisfério: não há este inverno
máquinas tecnológicas no deserto
nem insectos de chapa, nevoeiro de naves
ventoinhas no caminho de luas
criaturas verdes nos céus de Marte.

Um desejo colectivo: mais oxigénio.

Uma década. A próxima é um mistério;
um oceano de gente esperta
com pés de gelatina na transparência de anémonas?
Ou antes ninfas e ninfos com asas de borboletas
saboreando chá de rosas num campo de violetas?

A década precisa mais oxigénio.
Uma vida menos presa nos fios da aranha.
Cada ser deve ter o seu peso. A balança
deve ser subtil, subtil e leve como o vento
com braços de essência. Invisível.
Sem que ninguém saiba
no meio dos lábios sentirá a alma
E quanto mais leve, mais leve a alma
maior o tempo.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

O silêncio e as palavras não ditas


Amadeu de Sousa Cardoso "Entrada" 1917


O silêncio na presença é dor.
As mãos pousam no regaço ou brincam
nos fios dos dedos, no entrelaço de uma folha
de cabelo, na dobra de ramos cruzados,nos joelhos.
Invisível de futuro nas asas de um ar fresco ou quente
O silêncio guarda as palavras, espera o dique
o soltar das águas, a imparável ou lenta torrente.
O lugar é de íris e breves momentos. Adivinhar,
não ler tudo no descer de pálpebras, húmidas.
Não saber o quanto no brilho reflectido e longuílineo.
Por vezes o olhar resguarda o chão
descansa a intensidade e pausa as chamas, o fogo, a lava
e pára. Pára naquele sinal – a dúvida imaterial. O medo.
O medo é mau, é fraco, descai.
A falta de um clima impede o passo natural. Sofre.
Uma planície afunda, dissolve, destrói
adensa a montanha, prolonga e inclina.

No silêncio se escrevem versos na presença.
Folhas de seda interditas, que não são ditas.
Sentidas.
Melhor deixá-las ir, não dar guarida.
Nos dias de inverno, de flocos a neve gela
corta, fere, esfria, explode a alma de tão fria.
Na dúvida do que podia ter sido, no medo
na ausência, causa dano irreversível.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Aquela nuvem




Aquela nuvem

Parece um cavalo...

Ah! Se eu pudesse montá-lo!

Aquela?

Mas já não é um cavalo,

É uma barca à vela.

Não faz mal.

Queria embarcar nela.

Aquela?

Mas já não é um navio,

É uma torre amarela

A vogar no frio

Onde encerraram uma donzela.

Não faz mal.

Quero ter asas

Para a espreitar da janela.

Vá, lancem-me no mar

Donde voam as nuvens

Para ir numa delas

Tomar mil formas

Com sabor a sal

- Labirinto de sombras e de cisnes

No céu de água-sol-vento-luz concreto e irreal...

José Gomes Ferreira, Poesia IV

Desafios

I
Soubesse eu desenhar em versos tantos
Versos em linha, em cruz e circulares
Sem ponto pé-de-flor, triangulares.
E é no ponto cruz, de vida
Que se pintam palavras brancas
De um branco sujo? que abuso.

E refaço esse branco em mais desuso.

II
Corro o mundo nos teus olhos, meu amor.
Parado estou aqui, neste lugar
De onde alcanço todo o universo.

Em verso me parece que cheguei
Atrasada.

Como pão-de-ló da avó
De chancas nos ovos do meu avô
Gemas e claras yô-yô
Em bolos e açúcares do que sou.

III
Levo socos em chávenas de chá
Para a terra do lado de lá.
Buscar-te do outro lado do mar.

Não quero ouvir-te em concha
Não ouço assim o teu eco e só me perco
Em harpas e sons meros dissonantes.

IV
No jardim o cipreste que secou
Tinha atado um balão azul
E cordas brancas no ar de Zepellin.
Subo na sua sombra desmaiada.
Sinto a tua luz a embriagar-me
E fico nessa sombra que me dói.
Que me doendo fica mais sombra
À roda duma perna que me tomba.

V
Mas que mania, esta dos decassílabos
Um muro breve só de dez pedras.

Corro a subir, a ver se toco.
Mas longa é a distância aonde moras.

Amoras me adocicam as esperas
Tornam mais leves as esporas.

A dor ficou aqui. Eu já não estou
De sabrinas a subir ao alto céu.

VI
Solta-se um branco som surucucu.
Será susto ou chama de fundo azul?

Uma borboleta perde as asas.
Naufragam em versos de águas rasas.

Lisa porta em que não comeste
O pão seco e duro
Seco o Eufrates – muito mais que o Tejo

Ana Luísa, Clara, Ana Janeiro,Inês,Joana, Elza, José Almeida, José Ferreira


P.S. Estes versos foram escritos no desafio de apenas se conhecer o verso anterior. Sendo assim quem terminou desconhecia em absoluto a forma como tinha começado o poema.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Bom Natal a todos os que por aqui escreveram.

Passava numa livraria, e espreitei a "lista" de poetas que tinha a Antologia, Poemas Portugueses... Fiquei contente por encontrar na "lista", Ana Luísa, fiquei muito contente, gosto dos teus poemas!

E deixo um escrito por estar sempre a lembrar-me que está longe Alguém, enquanto não nos encontramos.

Que dentro de mim varrendo
tão levezinho
deve ser o movimento
rimos sem risos
nem ocorria pensar

do outro lado o mesmo
imediato crer, querer a meu lado, e sei
sabe, a quem perguntar perguntamos
que diferença entre nada e tudo

não esqueço nada é que no tempo, troca
maldição que é bênção
por causa de um pormenor nós que não amarram
melhor, eu e ele, nós!

Boas festas


Magritte "A grande mesa" 1962

Caras amigas/amigos


Deixem que fale um pouco . Que abra um pouco mais a alma para explicar como é bom haver Natal e recomeçar um Novo Ano.

Quando chega esta época não resisto a recuar a uma soleira de porta onde desde míudo era enviado após o desespero de mãe no lugar das fábulas de doces (os alguidares de masssas a levedar, o contínuo rodar de colher de pau no leite creme, os fios finos da aletria, o arroz mais saboroso, as rodelas de pão seco na seiva branca antes das rabanadas). Colocavam-me nas mãos uns pratinhos de porcelana branca e risca dourada e uma larga taça de amêndoas, avelãs e nozes ( o exercício mais difícil e sempre festejado era o retirar inteiro deste pequeno cérebro fruto da nogueira). Na soleira de granito inicava a tarefa que encurtava as horas e alindava de frutos secos a mesa A mesa na toalha de festa, bordada, enfeitada de pinhas, árvores verdes, motivos de harmonia nas voltas de ponto cruz, aguardando a chegada fumegante de batatas cozidas, legumes em vapores de nervuras, os aromas de lascas apetitosas do Mar do Norte, ditoso peixe da Noruega. O regozijo bom no desviar do tempo, no apertar do sono que evitava a visão daquele senhor de barbas brancas que descia pela chaminé e no nosso caso era obrigado a aterrar directamente no disco ainda morno do fogão. A memória de pequenas prendinhas de chocolate poupadas e saboreadas ao longo de um dia grande de festa.

Portanto, esta que é uma boa memória, acrescentada de tantas outras que junto nos agora já muitos Natais, termina para desejar a todos vós uma chuva de amizade ao recordar todos aqueles que fazem parte, que são. Com todos partilho os bons afectos neste mimo de nos sabermos reencontrar, de permanecer.

Para todos o melhor, o melhor dos anos, a melhor das festas.

Desculpem se me alongo. Mas desejo ainda que em todos viva, (sobre)viva e re(sobre)viva, dentro , a parte mais fluida, essa alma que ninguém pesa nem agarra , a essência, o surreal, o sonho, o sopro de magia branca de um espírito, neste Natal.


Abraços e bjos.

José Ferreira

A mesa e a tempestade




De uma trave no tecto caíram gotas.
Lá fora a tempestade; clarões, relâmpagos.
As quadrículas iluminadas no 1º andar.
A tertúlia dos poetas sem receios de Satã, de noites negras.
Animados de regressos e serenos. Sem desassossegos
no conforto dos afectos, palavras pequenas.
Na cor dos versos como simples borboletas.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Espantalho

O espantalho voou com os pássaros e enjoado em diagonal - braços em cruz
larga vómito lagarta papoila
daquelas muito vermelhas e com pinta
gota a gota
torto da boca
ácida indisposição
que fertiliza
a palha espalhada
em espantosa desintegração

Que desplante!

Ana Janeiro

Sessão e jantar

Hoje a partir das 18h30 para os actuais e anteriores participantes do curso de escrita criativa em poesia.


Saudações poéticas

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Sim -



Edward Hooper " Drogaria " 1927


Sim, sabes que é demais
barbas brancas e cor vermelha. As máximas da época.
Perfeito Krisnha Christmas everywhere. A voz rouca.
Ho,ho, ho. A paz que não existe. A guerra é louca.
Porque não a música. O clima concêntrico de uma agulha.
O diamante hi-fi a tocar, a retocar dentro de um círculo.
Espiral. Vai e volta. Repete. Volta e vai. Onde vais? Sair?
Às compras? Entre árvores de folhas luminosas?
Se fosse árvore não queria linhas eléctricas. Esse gasto.
O consumo de uma falsa energia. E então todos os outros dias?

Sim, sabes que é demais
o folclore branco e amarelo. Os circos. Os pobres animais.
Os bolos são todos iguais. Não há reis de favas. Os símbolos
embrulhados, os metais, a insígnia de um deus, de uma deusa.
Na floresta rapa e tira. As maiores clareiras dos pinhais
As pinhas caem, acendem cabelos de fogo. Os pinhões sabes.
Põe um pouco mais de achas. Alimenta. Repete. Vai. Não vás.
Escolhe o canto escondido. O recanto. Como se não os dois.
Aqui na sala imagina trezentos. Escolhe o canto escondido.
Esquece o brilho das pratas. Os castiçais fugazes. As mentiras
reais ou surreais de tão estúpidas e mesquinhas. As mentiras
que te somem os ouvidos. Falsos. Querem que acredites.

Sim, sabes que é demais.
este frio. No Equador está calor. O pai natal de monokini.
As renas de óculos de sol e guarda chuva. A temperatura
por vezes seca, por vezes torrencial e húmida. Dizem.
Não vás. Repete. Imagina mais de trezentos. Fica.
Escolhe o canto mais escondido da sala como sendo
um retalho de notícia. Única. Íntima. De dois. O doce.
Rubro. O pecado de uma dentada no cimo de uma árvore.
Um sussurro. Um nariz ronronado. No canto da sala.

Sim, sabes que é demais
não ser igual. O profano insinuante de um outro lugar.
Cuidar. Criar um outro mundo. Uma estrela de botão.
Que desce o céu. Sobe o chão. Que interessa a lógica?
O sonho é mágico. É mais bonita a ilusão de óptica.
Acreditar. Um livro que ainda não foi escrito. Uma história
deslumbrante. Luminosa. Perene de boas festas

mas diferente -

Sim, sabes que é demais. Não vás.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Muito Urgente - Última Hora - Sessão Aberta com Jantar

Caros amigos

Por impossibilidade da Ana Luísa avisa-se todos que não vai haver sessão hoje pelas 19H00. A sessão com o mesmo programa foi adiada para a segunda data em escolha , isto é, dia 21 de Dezembro pelas 18H30.

Desculpas a todos.

Grande Abraço

Ressaca



Dali 1914

Sobre o fim
do fundo do alicerce
no "underground".
caíram duas torres de vidros partidos.
das veias sobra a seiva de tom negro.
inócua de fora. nas labaredas de um inferno
gravítico ao centro.
"chumbático" sob os pés de um Pteriodáctilo
na "marmórica" tumba de uma arca perdida.

Quantos assim. quantos dias assim.
sobre o fim
de olhos "larângicos" e garras de facas
nos retalhos de um corpo íngreme.
o alpinista imprudente caído
branco cisne abatido
à distância breve de um paraíso

e a impune impossibilidade
de uma raiz -

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

elevo-me

elevo-me
acima das nuvens
pairo dormente
e corpo
e mente
ausente

nem vivo
nem morto
nem nada

anestesia
ilusão
intervalo

vida que não quero
ser que não sou

enfeito-me
de Natal
efémero no brilho
que não dura
que não muda

nem vivo
nem morto
nem nada

Regresso ao Desassossego

Agora que te penso e que te deixo
Lembro-me da letargia que me davas
– Esse aconchego tão estonteante –
Mergulhado em mil delírios, sonhos
Mil, sem ânimo viril para o caminho.

Agora, companheiro de infortúnio,
Viajo de regresso ao desassossego,
E não nego que não é fácil este viver
Sem ti – trago o mundo todo sobre mim
E por isso atiço o teu fantasma em mim.

Como era tão mais fácil ter-te à mão
Apagando a minha solidão e a noite
Sempre a trespassar-me. Tu eras o afago
Que eu não tinha, a sensação etérea
Que eu buscava para transpor o meu
Deserto – agonia a corroer-me a alma.

Agora que sou senhor do sofrimento,
E embora pense em ti, ópio aliado,
E nesse tempo aturdido que me deste,
Ensaio outra luz, outro deslumbramento –
Pés firmes no chão experimentando a vida.

2009.12.15
José Almeida da Silva

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Até já

Caros Ana Luísa, Ana, Clara, Inês, Joana, José Almeida e José Ferreira,

Demoro-me nesta ausência, de corpo e de palavras, porque... os dias encolheram (-me). Fico assim, queda em mim, à espera que o pensamento me espreguice. E é entre montanhas que o frio se abriga.
Para dizer que não estarei no jantar. Perdão.
Foi um prazer (e não o digo por simpatia) partilhar finais de quarta convosco. Ouvir-vos. Ler-vos. Falar-vos.
Obrigada.
E até já.

ana lúcia figueiredo

Sobre(leva) as asas de cera



Sobreleva o sol de inverno
sem arbustos de mistério
de contíguas sombras.
Clara a manhã azul claro.
Abertas as asas brancas longe
longe de ópios de "Opiários"
de Orientes de "Clepsidra"
de anos vinte parisienses
entre longas cigarrilhas
e os líquidos absintos.

Mas mesmo assim sobreleva
a luz louca dos artistas
inspiração de génios
"surpassados" de limbos.

Não esqueço, não se esquece
mas sobreleva o ar frio
compartido ou vazio
dentro ou fora de um
um quintal homónimo das cores.

Qual jardineiro de abas largas que passeia sobre
o asseio das flores na manhã de inverno
um bom dia mais branco e brilhante de terras
onde houve ervilhas, de cheiro, das outras
a postura deitada dos melões
o crescimento dos feijões.

Qual jardineiro na surpresa dos ramos verdes de laranjeira
e alguns frutos de cascas prontamente desbulhadas
em aromas, sabores e sumos. doçuras.

Sobreleva o sol de inverno
só, e sente-se a ténue aragem de sorrisos;
rostos "surpassados" nos seus limbos;
ares lunáticos de Dali
geometrias de Klee
guitarras coloridas de Juan Gris
imaginárias fantasias -

Sobreleva as asas de cera, inseridas
sem lugares marcados de cinzas
sem chamas, sem pavios, lisas
macias, com alma branca e solta
sem os olhos injectados de quadrículas

Sobre(leva) acima, acima, acima -

domingo, 13 de dezembro de 2009

Exercício de Emilly 632

porta, mais que parede,
siga-se a mais velha
que a outra continha
e tu de lado
a dobra
o som que se adivinha
ah a asa

ar vo r ar

de orgãos portáteis
passados a ferro
a alta velocidade
em dia de TGV
e aquele verde atrasado
pasmado à janela -

os homens têm vergonha das árvores

sem mãos de algemas
à mostra à terra

à noite
os homens choram
e injectam-nas

de olhos verdes enormes
riem lá em cima, quietos
à procura de raízes no ar

sábado, 12 de dezembro de 2009

Poema


Stéphane Poli "Ilha de Moçambique" 2004

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca.


Mário Cesariny
in Pena Capital
Assírio & Alvim, 1999

Em Copenhaga


Paul Klee "Quadro de cidade com pormenores vermelhos e verdes" 1921



“ Em Copenhaga...” - o cabelo louro.
as frases de ritmo lento.
aqui e ali a palavra inglesa:
“How do you say?...” o pequeno lapso
o espaço de uma recordação -
o olhar brilhante.

Quando se descobriam horizontes
sem GPS, a esperança do monóculo
que descia a lente redonda
o mais próximo diâmetro
na procura, na descoberta : “Eureka!”
(“...já vejo terras de Espanha ...”areias da Dinamarca).

“Em Copenhaga...” - o olhar brilhante
o cabelo louro e uma mesa metálica
desengonçada, na perna mais curta , torta
o tampo raso, ralo onde sobrevive o copo
o álcool, o malte e o sotaque.

“ Em Copenhaga...” - o rosto em fios
uma cortina e o pára-brisas
as mãos, gestos na face afirmativa
inquieta, insilente, incisiva na defesa
de súbitas e ambientes melhorias.

“Em Copenhaga...” - muita polícia
a insanidade climática e fria
de quem decide sem pertença
uma outra cor, a impossível
se vazia e branca a cor do colarinho
se mais escura a cor verde
no balanço medido de um tempo
de dióxidos, oxigénios e carbonos
que viajam de Concorde
entre Amazónia e Nova Iorque;

“Quem me dera uma ilha e uma horta”

“Em Copenhaga...” - incipiente e sem saída.
Não há memória de Quioto.
Sólida só a ausência pura do ar
e a esperança de um olhar brilhante
de um cabelo de ouro
que recomeça a história:

“Em Copenhaga...”

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

quem me explica mãe?


Este poema foi composto na notícia real e horrível de mais um caso de violência doméstica à cerca de uma semana. O poema pousou durante alguns dias e agora que de novo deparo com o mesmo horror resolvi publicar.

quem me explica mãe?



empedernida e cinzenta a tarde
a tarde da notícia medonha:
"ex-fuzileiro mata na ambulância
completa a dor de uma sirene
morre o polícia incrédulo
nas mãos trágicas de um Rambo."
horror! chacina! mãe salva filha;
seis anos de vida, um mau colorido.

quando for grande , um outro mundo
mas quem explica o domingo
o dia, o relâmpago
o último instante - sobrevive
o sangue - mãe salva filha.

quem explica o grito: "mãe! mãe!"
quem explica o grito: "não! filha!"

"quem me explica mãe?
quem me leva ao parque mãe?
quem me explica os ouriços
as castanhas da índia?
mãe!mãe!
quem me explica a luz assassina mãe?
os olhos de tigre?
as palavras malignas?
antes das tuas tão lindas mãos
como arcos soltando as crinas
salvando a cria.
quem me explica mãe?

mãe - tu não morreste

Drogas

Olá a todos!

O 7º trabalho de casa para a última sessão é sobre drogas. Como base de apoio foram fornecidos os seguintes textos:

"Como um deserto imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!

A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.
Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?
(...)

Camilo Pessanha "Branco e vermelho" (1867-1926)

(...)
Nem ópio, nem morfina. O que me ardeu,
Foi o álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)


É antes do ópio que a minh'alma é doente
sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
(...)

Álvaro de Campos ( Fernando Pessoa) (1888-1935) " Opiário " 1915



EUA/Angola:«Parceria Estratégica» discute tráfico de drogas e de pessoas
17 de Novembro de 2009 03:02

Washington, 17 Nov (Lusa) - O tráfico de drogas e de pessoas foram discutidos na primeira sessão do "Diálogo de Parceria Estratégica" entre Angola e os Estados Unidos, refere uma declaração do Departamento de Estado norte-americano.

Delegações dos dois países reuniram-se na segunda-feira pela primeira vez no quadro desse "Diálogo" acordado durante a visita que a secretária de Estado, Hillary Clinton, efectuou a Angola em Agosto.

O acordo prevê encontros regulares de grupos de trabalho para discutir "questões de preocupação mútua".

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Olá, amigos de palavras, estive calada, tempo demais.
Lamento a minha não presença no último encontro de poesia. Mas, conforme já tinha comentado, a minha princesa mais velha fez anos nesse dia, e como entendem, há tanta poesia na preparação e execução de um jantar de festa, que era de todo impossível a minha ida ao Porto.
No entanto, confirmo a minha presença no próximo dia 16. Agradeço muito, e isto é para si, José, que poste o trabalho de casa logo que possível. Beijos

Fecho a porta
trancada do lado de fora
recebo o frio no rosto
recebo a noite minha irmã
como tu escura
como tu mentira
olho bem alto
pontos brilhantes encontro
que não me iluminam a alma
asas me crescem no dorso
abrem-se em toda a sua envergadura
já não sou eu
em anjo me transformo
anjo de manto negro
na brisa gélida da noite plana
vagueia errante sem sentido
de pensamento liberto
de coração acorrentado
a vontade de voar é brutal
dor funda sente no peito
algo o atinge sem contar
as asas recolhem sem aviso
os pés no chão sinto
sou eu
pouco depois adormeço com sabor amargo nos lábios

Concurso de desenho

Caros poetas e poetisas,
não querendo misturar as artes, mas já misturando, lembrei-me de vir aqui fazer um apelo.
Eu concorri para um concurso de desenho da Throtlleman, uma loja de roupa maioritariamente para crianças e adolescentes, e os vencedores determinam-se pelo numero de votos nos desenhos. Os votos sao feitos no site http://www.mundofunny.com/, em "concurso de desenho". Ao ir para a "galeria", os meus dois desenhos estão na página 12 e dizem Maria Inês ao lado.
Para votar é necessario um registo rapido no site - nome, email, etc. - e o numero de estrelas corresponde ao quanto gostam do desenho. No dia 15 a votação fecha e quem tiver mais estrelas e depois mais votos ganha.
Portanto, se tiverem paciência, e se acharem que os meus desenhos até merecem 5 estrelas (ou então que eu mereço porque até sou uma menina simpática de vez em quando) poderiam perder uns minutinhos e ajudar-me :)

Um grande beijinho e obrigada!

Maria Inês Beires

Há cidades cor de pérola onde as mulheres V


Matisse "A janela azul" 1913



Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
o minha loucura, escada
sobre escada.

MuIheres que eu amo com um des-
espero .fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
Imente a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.

Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.

Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.




Herberto Helder
Lugar
Poesia Toda
Assírio & Alvim
1979

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Sessão aberta e Jantar

Depois de recolher as preferências de todos os que responderam e após contacto com a Ana Luísa ficou marcada a última sessão aberta do Curso de Escrita Criativa de Poesia (III), seguida de Jantar, para as 19H00 do dia 16 de Dezembro.
Todos os anteriores participantes estão convidados para este encontro onde, se para tal tiverem oportunidade, podem também participar do último trabalho de casa que publicarei aqui no Blogue.

Continuação de festividades poéticas

Grande Abraço e Até breve

Haikai - Vários




Aurora Boreal Lapónia (retirado da Internet)

H1 Se...
SE a pradaria junta o trevo e a abelha
como a aurora a noite e a madrugada
- o sonho sopra asas e absorbe

H2 Revery
"revery" e som
- imperial o tom


H3 Peso em libras
O peso em libras de Deus
-é nada

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Os aromas discretos das flores de sal




Uma manhã moderna seguiu o mar
"foot by foot" na canção do metrónomo.
Passou o lago sem patos ao primeiro sinal
e de barro, pousados, na última passagem;
águas paradas, um vítreo plano de prata.


Uma manhã moderna os atletas
de gorros e luvas pretas
cumpriam uma corrida sem metas
atingiam clareiras de pássaros adormecidos
e o apito seria mais bonito se fosse corneta
o som possante, brilhante dos metais.

Uma manhã, manhã moderna
no intervalo de um cansaço, estava trémula
sentada na relva madura, a pele húmida.
longe estava o lago e era leve um sussurro
sem nexo, um sussurro de falésias
burilado no ruído de marés - estava perto.

Um manhã, manhã moderna
as nuvens caíram no mar
como flocos doces de um açúcar de feira;
as águas tornaram-se doces, calmas.
não era monótona a cor da areia: dois tons
de um lado mais branca e seca
do lado do mar o horizonte molhado, sem marcas
as marcas de um caminho de pés
que em segredo, nas costas, as mãos
as mãos brancas levavam aos barcos
longe, tão longe, sem remos, sem redes
porque sabia divertidos os peixes
sempre que as ondas descalças
cobriam as linhas, as gravadas plantas
e desnudavam aos poucos os vermelhos
os vernizes no rosto dos dedos.

Uma manhã, manhã moderna
a camisola longa, as calças azuis
as sapatilhas de corrida, sózinhas
e as meias, os desenhos das cerejas
- os brincos de princesa -
sorrisos de infância nos lábios
rubros, displicentes de sumo
ao afastar as águas.

Uma manhã, manhã moderna
sentia as ondas, os segredos do mar;
as nuvens doces e os aromas mais discretos
das flores de sal.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Uma flor para Di Cavalcanti


Emilio Di Cavalcanti

"Criar é acima de tudo dar substância ideal ao que existe." - Di Cavalcanti


Esta é uma flor para Di,
uma flor em forma di-
ferente: de flor-mulher,
desabrochada onde quer
que exista amor e verão.
Verão como a cor cinti-
la nas curvas, e sorri
nesse púrpuro arrebol
que Di tirou do seu Rio
coado de mel e sol.
Uma flor-pintura, zi-
nindo o canto de amor
que acompanhou toda a vi-
da do pincel, o gozo-dor
de criar e de sentir, di-
vina e tão sensual ração
que coube, na Terra, a Di.


ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Histórias extraordinárias



Tales of Mystery and Imagination
Edgar Allan Poe" (Narration Orson Welles)

For my own part, I have never had a thought
Which I could not set down in words
With even more distinctness that which I conceived it.
There is however a class of fancies of exquisite delicacy
Which are not thoughts and to which as yet
I have found it absolutely impossible to adapt to language.
These fancies arise in the soul,
Alas how rarely, only at epochs
Of most intense tranquillity
When the bodily and mental health are in perfection.
And those mere points of time
When the confines of the waking world
Blend with the world of dreams.
And so I captured this fancy
Where all that we see or seem
Is but a dream within a dream.

Distraído




Gaudi era um louco de cerâmicas
pináculos adorados, pedras bordadas.
Imitava lagartos verdes e usava gabardine;
escorrida, pedinte e os olhos de absinto.
Um dia de linhas o eléctrico
infeliz e distraído -

-não terminou a Sagrada Família

Sessão Aberta com Jantar

Durante a última sessão foram acordadas duas datas possíveis para a sessão aberta seguida de jantar. Esta sessão, como a anterior, é extensiva a todos os participantes de outras fases do curso. Espera-se que venham muitos de forma a manter viva esta chama que há mais de um ano alimenta este "Mar de Azeite".
Era importante responderem com a maior brevidade para ser efectuada a marcação definitiva com a Ana Luísa. As datas propostas são as seguintes:

16 de Dezembro 18H00

ou

21 de Dezembro 18HOO

Um grande Até Breve a todos

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Não estou pensando em nada


Kasimir Malevitch "Meia figura" 1932


Não estou pensando em nada
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o verão quente do dia,

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida...
Não estou pensando em nada.
E como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada...

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

Informação urgente

Conforme estava destinado a próxima sessão do curso de escrita criativa realiza-se
na próxima quarta-feira, 2 de Dezembro às 19h00. Relativamente ao jantar ficou adiado e será acordada uma nova data e local durante a próxima sessão. Até lá toneladas de poesia para todos vós.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Nirintimba pintava - o pobre louco




Nirintimba perdia-se no clima azul-
a parede, uma de quatro, que sempre pintava.
De pupilas dilatadas reescrevia uma história-
minuciosas figuras, traços de paisagens.
Visitado de espírito na noite, acordava
premente de imagens que saíam de dentro
em sonhos de desenhos, linhas, sequências.
O seu mundo que colocava estático
de tigres, leões, elefantes
circunscritas serpentes em ramos altos
hienas primitivas de terapias futuras
rinocerontes vesgos iludidos nas distâncias
leões despenteados em rugidos de navios
girafas de orelha ao lado, ruminantes, calmas;
o seu mundo, ao centro, de uma selva africana.
A cor de um sol quente no país de Nirintimba
povoava um lugar sem ser o nosso e admirava
no sonho das suas diferenças, as pequenas
as pequenas diferenças que desde a manhã
na única das quatro Nirintimba pintava.

Diziam-no louco, o pobre louco, artista
que pena, louco.

Nirintimba só perdia a luz e sentia a sombra
quando algum pincel em teimosia de cerdas
esborratava a precisão de pés descalços
a ingénua infância. persistente nos erros
(quem os diria) perdia-se obsessivo.
E terminava todos os dias, todos os dias
ao fim do dia, cansado e sentado
na cadeira suja, de palha esfiapada.

De madrugada aquele outro pintor deslumbrado
chegava de máquina curiosa, película impressionada;
recolhia de objectiva a parede pintada, a vida breve
de um mural, os cimentos animados de um quadro.
Em todos os cantos, em todos os lados, um ritual
aos círculos no quarto, antes de Nirintimba acordar.

Um sonho louco, uma nova atmosfera, o clima azul
a selva que sabia ao primeiro raio de sol
seria destruída, aniquilada, para que Nirintimba
o homem louco, louco que sonhava, cobrisse
de uma nova camada. pois já não seria esse
o seu sonho na madrugada.

Diziam-no louco. o pobre louco. o artista
que apagava o indício, a mais ínfima memória
e ele sorria, revestia o dia, a bata
recomeçava -

Até quando?

domingo, 29 de novembro de 2009

Saudade



Edgar Degas "Retrato de M. Duranty" 1879

Saudade - O que será... não sei... procurei sabê-lo
em dicionários antigos e poeirentos
e noutros livros onde não achei o sentido
desta doce palavra de perfis ambíguos.

Dizem que azuis são as montanhas como ela,
que nela se obscurecem os amores longínquos,
e um bom e nobre amigo meu (e das estrelas)
a nomeia num tremor de cabelos e mãos.

Hoje em Eça de Queiroz sem cuidar a descubro,
seu segredo se evade, sua doçura me obceca
como uma mariposa de estranho e fino corpo
sempre longe - tão longe! - de minhas redes tranquilas.

Saudade... Oiça, vizinho, sabe o significado
desta palavra branca que se evade como um peixe?
Não... e me treme na boca seu tremor delicado...
Saudade...

Pablo Neruda, in "Crepusculário"
Tradução de Rui Lage

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

o clip de prata


Kasimir Malevich "Pressentimento complexo: meia figura numa camisola amarela" 1932

Gostava de te mostrar aquela pintura
feita de colagens, tecidos e mais
reflecte no fundo de aguarela
aquele mar que chega à praia
transparente, perdendo espessura
deixando os fios de alga, as espumas
brancas e breves, se puras.
Sentado no capacete sem cabeça
inscrevo a marca oval
como desafio do subir das ondas
e em cada movimento de água e sal
as cores permeáveis no pincel
rodeando as colagens, os tecidos
e um clip de prata.
era sim aquela praia deserta
de muitas dunas e mãos despertas:
"não confortável"- disseste-"mas que importa?
se são macios os olhares e na pele
a cadência dos gestos, a descoberta
depois de ausências dos heróis de silêncios
sobreviventes de horas mortas"-disseste e mais
que me ocorre, que sabemos, que tememos
quando caiu a corda surreal, imagética
magnética de dois hinos, o coro de vozes
lá fora e lá fora nada e mais
quando de novo o mar sobe e cede o areal
um pouco de granulometria seca e suja
um pó mate que sobe enquanto ergo o capacete
sem cabeça.
Esmoreço. já não meço aquela onda
que inunda os pés, capilar e húmida
invade a parte mais clara do indigo
reescreve uma auréola, granulada, branca
uma auréola de saudade na escura ganga.
quase terminada- a pintura - tamanho A4
rodeada de claridade, de linhas de luz
e a distância, feita de ondas, de sombras.
não te disse do lenço, o lenço de renda
sim esse, de linho. estava perdido
encontrei-o há três dias, no casaco de lã
de ritmos e agulhas nas noites mornas
e motivos de vasos gregos ou de Creta;
um pequeno triângulo no bolso do lado
em três anos de viagem pendurado no cabide
de um único guarda-vestidos onde caem calças
escorregadias, desamparadas, teimosas
nos sinais, nas dobras. nem sequer ligo.
O lenço. o adormecido amuleto sem sentido.
três anos passados. "E que interessa?"
- dirias- " escreves, descreves, o que foi dito.
"poemisas" aéreo os lugares agora interditos.
nem sequer me sabes. um jogo de ironias."
dirias.
É verdade. tudo. mas mesmo assim
gostava de te mostrar a pintura
as colagens de tecido, o clip de prata
as cores de água, de mar salgado e mais
o lenço de renda, de linho e mais
a proximidade em crescendo que invade
o tamanho das ondas nos meus olhos
e saber -

Será que? -
O futuro? -

a carta rodeada de nomes


René Magritte "A corda sensível" 1960

Pensei em guardá-los dentro de uma carta
- os pensamentos, os versos
quando caem na primeira página
um nascer de águas nos ritmos brancos de flúor
seguidos de gavetas indecisas na cor de camisas
nas calças justas ou de vincos; não se usam já
bocas de sino presas nos joelhos largas no fundo.
guardá-los na primeira prateleira
de olhar distante enquanto aqueço o leite
ou meço a consistência da manteiga
no pão fresco ainda estaladiço.
alguém me fala do tempo: “parou a chuva
ficou o vento, os primeiros frios”
não compreendo no receio de perdê-los
- os versos, os pensamentos.
assim escondidos em pequenos gestos
são segredos e sei-os de serem ternos
de estar comigo como folhas de fetos
ainda verdes, a crescerem e serem filhos.
plenos de sentimento são companhia
bater de dedos no tampo da mesa
contar degraus um a um de granitos
saber quantos os pássaros na longitude dos postes
no correr dos fios ou estudar as nuvens
as suas formas e feitios, vagas de espumas
mousse de cortinas no vagar da velocidade
esticar de rede que descobre o lugar do céu
imaginário, etéreo.

o medo de os perder – os versos, os pensamentos
não os tornar a ver, não mais conversar com eles
tirá-los da testa, alisar-lhe os cabelos.
por isso pensei que é melhor guardá-los numa carta
e nessa carta, para que cheguem a casa, pôr um selo
e rodeá-lo de muitos nomes, muita gente dentro deles.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Melodias de um desconhecido



Não são muitas as minhas melodias.
surpreendo-me quando chegam
perdidas como ilhas
num mar de faróis
de outras, tantas, tantas melodias.

pérolas, pérolas minhas.
são como células distraídas
que descem e sobem o meu corpo
sem a noção exacta de uma força
íntima, sísmica, que ensina acima
as estrelas, a lua de melancolias.
as minhas melodias sempre são
uma âncora em qualquer sítio
no recanto de uma rua, na livraria
no vidro entreaberto de uma limousine.

surprendem-me as minhas melodias.
talvez as achem ridículas.
mas mesmo assim sinto-as
sinto-as tanto, tanto tanto
que, se tivessem vida
da mesma forma que as canto
cuidava delas se tivessem frio.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Os pássaros de Londres


William Turner "Londres" 1809

Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada
os pássaros de Londres

quando termina o dia
e o sol consegue um pouco
abraçar a cidade
à luz razante e forte
que dura dois minutos
nas árvores que surgem
subitamente imensas
no ouro verde e negro
que é sua densidade
ou nos muros sem fim
dos bairros deserdados
onde não sabes não
se vida rogo amor
algum dia erguerão
do pavimento cínzeo
algum claro limite
os pássaros de Londres
cumprem o seu dever
de cidadãos britânicos
que nunca nunca viram
os céus mediterrânicos

Mário Cesariny, in "Poemas de Londres"

terça-feira, 24 de novembro de 2009

"Há quanto tempo não nos víamos"


Georgia O'Keefe "Abstracção Rosa branca" 1927


Enquanto adormecias eu lia o livro
livro grande, novecentas páginas.
Apreciava o descer do teu sorriso
o oscilar de pálpebras, os olhos verdes
quase deitados. Eram três horas.

As teclas de um piano nos dedos de Martha
um adágio, de Schumann.
Ainda não dormias. Em que pensavas?
Na música? Na loucura do livro?
O livro grande?

Lia incerto algumas frases:
“espátulas, caviares, arenques, vodkas aromáticos”
as estepes, os obstáculos
as cartas de Praga antes de Kafka.

Já dormias. Telefonou o Alexandre.
Eu lia o livro, o livro grande
Novecentas páginas.
Quatrocentas e cinquenta três
Connstantino beijava a mão de Kiti
Pela terceira vez:
“Há quanto tempo não nos víamos?”

Instantaneamente : “Porto 2001”
Claramente : 1º Balcão
Misha Maisky de túnica branca
“Como se fosse uma espécie de santo”
A música. Schumann. O romântico.

Pousei o livro, o livro grande.
Soprei a chávena.
Uma pequena nuvem quente de vapor
o sabor acre de ervas de Londres;
a insistente cor vermelha
de um autocarro de dois andares
no mesmo sítio onde comprámos a pena
de caligrafia, e um papiro. Lembras-te?
“Há quanto tempo não nos víamos?”
Mas tu dormias
e eu tinha que ler o livro,
o livro grande:
novecentas páginas
as notas do autor
o posfácio
traduzir a epígrafe -

sábado, 21 de novembro de 2009

Um choro de criança ou o caso da casa que queria ser reconstruída




"Bem sabes que estou morta
vai para três anos
quando cairam as traves
os telhados nos tectos
os tectos aos bocados no soalho."

Abriram-se as portas da casa
de noites negras e redondas.
os redemoimhos entraram.
encontraram os lugares do vento
ficaram, qual alicerce fúnebre.

As cortinas habitam, inquilinas
no ar cinzento, esventrado, dentro,
fora conversam com as gárgulas
guiam os dias de segredos pardos.

Na velha cozinha, na mesa de chapa,
jaz deitada a chaminé,
a chaminé de um velho samovar,
escuro, no pouco brilho do esmalte,
soçobrado.

Na névoa fina a casa chora
chora como choram as crianças
convulsa de soluços, sem saída
agitada, sem futuro.

Por ali, quando passo, cissia:

"Viajante, caminheiro, amigo
se passares por mim não olhes,
não provoques os destroços brancos,
as caliças nas escadas.
como bem sabes estou morta
vai para três anos."

Há palavras que nos beijam


Sonia Delaunay "Projecto para quatro xailes"


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperançar louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Haiku da musa

Haiku caraças
A caneta não escreve


Ana Janeiro

Haiku

Línguas de comer cruas
Como hóstias
Ou ostras

Ana Janeiro

Disinspiração constipação

Musa inspira-me
Está ali a máscara de oxigénio
A droga ao lado
Injecta-me com a caneta bico de esfera oval
A tinta azul, verde e o tinto

Já me sinto
Melhor

Querida musa
Perdoa as tosses
Agradeço os cuidados

Prepara agora o papel e diz aos poetas
desesperados no passeio do vale:

Sucumbiu a larva na taça de arroz em tempo de
comer a língua para matar a fome e
uma dor de estômago a pico de cacto na
barriga descalça subiu
cozida a vapor

Digo aos poetas no passeio de pedra sentados ou aos que se passeiam?

Sei lá Musa, na verdade estou hoje tão desinspirado como constipado.
Que se plagiem uns aos outros, como eu os plagiei!

Ana Janeiro

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

(retirado da internet)

Um pedido de desculpa pela ausência dos trabalhos de casa e pela minha ausência no próximo sábado.

Por ‘estes’ dias, tenho entre mãos um poema que não pára de crescer e estou a aprender, a aprendê-lo em conjunção com os outros meus exercícios poéticos. E parece que leva uma vida inteira…

O meu poema é ruivo, de olhos urgentes e persistentes. Ora sim, ora não, arrasta-se na minha perna esquerda para não perder de vista o(s) meu(s) destino(s). Abre as gavetas todas da cozinha e desarruma o(s) meu(s) tempo(s). Come de rosto encostado à minha mão para reduzir as distâncias da pele. Desliga o computador para me desligar do ‘para além dele’. Diz ‘tô tiste’ e pisca os olhos com a cabeça solene e inclinada, porque brincar é o verbo. Durante a noite, ouvem-se os passos apressados pelo corredor, à procura do ventre. Shiuuu… O meu poema é ruivo, é tão ruivo que me enche o colo todo.

ana lúcia figueiredo

Um rosto de Anna Karenina




Sobre ti o dia de Novembro
uma névoa, um vapor de linhas;
lugar onde os relógios crescem
de lado, nos azulejos
ponteiros grandes
inevitável rodar do tempo.

Como em Anna Karenina
já não se usam peles de vison
chapéus de ornamentos, penas
de pavão, nem as danças
as valsas de salão.
Sobre ti a boina preta e o baton
a cor vermelha, a tentação.

Sobre ti a dúvida e o aroma
as pétalas, o cálice doce, ameno
um sistema largo de afectos.
de um vidro embaciado
a paisagem jaz líquida
movediça, de árvores despidas
deixando cair os vestidos
na nudez segura.
Sobre ti a dúvida.

Sobre ti agora o imprevisto
a noite de berlindes e sininhos
ritos de paus de chuva, energias
um re(moinho) por de cima, em cima
uma carícia que transmite
a distância dos lagos
um cisne de águas calmas
Sobre ti.

Sobre ti o aroma
as pétalas,o cálice doce, ameno
o apagar do candeeiro
a luz presente de um poema -

Adormece, quero-te
boa noite -

Haikai

e-lia@lusa.pt

Ilíada e líamos
nos Lusíadas
as lusas idas


Leonor

São as fontes Leonor
os verdes frutos nos cântaros
- nas rodilhas o equilíbrio

José Ferreira

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

solta-se a fera

solta-se a fera
na arena da vida
o círculo do circo
começa ao nascer

a pele derrete
perde identidade
ao ser violada
com o ferro em fogo
estigma como amante
no escuro de cada sol posto

brilham os fios de prata
automatizam os movimentos
rebanhos humanos
sem pensar
fantoches manipulados
sem querer

tão pouco de ti
quase nada de ti
debaixo de comando
sempre
controlado por dentro
em hierarquias patentes

fiel depósito
de corvos negros em ferida
de pesadelos
de medos

impulso dado pelo estribo
entram na jaula
e brilham os fios de ouro
esvoaçam querendo fugir

mas tu fechaste-os
dentro de ti
vestindo-os como uma pele

nos teus olhos fundos
já não há alma
globos brancos sem menina

és besta encurralada
nas arestas da existência

és instinto
sobrevivência

o círculo fecha-se
a fera solta-se
na arena da morte

- de pulso

baloiço um pouco acima da terra
ao gozo do voo do pêndulo,
nos segundos só inverto
ou troco de vestido
entre (tanto) balanço
e dou mais lanço

Joana Espain

Trago em mim

[«Um psiquiatra perturbado, um muçulmano devoto»;
«Eu não sou eu nem sou o outro»]


Trago em mim
as almas do passado
E nem sequer as lembro

surgem-me às vezes
nítidas como palavras
espessas como sangue
ganham vulto no discurso
a que desconheço o berço
sussuram-me às vezes
o poema como água pura.

Obedeço a medo do que sou –
Como se fosse outros
ouço-me nas correntes
que transporto.

E sonho o reencontro.

2009.11.18
José Almeida da Silva

(Des)inspiração

Andei a manhã toda pela cidade.
Entrei e saí vezes sem conta
De casas de comércio adiado –
Quis desistir mas já não tenho idade –
A procurar metáforas e hipérboles
Imagens e antíteses, oxímoros e quiasmos:
– Não temos, era a resposta pronta,
E eu pensava, mas aonde se meteram
Agora todas essas figuronas tontas?
Não creio que tenham ido para o Brasil,
A viagem é cara, e já não há pilim.

Nas casas de comércio ofereciam-me
– Era só o que tinham em stock – vírgulas,
Pontos, telas e agulhas de croché,
Os fios tinham esgotado e não tinham
Palavras disponíveis no mercado
E não sabiam aonde ir encomendá-las –
Era denso o nevoeiro. Sim, o mesmo nevoeiro
Com que a noite inteira me tinha debatido
Quando quis escrever e o travesseiro
Me usurpou as poucas ideias que ainda tinha,
Trouxera-as da guerra em 73 da longínqua Cabinda.

Andei a manhã toda pela cidade. E quase ao meio-dia
Dei de caras com as palavras que então procurava:
Estonteadas e em desequilíbrio precipitaram-se
No abismo. E eu sem cordas para poder içá-las
E nem um só fio para as entrelaçar – um mar opaco
Para desvendar, e eu sem Barco, sem Remos, sem Luar.
2009.11.15


Haikai

Denso o nevoeiro
O longe sem horizonte
– Sem boieiro a fonte.

José Almeida da Silva

(des)inspiraç

(des)inspiração de chuva.

E sento-me em divagações lacónicas
prostrações canónicas
e ausências de ti.
Inspiro -
e sorrio se transpiro -
se por acaso de luas
ou sintaxes do destino
se abriram outras gavetas
e em tecido
(ou meias pretas)
me surgi.
Sonhei-te algures por aí.

Amanheci.
E em sombras vãs,
horas despidas,
perdi-te as linhas de insónias
em estruturas mal cosidas.
Expiro -
e as palavras em retiro.
Se acaso não for de luas
então de uvas ou de amoras
que eu espero em curtas demoras
e cruéis morfologias.
E partias
sem conceitos ou estruturas
em versos de chuvas amenas
e tardes de luz.
Por fim deserta.

E anoiteceu na casa do poeta.

Inês Beires

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Olá a todos. Só para que saibam que eu, Clara Oliveira, tenho o grande prazer de fazer parte dos Aprendizes de Poetas:

Vozes capazes de rasgar sorrisos
Vozes repletas de promessas efémeras
Vozes alquímicas, transformam o que tocam em quimeras irreais
Vozes de sonho, transportam-nos em bolas de sabão, leves, suaves, cristalinas

o hábito do silêncio


William Turner "Chegada a Veneza" 1844

ainda há o hábito do silêncio
que habita o recreio da mente
de batas brancas e tintas azuis;
cenas de filosofia e giz
num quadro negro
antepassado
de uma mesma cidade
onde nasci
sem partida anunciada.

sábado, 14 de novembro de 2009

(des)inspirar por fora

lagos escuros
luz de gotas em fuga
nuvens à chuva

(des)inspirar por dentro

bocados vermelhos de ser
pequenas dobras livres
saltos esgrimistas lá dentro
à escuta

será que entrei
- devo ter entrado-
tudo à mesma marcação
eu o espaço
o tempo da palavra
a entropia

não trouxe nada
nada me enviesou
nem pássaros ou navios
só o mundo
em nó vermelho de mim

lembro água
ou areia ainda liquida
a desintegrá-la por precisar
e linhas em fuga de mim
que partem

como chegam olhos baixos
de rostos que habitava
e comboios
de encontros subitamente lúcidos
que não souberam parar,
e pele, sei que há pele
- ainda devo ter pele-
sinto-lhe o grito a transpirar

não trouxe nada,
encosto-me a ver passar linhas
em dolorosa minúcia de ti,
agarro a linha do tempo
e enrolo-a ao pescoço
na esperança que te repita em si

mas o fluxo desata a vibrar
a meada doba irritada
em vez de linhas, ondas,
a velocidade aumenta, deriva
o espaço das palavras
e já nada chega ou se parte
só elas a rir de mim

perdi os olhos,
a pele vermelha,
o comboio
e a precisão da areia

Não sei sair
à roda o tempo
fechou-me cá dentro
a um canto neste poema

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Wave



Vou contar-te das estrelas
Belas e únicas nos espaços do céu.
Esquecer o vazio da calçada
Tão sólida, linear, indiferente.
Saudade da casa das rosas
Essa nuvem de aroma
Que juntava à imperfeição do rosto,
O meu rosto, à maresia, o mar sereno
Onde te via subir, descer, aparecer
De algas presas
Como tatuagens.
O olhar perfeito.

Por isso vou contar-te das estrelas
No ar de dez mil metros
De corpo leve, tão leve…
Ao longe os pormenores
De cada árvore, de cada ave
De cada braço de um rio
A clareira de um prado
Os jardins intensos, uma cabana
O paraíso, enquanto desço.

Vou contar-te das estrelas
Esquecer os anos de sombras
E de silêncios
Sentado numa voz quente
Que soa de sonhos
E se sonho, se sonho
Não quero que pare
Que tropece ou caia
Antes que embale
E eu prometo que só lembro
Das estrelas, enquanto desço.

Vou contar-te dos alpendres
Dos vidros das janelas
Das superfícies transparentes
E também dos verdes bosques
Descobrir nas penumbras claridades
O que escondem os chapéus dos cogumelos
Num entrançado de linhas, protegidas.
Vaguear a luz rectilínea dos arbustos
Em Novembro.

Vou contar-te das cegonhas e dos ninhos
No cimo dos postes, em recorte.
Do borbulejar das nascentes
A fonte próxima, a suavidade
De um mar. E sei que haverá
Uma túnica comprida, branca
Uma asa de cada lado.
E sei que haverá
Em cada um dos nossos passos
Um anjo de dois lugares.

Vou contar-te das estrelas

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Balanço

Passeio o meu olhar
nesta imensidão de água queda
enfeita-se de sombras de luz
que coroam qual rainha
água calma
nela me vejo reflectida
tão diferente.
em mim tempestade sem fim
ventos ciclónicos
águas transbordantes
redemoinhos de pensamentos
atropelos de vontades.
preciso de ti
para essa calma encontrar.
quero a suavidade de movimento
do moliceiro ao crepúsculo
quero a doçura do toque do casco na água
quero balanço de embalar
e embalada nos teus braços dormir
um sono fundo e apaziguado.
encontrar na força do teu abraço
a minha força também
sermos ambos a força que precisamos
para continuar esta nossa viagem juntos.

Clara Oliveira

segundo ensaio sobre a "desinspiração"

deserto de palavras
não as consigo tecer
entrançar umas nas outras
formar imagens de cor

aridez de palavras
mergulho os dedos nestes grãos
escorrem sem dono
por entre as minhas mãos

vazio de palavras
atravessar esta lonjura
por dentro sinto-me rasgar
derrete-me a mente nesta loucura

deserto cheio
de aridez vazio
de palavras

Clara Oliveira

parábola de balas


(retirada da internet)

eram horas e partias

no fundo dos teus olhos o espírito
o desejo louco de abrir asas
mas os envólucros na mente oca
como bolas pendulares de ping-pong
o feitiço de vingança de Saddam
ao soltar os arquétipos de Jung
os desertos complexos de Freud

eram horas e partias

as marquesas, centenas de marquesas
jovens soldados enrolados de tinturas
as alas obscuras das mentes, dementes
de águias, abutres do Egipto, hienas
e as vozes de cantata dos comandos;
queriam fechar as asas, as tuas asas
e sabias os medos, as sentenças
das terras secas, do ouro preto

eram horas e partias

a luz, de um sol gélido de Maomé, a luz
nas asas brancas, a esvoaçar, a esvoaçar
nas tuas, nas deles, inocentes
um mar de milhares de penas
uma parábola de balas a cruzar, a cruzar
a tarde grave de ruídos, gritos e sangue
e a camisa de linho, a mais bonita
tingida, no seu último dia

eram horas e partias


P.S.- Este poema é sobre o caso do Major psiquiatra que assassinou
jovens soldados ao ter conhecimento que estava destacado para o
Iraque. Achei por bem pôr este esclarecimento porque, para aqueles
que não participam no curso de escrita criativa, será agora mais
fácil seguir os vários trabalhos que concerteza vão chegar.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Informações

ola a todos! queria saber qual é o trabalho de casa desta semana! e quando é a proxima reuniao já agora! (estou a rezar para que seja neste sabado so a partir das 5 e 15! ou noutro dia qualquer).
Já estou a reaprender a falar (ou a escrever) e vou esta semana fazer os mil trabalhos de casa em atraso (perdoem-me o exagero, mas mil é como os sinto).
Presumo que seja um haiki, mas queria saber mais detalhes!

Um grande beijinho e saudades,
Maria Inês Beires

Haikai

"O haikai é uma composição poética japonesa
que pretende sugerir um máximo de sensações
através de um mínimo de palavras. Na sua
forma clássica, apresenta apenas 17 sílabas,
organizadas em terceto, com uma métrica de
sete sílabas no segundo verso e de cinco sílabas
no primeiro e terceiro versos"
(Da ficha de trabalho da última sessão)

Ex.

Furu ike ya
Kawazu tobikomu
Mizu no oto

Matsuô Bashô (1644-1694)

Traduções:

Ah!o velho poço!
uma rã salta
som da água.

Armando Martins Janeira (1914-1988)



Quebrando o silêncio
do charco antigo a rã salta
n'água - ressoar fundo.

Jorge de Sena (1919-1978)


Um templo, um tanque musgoso;
Mudez, apenas cortada
Pelo ruído das rãs,
Saltando à água, mais nada...

Wenceslau Moraes (1854-1929)


Ah! o velho lago
...o baque na água.

Paulo Murillo Rocha (publicada em 1970)

Exercício na Sala:

Foi submetido a apreensão o seguinte haikai, famoso, de Ezra Pound (1913)

"The apparition of these faces in the crowd:
Petals, on a wet, black bough"

(este poema é sobre o Metro)


Os meus primeiros haikai

Sombras são faces na cor da pedra
Os braços são ramos no chão.


Crescem faces húmidas na escuridão
Fora cai chuva no chão.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

duas possibilidades

duas possibilidades de alteração ao meu final:


matas o concreto
viverá para sempre
o devaneio


o corpo cessa de pulsar
e de mim...que sobra...

Clara Oliveira

primeiro ensaio sobre a "desinspiração"

"















"

Haikai

nada se escreve
tanto se entende

Clara Oliveira

Nada nem uma metáfora




Inspira, inspira, apenas o gato
Sossegado na corda da cauda
Que alisa o tecido de um e outro lado
da almofada.

Nada nem uma metáfora.

Os dedos aprumados na caneta
De superfície lisa, permanente
Tinta de uma “Parker” 75
Prenda de outros anos;
Despedida do Alexandre
Entrada na Universidade.

Mas nada, a folha em branco.

E agora depois de tanto tempo
Nem que queira, a tinta seca;
Os batimentos de cadência
O ritmo de pontos brancos
Que se iluminam de novo
Na cor preta
E não era assim costume –
Azul a cor
Os dias, a força, o presente sorriso
E um livro irónico e supremo
De um “Conde Sandwich”, aceso
Na invenção do piquenique;
O pão de forma, o ovo fatiado
Queijo, presunto, o tomate de salada.

E nada nem uma única palavra.

A folha em branco picotada
De bico seco e o tormento
De nem uma, uma única
Qualquer ideia. Nada.

De súbito olho o gato
Que estende a pata e solta as garras –
Penso logo, claro - a selva.
E abre a boca, uma língua de víbora
Dentes sinuosos, os olhos vedados
Claro, claro que vejo – as feras.

Agarro os olhos no cimo da mesa
Procuro de novo o tricot da caneta
E eis que alguém chega, abre a porta
Salta o gato, eriça-se a cauda
Cai a almofada, sopra o vento
Esconde-se a folha
E nada, desgraça.

Alguém chama –

Berlim


Lecha Walesa inicia a simbólica queda do muro (retirado da internet)


Erguer numa única palavra
a queda do muro
em cada pedra caída
a boa história - HUMANIDADE.
"I still have a dream"
de sementes largas
sorrisos brancos
um dominó gigante
nas ruas de Berlim.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

H.D. (Os imagistas)


Retirado do site Assirio & Alvim

H.D.

Hilda Doolittle nasceu a 10 de Setembro de 1886, em Bethelehem, na Pensilvânia, onde o seu pai era astrónomo e director do observatório da Universidade.
Hilda é conhecida como a melhor dos poetas imagistas, mas os seus feitos literários ultrapassam em muito os seus primeiros poemas, que se podem associar a esta corrente literária. A sua poesia, ficção e outros escritos foram publicados em ambos os lados do Atlântico, tendo recebido a medalha de Ouro da “American Academy of Arts and Letters”, “Brandeis University Creative Award” e o “Longview Foundation Award”.
Os seus contactos literários incluíam Marianne Moore, William Carlos Williams, May Sinclair, Richard Aldington, Bryher, D.H. Lawrence, T.S. Eliot, Gertrude Stein, entre muitos outros. Foi Ezra Pound, com quem Hilda Doolittle manteve amizade desde a infância, que sugeriu que a escritora assinasse com as iniciais, passando a ser conhecida como H.D.. Morreu no ano de 1961, em Zurique.


Priapus: Keeper-of-Orchards

I SAW the first pear
as it fell--
the honey-seeking, golden-banded,
the yellow swarm
was not more fleet than I,
(spare us from loveliness)
and I fell prostrate
crying:
you have flayed us
with your blossoms,
spare us the beauty
of fruit-trees.

The honey-seeking
paused not,
the air thundered their song,
and I alone was prostrate.

O rough hewn
god of the orchard,
I bring you an offering--
do you, alone unbeautiful,
son of the god,
spare us from loveliness:
The fallen hazel-nuts,
Stripped late of their green sheaths,
The grapes, red-purple,
Their berries
Dripping with wine,
Pomegranates already broken,
And shrunken fig,
And quinces untouched,
I bring thee as offering.



PRÍAPO
Guardador-de-Pomares

Vi a primeira pêra
A cair.
O enxame amarelo, listrado de ouro,
Em busca de mel,
Não foi mais veloz do que eu
(Livra-nos da beleza!)
E caí prostrada,
Chorando.
Tu, que nos flagelaste com as flores,
Livra-nos da beleza
Das árvores de fruto!

As que buscavam o mel
Não pararam.
O ar ressoava com o seu canto
E só eu me prostrava.

Ó deus do pomar,
Talhado em tosco,
Venho trazer-te uma oferenda;
Tu, o que não é belo
(Filho do deus),
Livra-nos da beleza!

As avelãs caídas,
Despidas há pouco do invólucro verde,
Os cachos vermelho-púrpura
De bagos
Gotejando vinho,
Romãs já fendidas,
E figos mirrados,
E marmelos intactos,
Eis a minha oferenda.

Tradução de João Ferreira Duarte "Leituras, poemas do Inglês" , Relógio de Água 1993

sábado, 7 de novembro de 2009

Caminho de casa em dia de chuva


Robert Doisneau "Musician in the rain"



Nos dias de chuva as cidades ficam paradas
os carros oscilam num castelo de lagos
as gotas inclinam em maior número
em trajectos mais longos, de curvas
enquanto caem nas faces, nas montras
nos plásticos.

Nos dias de chuvas esquecem-se os chapéus
encostam-se os muros e aqui e aonde
a protecção das varandas, os rostos de água
sem desenho.

Nos dias de chuva atravessam-se as ruas
de passos largos, quais Nosferatus sem capas
na procura de motivos - os sons, as palavras
os poemas de rio
as estrofes molhadas quando a água cai -


Poema "Haikai" no mesmo motivo:

Se a chuva preta as pessoas cinzentas
uma rede de peixes em linha recta
e os dias sem vento.

Amendoins (ou "about" inspiração (III))


(retirado da net)



Não sou capaz, bem tento que ele venha,
o tal olhar diagonal das coisas,
mas as pessoas surgem-me tão sérias,
tão capazes nos seus discernimentos .

À minha frente agora, por exemplo,
um grupo com cerveja e amendoins.
Se fosse um tempo antes, conseguia
fazer de amendoins um qualquer tema,

descascar um poema devagar
feito de amendoins, cerveja e gente.
Mas tudo me parece tão normal
e os amendoins coisas sensatas

[apanhados do prato vorazmente,
entre gestos nervosos e correntes
conversas baloiçadas]

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

De que forma te mato hoje?
Se não me enojasse o sangue,
já te teria aberto a cabeça em buraco de bala,
uma faca, quem se rala...


A cama o copo
a escova de dentes
dou-te a escova
não tens dentes

Vomitaste-me o veneno
Nem te caiu um cabelo

As bolas de sabão que não vês
eram bocados leves de seres
mas doi-te a gravidade

Nem uma lesão no empurrão
Abro o gás e foges num zás

Caí Caim
fui com as bolas de sabão
bolas que voam sem asas
Mato-me hoje, isso não te posso dar



Trabalho de grupo II
(Ana e Joana)

A oferenda de Caim

Deus Meu todo guloso!
A gula é pecado

Não gostas da salada, já se sabe
Pões de lado o puré e o feijão
E só comes o frade

Estás GORDO, meu Deus!

Um GORDO todo guloso
Não te ensinou teu pai que a gula é pecado?
Santa a tua mãe de te aturar tanto capricho...

Ai, meu Deus...
Não te bastou o bezerro
E queres de Abel as tenras nádegas

limpas
cortadas
apimentadas

Matei-o já! Meu Deus
Aqui tens o meu irmão

Abel marinado
Limão na boca e mal assado

Comaperna
Sugalhosso
Trincalholho
Roipescoço
As nádegas de boca cheia
Menhã, menhã até de manhã

Limpa a boca e coça o papo

E meu Deus, por favor!
Tira ao Chefe o chapéu
Agradece e diz
Adeus
Não tens mais de cozinhar
Parte para Leste
E dá a Buda teus vegetais

Eu te agradeço, meu Deus!

(Ana Janeiro)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

(exercício Goya e Manet)

Uma ausência de quase tudo
Um quase nada que imobiliza
E martiriza
Um estar-e-não-estar que adormece
E entorpece
Um querer fugir que angustia
E silencia
Um grito

ana lúcia figueiredo

É como…

1.

É como…

Cinzas em lume
O ciúme
Um gesto de dança
A vingança
Guardar um segredo
O medo
Ser sem vaidade
A verdade
Uma mancha incolor
A dor
Corte sobre corte
A morte
Inventar uma história
A memória
Olhar em perspectiva
A vida

ana lúcia figueiredo


2.

Corpos de algodão
Vagos
Prostrados por sobre a bruma
Distante
Ofegante desejo de fuga
Por entre a aridez da solidão
No chão
Rochas expectantes
Pela queda dos amantes

ana lúcia figueiredo

Carta ao Imperador Maximiliano

Arquiduque e imposto imperador ,
aceitaste a coroa a contragosto.

Do poder que te impôs Napoleão
não teve inteira consciência,
e nem mesmo os ricos latifundiários.

Subiu-te o império à cabeça: decidiste
ser todo-poderoso, ser discricionário,
e resolveste ser contrário e cruel:
antagonizar e matar foi o teu programa.

Mas Juárez, atento à desgraça em que caíste,
mandou fuzilar-te assim, algemado,
enfatuado no teu fato
e de sombrero aureolado. E é crível,
sem arrependimento.

Os simples assistiram ao espectáculo
talvez do teu poder horrorizados
e, quem sabe?, contentes de te ver
trespassado da pólvora dos fuzis –
um gigante tornado pigmeu, e nada.

Miramón e Mejia, os generais,
sucumbiram contigo de mão dada,
e nenhum deles era o bom ladrão,
nem Cristo estava por ali à mão.