sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

apaga o mais lentamente que puderes


Annie Leibovitz "Petra"

apaga o mais lentamente que puderes aquela luz acesa
como se não fosse filamento e antes a ondulante chama.
vem com a tua mão mais invisível e segura sem ruído o clic.
deixa imersa no quarto a grande sombra, a mãe de todas as sombras
porque o escuro guarda todas as possibilidades do branco.
vem com a palma totalmente aberta, as duas palmas totalmente abertas
vem sobre a febre do rosto e sente
um manto morno de palavras a assumirem os pulsos
a subirem os braços, a fecharem os ouvidos depois de entrarem.

permanece na ardência que não queima
mas é mais grave -
permanece como um grande mar, no escuro
nas três curvas de um búzio;
ondas, ondas, ondas e espuma -


segura com força os ponteiros.
sinto-me bem. sinto-me bem.
não deixes avançar o tempo -

Tempo


Fotografia retirada da internet

Tracei a linha por onde caminhara
E no fim o abismo –
Apaguei a luz e acendi estrelas,
Sentei-me a pintá-las no vazio –
Ilusório balão de oxigénio –
Então o horizonte era um intenso frio.

O tempo não é como a primavera. Faz a sua viagem
Sem retorno, e eu vou com ele, ainda que não queira.
Vou de mão dada contra o medo –

Move-se o fantasma viajante diante do abismo.
Acordo nesse instante em vigoroso tiquetaque
E acendo a luz do quarto. Não há ninguém por perto.

– A morte é uma ilha no deserto que terei de descobrir
Sozinho e a seu tempo –

2010.10.27
José Almeida da Silva

Ejaculatio Praecox (antecipando 2011)




Acaba-se de beber o ano que morre, em agonia decrescente, e começa-se imediatamente a beber aquele que nasce do seu extremo altruísmo mortal: a dádiva do seu nada ao próximo e ao porvir. Talvez haja, agora que 2010 se presta para o fim, como nos momentos em que a morte prefigura plena e minimizada na máxima conveniência dos casais combativos, um instante em que todo o templo da ortodoxia trema e se iluda no seu intervalo aberto e diferido, em que não haja a consciência aterradora do tempo, senão como eixo da contracção, arquipélago de instantes altamente instáveis e furtivos, para quem as máquinas persecutórias do tempo valem menos que uma mão sem indicador ou polegar.
Talvez se finjam núpcias e exemplos, uma esmagadora infecção na maioria do tempo, que, de repente, se torna alheio ao costume e à utilidade. Talvez tudo respeite o aspecto do ciclo e a determinação das épocas tributáveis e malsãs, a longa lenga-lenga das ruas expostas da cidade ao desmazelo e ao ludíbrio, com a sua invariância de vernáculo e a sua longevidade de animal de pulsação lenta e hábitos inusuais.
Somos feitos de grandes deglutições de tempo, parâmetros insubornáveis, coisas coerentes com a sua excelente extinção e falta de coragem para mais, e da decomposição lenta de tantos mundos cronometráveis e dedicados, oportunidades demitidas, fórmulas e vícios e âmbar, vimos agradecer a não sei quê ou a não sei quem os dados, responder à última carta da possibilidade à vida, sonâmbula, que agora, mais do que nunca, se julga merecedora de um novo coração.
2011 não será um dador de excepção. Pelo contrário, cumprirá com o protocolo temporal até ao seu último dia e doará também a sua mobília calculável a 2012, que é um ano, que apesar de tudo é anagramático, e eu sempre soube que os anagramas foram inventados por bebés para exorcizarem a passagem.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Uma mão perdura




Uma mão perdura na porta, entreabertas as águas e violado o script. Era suposto eu descer com cuidado as escadas, depois de me ter despedido de ti, apagar a luz ao fundo, bater devagar a porta à saída, e ir percorrer o caminho de volta de vez, esperando que houvesse pelo menos mais um dia parecido em tudo com aquele, mas melhor ainda, mais longo, oblíquo, coagulado e eléctrico.
Mas uma mão, esta noite, perdura demasiado na porta do teu quarto quando já te julgavas sozinha, apoiada num estranho projecto neurótico de um amante suicida, na louca acepção da maior das suas palavras e frinchas, alguém espreita agarrado à porta com a mão que perdura e entope as moléculas da madeira com mudas mas máximas intenções e extracto de ilegalidade e conquista.
Uma mão perdura. À excepção do cenário, que te recoloca num quadro da burguesia mais fantasista, onde o rococó é aparado pela elegância subterrânea dos requintes, preponderâncias agudas que irrompem entre sintomas de doenças ornamentais de cunho infiel, pequenas infecções arquitectónicas que se repetem e prolongam como símbolos da pequena monarquia do vício, verdadeiramente anti-constitucional e solene, o meu olhar concentra-se na fome do teu hábito e nas águas do teu hino, nas ondas do teu vestido principalmente, prevendo a sua inesperada utilidade severa, a ressurreição das distâncias impingidas até aqui.
Eis senão quando uma mão morre na porta, ou então atravessa-a sem dar por isso.
A porta desfere contra a parede o resto da sua idolatria.
Eu avanço para ti.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

há coisa de meia hora


Pierre Renoir 1880


sentei-me aqui há coisa de meia hora
porque pararam os ponteiros na cabeça
como uma corda mal enrolada, a tropeçar
a tornar lentos de tão lentos os segundos
há coisa de meia hora, digo, mais ou menos

de olhos fixos no espelho de prata
cor de prata acima do olhar, reflectindo
riscas , linhas paralelas de uma cortina
e outras linhas da janela, e vidros
vidros inteiros, também eles reflexivos.

as mãos rodam nas rótulas e depois param.
dói-me a cabeça.
as mãos rodam à volta do peito e depois param.
dói-me a cabeça.
as mãos rodam à volta das têmporas e depois param.
dói-me a cabeça.
depois pára o tempo, os ponteiros, o relógio, a cabeça
e permaneço imóvel com os braços cruzados sobre os pesadelos.
há mais de meia hora.
dói-me a cabeça.

subitamente, enviado de um pôr-de-sol laranja
um raio mais forte toca a superfície do espelho e obriga a fechar os olhos.
há algumas tremuras como massagens invisíveis nas arduras da nuca
e ao mesmo tempo um sono de dor, suave e lento, um sossego

e adormeço sem ruído, o rumor avariado da cabeça -

domingo, 26 de dezembro de 2010

Presépio


Jesús de Perceval "A carícia" 1940


Tu nascias todos os anos
Nas palhinhas das bolas de sabão,
Que eu cortava à "garçonne"
Como as franjas do meu cabelo.
E na gruta, que o musgo prendia e
atapetava.
Se tornavam palhinhas manjedouras.
Era para mim um mistério
Que, pela Páscoa, frequentemente em
Abril
E, às vezes, até em Março,
Pudessem crucificar-te, adulto,
E expor, solenemente o teu corpo morto,
Nunca enterrado, pela ruas da
cidadezinha.
Como puderas crescer tão depressa?
E que crimes tinhas cometido?

Luísa Dacosta

(Este poema foi enviado pela Teresa Almeida Pinto a quem agradeço a partilha)

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Morte em Veneza



Que rara realeza nos possuía, no exacto momento em que atravessávamos a Piazza San Marco, indecifravelmente e a pé, na inexplicável folia de quem detém e ostenta o edema da essência na precocidade dos caminhos, numa cidade coberta de arte extraterrestre, ao fim e ao cabo fotografias de espelhos e labirintos (não necessariamente por esta ordem e ritmo, causa ou consequência), recessos onde uma fonte nos falava alto e abertamente do tempo inadquirido, como só uma ferida aberta na consciência pudesse esse perfume obter?
Entrávamos assim na História Imaterial de Veneza (HIV positivo), na proporção de fantasmas de gesso e atavios, para provar dessa inaquisição total, dessa pobreza veloz e autêntica que é ser patético, com o ar de quem está a ser, de facto, muito feliz.
“Olha, mamã, são seres do planeta Prestígio!”, pudemos ouvir entre as arcadas uma criança dizer. Mais tarde, abordou-nos um casal apaixonado que queria que lhe lêssemos o destino. Mais tarde ainda, a chuva perspicaz no modo como negociava com as transparências na face do teu sigilo, uma vez arrombado o arcanjo e violado a impostura da cosmética correlativa, exposto o teu púbis aos Verões insociáveis do meu féretro.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

feliz natal

lado a lado e em frente


Cartier Bresson


nem sempre as palavras dos versos
reflectem subtilezas e argumentos
são no entanto as nossas claridades
luta de palavras, tempestades
luminosidades abruptas
o azul e o escuro
cenas quotidianas ou de absurdo
por vezes uma queda brusca
uma descida plana a um nível mais humano
ou a subida aos céus de Júpiter e Saturno
de vez em quando um olhar gasto de inverno
e do mesmo modo um despertar de primavera
mas sempre um caminhar persuasivo e insistente
lado a lado e em frente
por espaços mais abertos, transcendentes

e podemos voar e podemos ser aves
mariposas ou teclas brancas
e ainda resguardados nos dedos dos deuses
um mar calmo, um prado verde
uma nuvem de surpresas
mas sempre sempre
lado a lado e em frente -

Elegia Nuclear

Os teus olhos são um duplo-poço onde mergulho e nado,
tal como o sol afundo-me neles, nasci antes da criação da rede,
quando os vários faxes das redacções dos jornais europeus emitiam um ´
barulho ancestral para comunicar a explosão de um reactor, o sol mergulha nos teus olhos, a terra quente aquece os teus pés, perco-me em ti,
nos teus olhos que vejo de uma perspectiva múltipla, irmã da memória e da sedução,
ver tudo ter fome de ver, virar páginas com força, o vento? O bater de uma porta? Os homens por trás dela. Atiraste os dados e saiu a vida, e atiraste os dados e saiu a Vida: Adoro-te, o mesmo pode ser dito em outros dialectos, em outras linguagens, no som dos golfinhos, no acasalamento das baleias, nos sons submarinos de um Mahler que procura uma ametista – Mahler está no céu, Papini está no céu, Bataille está no céu, seja ele bem fundo ou bem elevado, a obra perdura, não se podem apagar as riscas, a melhor forma de conservar um passado indesejado fora do alcance, é criar um passado com riscas mais claras, nada se apaga, tudo se reconstrói, cria, traça, fala por cima, e isto já foi dito – o milagre não é uma laranja ser redonda, o milagre é as laranjas já serem esféricas, um paralítico, escorre-lhe azeite negro pelos beiços volta a cair no prato ou na babete, ou nas bordas das paredes do Universo, várias cores, resta-me a sinceridade e a saliva de todo o mundo, tenho sede de uma perspectiva múltipla, beijo-te o colo, os braços, as ancas, duas línguas entrelaçadas desde o fim da Etrúria, um abraço pré-hispânico em tudo moderno e contemporâneo da tempestade, repito-me, salto de textos para outros, escrevi sempre um mesmo texto, porque escolhes sempre motivos tão obsessivos, estrela contra estrela – na auto-estrada. Os braços apertados num abraço quente, a febre siamesa dos que aquecem, os braços entrelaçados num abraço quente, tudo o que aquece e acende, é múltiplo esse aquecer, mergulho e nada no duplo-poço, tal como Milton amo tudo quanto fluí e tenho pressa muita pressa de dizer tudo, de ficar com o palato preso numa única sílaba DAP DAH DAP DAH – Atravesso-te a bruços o peito, as ancas, a nuca, lambo-te as orelhas, e apareceu o Fernando Chinês, quer comprar haxixe, o Fernando Chinês com os seus olhitos em bico: Fomos de táxi ao Aleixo e na cave escura cheia de seringas no chão sentimonos como se tivéssemos inalado a Austrália toda, uma Austrália fluída e volátil, com um espelho no seu centro a reflectir cangurus e deserto vermelho para todas as direcções, a cada aspiração parecia que fumávamos não só um continente, mas a febre de todas as siamesas, os sonhos de todos os sósias, os cangurus dentro dos pulmões de vidro, os cangurus a reescreverem a história, expirámos, sentimos todos os nervos seguros, ele lê-me as cartas, diz-me que como escritor sou repetitivo e obsessivo. Tenho muitas imagens como a câmara escura, absorvo a luz do sol para tirar uma imagem perfeita, como se de uma grande angular, o acelerador de partículas está no meu pulso esquerdo, no meu pulso direito a tempestade, conto os minutos pelo tempo que o soro demora a entrar, um litro inteiro nas veias, tempo á deriva, tempo que se inscreve em aulas de dança de salão, com muitos braços, ele dança bem, duma ponta à outra da Austrália, há um duplo túnel que se bifurca várias vezes, nesses nós encontram-se homens que consertam relógios e meninos que tocam carrilhões suíços, no metro as pessoas passam depressa, os carrilhões continuam a tocar, um ou outro anjo passa também, com os seus dentes cariados à procura de uma sensação de um todo, ajuda-os a mudar o carrilhão. Aqueço-me à escala humana, a mais perigosa e maior, deserto líquido a entrar por ti dentro: Adoro-te.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Trago o Natal no fundo do olhar


Cartier Bresson


Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo em que a alegria
Era um lugar de crença seguro
E protector e os doces o calor
Da ternura que a casa oferecia.

Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo a correr pela cidade
[Evocando o amor e a fraternidade
E esquecendo o frio e a dor]
– Agora, desumanidade e elegia.

Trago o Natal no fundo do olhar
Esse tempo que foi simplicidade
E em que eu acreditei num mar
De gestos que eram então realidade.
Hoje, o Natal é apenas utopia –

Promessa à espera da alegria
Aqui tão perto e no Mundo inteiro.
A Fome e a Guerra são no entanto
Ameaça séria e duradoura, um pranto.
Não há ouro que baste aos senhores!

Trago o Natal no fundo do olhar –
Natal, 2010
José Almeida da Silva

a canção de natal


Sebastião Salgado



madrugada
quando alguém bateu à porta
o ponto final no sonho.

duas gotas corriam por sobre a pele, lentas
descendo as têmporas como se sabendo
as razões escondidas.

a preto e branco uma ponte de barcos sobre um rio
dois salgueiros em várias cores de cinzentos
duas figueiras sem figos doces.

outros tempos de há muito tempo
quando os leitos mais pequenos, por volta da volta
das borboletas, molhavam as raízes ainda verdes
das videiras de bagos a crescer, cheios de sede.

era uma tarde morna junto das amoreiras
a melopeia chilreada dos pardais.

brincávamos às prendas
dois laços de ráfia, dois embrulhos de pedras de lousa negra
e depois imaginávamos
aqui te ofereço um anel de ouro
vindo dos desertos mais perigosos da Virgínia.
aqui te entrego um tecido de seda, da china mais profunda;
sete meses de viagem pelas neves brancas, pelos lugares dos pés apertados.

o ceremonial, a humildade ingénua de uma cabeça baixa e um sorriso tisnado
os pés lavados nos pós secos do largo apagando e escrevendo mensagens.

o teu vestido um pouco manchado repleto de amoras
os dedos eram não muito finos, compridos e traziam almofadas
usavas duas tranças de índia que sorriam
eu tinha o cabelo espetado e joelhos riscados
calções de alças
e de vez em quando as mãos
dividiam dez azeitonas e um pouco de pão.

lembrei o sonho e as duas gotas que não sabia como.

no natal seguinte partiste para Helsínquia -

durante o sonho, um rosto sem rosto de cabelos lisos
cantava um jingle bells em sotaque estranho

e trazia o mesmo vestido -

E U T A N Á S I A

Texto poético com base em Poema com o mesmo título:

Após prolongada enfermidade foste herói, e nós fomos sempre teus bons e abnegados amigos. Quisera a tua maléfica sorte que em Dezembro de 2008 tivesses que optar pela vida, e assim espalhando coragem e glória voltaste a ser um animal simpático, em simultâneo cordato e orgulhosamente adaptado à ausência parcial de um membro. Aceitaste e integraste com galhardia o uso do aparelho protésico, como se fosse um verdadeiro prémio pelo teu comportamento.

Ensináste-nos que também no vosso mundo a vida é feita de combate e de exemplos de luta. Mas porque a vil senectude não perdoa, na proximidade dos teus onze anos e meio foste invadido pela cobarde degenerescência artrósica que os músculos te atrofiou, esqueletizando-te as ancas e as coxas, impossibilitando-te a assumpção voluntária da postura quadrúpede de que tanto necessitavas para teus pequenos mas maviosos deleites.

Ela infernizou-te a marcha e então decidiste ter teu fim optando agora por não viver!
Olhavas os nossos olhos suplicando entreajuda em busca da nossa cumplicidade no sentido do teu caminho para um breve mas vital passeio. Não gemias, nem tinhas esgares.

Nós compreendemos o teu silêncio e fomos de encontro ao teu pedido de tranquilidade e derradeiro sossego: demos-te toda a paz que querias ter, e agora vives em nossas mentes sob enormes saudades, meu lindo rotweiller! Teu nome Dundee prevalecerá na penumbra de uma videira ao fundo do pomar, por onde tanto brincaste e fatigado repousavas sem de nós afastar teu olhar quase humano por tão afável e carente.

A vida pertenceu-te e soubeste espalhar "autoridade", mas também uma contagiante dignidade que te acompanhou até tua térrea morada, onde agora tua imagem vive envolta naquela manta branca que nos últimos dias de dôr (para nós) tanto te protegeu e em silêncio acarinhou. Sobre tua campa rasa, quero que saibas, ainda permanece um pequeno vaso florido desde o dia em que te sepultamos...

(António Pinto de Oliveira, Outubro - 2010)
- Livro " Poemas de Vidas " , a publicar em 2010/2011

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Alexandre Bloom



Alexandre Bloom é um grande coleccionador de despedidas. Começou por sentir um prazer rasante, porém incerto, perto da palavra adeus no dia 23 de Outubro de 1955, enquanto se despedia do senhor da loja de ferragens epónima – Augusto Kunh –, onde costumava entrar regularmente, apenas para pousar os cotovelos no balcão de madeira e sentir, com os dedos polegar e indicador unidos, aquilo que ele acreditava ser o idioma débil do serrim.
Nesse dia, contudo, ao despedir-se tranquilamente do senhor Augusto Kunh como de costume, Alexandre Bloom sentiu o tal formigueiro nas imediações da palavra adeus mal a proferiu, como se de dentro da palavra adeus chegassem agora aos seus ouvidos os ruídos abafados de uma festa semi-clandestina, como se as portas blindadas da palavra adeus não fossem suficientes para insonorizar o barulho ensurdecedor dessa festa, para a qual – propôs Bloom – todos os convidados deveriam atender ao dress code e levar vestido alguma peça de roupa trágica e imaterial.
Apesar de todos os esforços para entrar na festa que se prolongou durante toda a noite de 23 para 24 de Outubro de 1955 na palavra adeus, Alexandre Bloom nunca conseguiu distinguir muito bem de onde é que vinha o tal barulho e acabou por não encontrar a entrada de emergência da festa, embora tivesse ao longe ouvido os distúrbios causados pela música alta dentro do seu desejo de a possuir.
No dia seguinte, Bloom voltou à loja de ferragens de Kunh só para poder despedir-se dele (“Olá, Senhor Kuhn; adeus, Senhor Kuhn”) e, com isso, accionar a festa (para a qual nunca resgatou nenhuma possibilidade de convite), e deixou definitivamente de lado a história do serrim.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

HOMEM NO ARAME - POEMA - SYLVIA BEIRUTE

















HOMEM NO ARAME

O essencial é delinear movimentos no céu. Movimentos
tão silenciosos que não deixem traço. O mais importante é a simplicidade.
É por isso que o longo caminho para a perfeição é horizontal.
..............Philippe Petit

e ele tenta incomodar a inexistência.
o nada lá em baixo. o ninguém de tempo
solto e explicações ofídicas.
a pessoa certa está por cima das nuvens.
como se se pusesse longe.
como se escondesse o medo.
como se se escondesse do medo.
e o arame da voz nos pés. o arame da voz
é agora cada coisa, cada janela aberta para
um sono de letras que desorbita
o queixo do mundo. o queixo
na forma de uma desforma do mundo
que lê marx e leminski, conhece
antíteses terapêuticas, predomínios
estranhos no desejo de um corpo de lugares.
e ele continua connosco. philippe
petit entre as torres gémeas, incomodando
a inexistência, sorrindo sobre a saudação
do coro, escamas de palavras que o orgulham
e cegam.

Sylvia Beirute
publicado no blogue "uma casa em beirute"
.

microgramas de azul sobre o frio - um poema de natal


Fotografia retirada da internet


o oceano azul e o céu azul.
procuro olhar a definição da cor que dizem fria
a cor que não tem tempo para a boca dos humanos
os que inventaram a escrita

procuro olhar a cor máxima de infinitos
o plâncton dos mares as nuvens na planície
a cor calma e pacífica
apesar da guerra dor e fome
e como mata a fome e como corta a fome
sem privilégios de natal todos os dias

procuro olhar o azul do burburinho
as canções que ressuscitam Lennon
e a anarquia dos sentidos
os coros angelinos nas vestes brancas
as iluminadas ruas da crise
procuro olhar todos os olhos
que apesar de alegres, tristes

procuro olhar o azul, a cor preferida
o lugar magnífico da utopia

e não interessa, não interessa mesmo
se é de anjo ou de bandido
a mão que traz o pão
que tira a fome
que tira a dor
que tira o céu escuro
no segundo mais importante do alívio

ética, demagogia, democracia
uma fila ordenada de filosofias
palavras, apenas palavras para um estômago vazio
sem a estrela iluminada, sem os reis magos
migalhas mínimas, um pó de sonhos

e algumas microgramas sobre o frio
no futuro dos dias -

domingo, 19 de dezembro de 2010

Miguel Torga - Um conto de natal


Hiro Yamagata "A fogueira na neve" 1983


De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções são que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.

E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez reis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.

Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!

Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.

Vá lá! Do mal, o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! — desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

— Consoamos aqui os três — disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. — A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga

sábado, 18 de dezembro de 2010

a asa o anjo um remo sem barco - um poema de natal


Henri Cartier-Bresson


sabes, não posso esquecer os anjos
suaves, como os céus desconhecidos
onde planam límpidos -

eram cinco horas da tarde e a sombra acinzentava
a claridade dos basaltos.
muitas eram , muitos eram e em muitos passos
na feira de utilidades.
usava aqueles óculos de tartaruga de muitos anos
de lentes castanhas e passeava sozinho
com a calma de ser sábado.

muitos ombros, muitos olhares
entre os foles das máquinas, as canetas de aparo
os livros já antigos, e até um cachimbo
na sua pose sentada de um remo sem barco.

um intervalo, sim um intervalo, porque fruto do acaso
apenas passava da mesma forma que um certo vento
e a luz de uma sirene azul, à frente
naquele lugar, que se tornava livre e convidava
a um intervalo, um intervalo por acaso
como aquela asa por acaso
uma simples asa de barro, frágil, sem o esmaltado.

ainda perguntei, mas ninguém… limitavam o passo
e mesmo sem compreender, avançavam
avançavam como relógios cronometrados.

a asa branca com aqueles redondos de um lado
na forma de boomerang, a asa.
perdi-me no instante poético de um sinal
um símbolo, a época especial
uma asa, uma asa de um anjo
de lá de cima.

comovi-me com a imagem, um anjo no ar suspenso
deixando cair espírito para se tornar no pequeno barro
e sabes, se naquele momento por ali passasses
colocaria uma mão aberta sobre o teu rosto
e com o outro braço em forma de asa
assim de repente, abraçava-te -

depois passeava os dedos pelos teus cabelos
assim abertos, assim separados
e voltava ao rosto suave com a palma
e sem mais nada, mesmo sem palavras
abraçava-te, abraçava-te -

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Nota 4



Marc Chagall "Promenade"

Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!

Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!

Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!

Se tu amas por causa da inteligência, então não me
ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural!

Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre!

Adília Lopes

sabes


Renée Magritte


sabes, não pretendo ser chato
nem bordar todos os dias as malhas gasosas
a filosofia, aquela procura infinita
a realidade de nada ser e uma possibilidade de
um dia, algum dia, fazer parte de uma alínea
de um tratado de fórmulas científicas
se y igual a n e x variável dentro de z .

mas sabes, não pretendo ser chato
andar de roda de um círculo
e dizer que, tudo de novo, nada é
daquilo que podia ter sido
e sendo assim, será diferente, do mesmo
do mesmo de outro dia.

sabes, não pretendo ser chato
portanto, pouso os versos no prato
tempero, corto, recorto, e acrescento
depois aprecio o aspecto de um instante
deixo arrefecer, de quentes vapores
e protejo, com película aderente -

ah, não pretendo ser chato
mas, como sabes, os versos, são setas
impacientes, e sinto a dúvida se depois de frios
o efeito, mesmo o sentido… ponho-me a pensar…
e cai-me em cima o Platão, de vestes brancas
e a caverna, a luz, o perigo das sombras
a alegoria -

e lá volta de novo a filosofia -

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

A Perenidade das vírgula - JLP e Saramago


Fotografia retirada da internet


Procuro o que aprendi entre o que sei.

Conheci José Saramago em Outubro de 2001 no instante em que recebi o prémio com o seu nome. Ele era um homem mais alto do que imaginava. Eu tinha comprado um fato e uma gravata para a ocasião e, no mês anterior, tinha feito vinte e sete anos. Tirámos fotografias juntos, jantámos. As imagens que guardo desse dia misturam-se umas com as outras, confundo-me ao recordar esse dia. Sei que, mais tarde, à noite, ainda de fato, fiquei sentado no meu carro a tentar organizar na cabeça o que me tinha acontecido. Dois dias depois, estava na Feira do Livro de Frankfurt.

Ao longo destes nove anos, tive muita oportunidade de conversar com José Saramago. Encontrámo-nos em vários lugares do mundo, onde ele era sempre seguido por multidões, e encontrámo-nos em Portugal, em momentos escolhidos por ele. Em 2003, num programa de televisão em que estivemos juntos, para toda a gente ouvir, disse muito daquilo que, então, me dizia. No dia em que foram assinados os papéis da Fundação José Saramago, na sua casa de Lisboa, em 2007, só para eu ouvir, chamou-me à parte e disse-me palavras que não esqueço sobre aquilo que escrevia. Creio que fui capaz de, à minha maneira, aprender essas palavras.

Em Dezembro de 2008, recebi um convite para participar numa celebração do décimo aniversário do seu Prémio Nobel. Pediram-me que lesse um excerto da obra de Soeiro Pereira Gomes. Eu, numa homenagem ao José Saramago, a ler Soeiro Pereira Gomes, como poderia recusar? Escolhi uma parte do final de Esteiros. Depois, quando encontrámos tempo para conversar, disse-lhe: havemos de estar aqui, daqui a dez anos, a celebrar o vigésimo aniversário do Nobel. Ele, que tinha ultrapassado problemas graves de saúde, sorriu-me.

Para além destes encontros mais formais, os fatos que eu usava às vezes e que ele usava quase sempre, guardo outros. São meus. Os nossos encontros eram salpicados no tempo e, como vírgulas, pontuavam qualquer coisa. Passaram dez anos sobre a data em que publiquei o meu primeiro livro e agora, neste momento, parece-me que esses encontros com José Saramago foram pilares invisíveis desse tempo. Há os livros, os deles e os meus. Não falo nem de uns nem de outros porque esses não se perderam, continuam onde sempre estiveram. O que se perdeu foi um homem que respirava pensamentos. O que não se perdeu e não se perde é o que fomos capazes de aprender com ele, o que continuamos a saber.

José Luís Peixoto
(Publicado na revista Ler, em Julho de 2010)

Garras dos sentidos - a ironia e o desafio de Agustina


Fotografia retirada da internet


Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos.
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.

São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas.
Não quero cantar amores.

paraísos proibidos,
contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.

São demência dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.

Da má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.

Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos.

Agustina Bessa-Luís

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

o sol de inverno


Edward Hooper "Gente ao sol" 1960


os raios brotam como ramos doces, objectivos.
de poucas folhas sobre o rosto
abrem o momento esperado de um calor
um abraço indirecto, um xaile transparente
que anima o quadro de uma rua em movimento.
suave e invisível afecto, por sobre a testa
dedos de ar sobre os ombros, um puxar de orelhas risonho
um círculo quente na roda de uma maçã ascendente
à volta do queixo branco e de pontos minúsculos
cinzentos -

o sol de inverno tem o não lugar, a existência sem ser vida
assim como aquela montra tem revistas
aquela porta é alta e azul, e a igreja está fechada -

o sol de inverno é absoluto no paradigma, de transcendência.
em cada mícron do segundo tem, em todos e ao mesmo tempo
o grão puro do espírito que atravessa o espaço e domina o mundo

o sol de inverno passeia pela rua e não comunica
nem precisa -

Reportagem


Egon Schiele " A pequena cidade" 1916

Aborrecido, passeio
Pelas ruas da cidade.
Deixei agora o Rossio
E atravesso o Borratém.
Deu meia-noite pausada
No Carmo. Um amigo meu
Passa e tira-me o chapéu.
Paro a uma esquina. Esmoreço
Numa saudade que surge
Dentro de mim não sei como:
Uma saudade infinita,
Misto de choro e revolta.
Alguém me chama no escuro:
Volto a cabeça. A uma porta
Um vulto mexe. - Sou eu!,
Não fuja, sou eu... - Mas quem?
Retrocedo, não conheço
A mulher que me chamou.
Na verdade ninguém ouve,
Ninguém distingue o apelo
Do amor que anda perdido
No mistério de mentir:
Deixo-a ficar onde estava;
Dou-lhe um cigarro e um sorriso
Dizendo que vou dormir.
Atira-me boa-noite
Num frio olhar de ofendida.
Meto à rua do Amparo
A perguntar se esta vida
Não terá finalidade
Menos sórdida e banal?
Atafonas. Uma Igreja.
Mais acima o Hospital.
Um marinheiro propõe
A esta que atravessou
A rua do Benformoso
Irem tomar qualquer coisa
Na Leitaria da Guia.
Ela pára. É uma catraia
Que talvez não tenha ainda
Dezasseis anos. Bonita.
Devagar vou-me chegando
Xaile, uma blusa, uma saia...
E oiço a fala dos dois.
Ele parece uma onda,
Impetuoso, alagante.
Ela é um breve bandó
Num corpito provocante.
E seguem... Ele, encostado,
Muito encostado e aquecido
Lá vai como se encontrasse
Um objecto perdido
Que foi milagre encontrá-lo...
Cortaram além!... E param?
Oiço o rebate de um estalo
E um grito subtil de prece
Amedrontada na fuga...
Desço ao Marquês do Alegrete.
Um candeeiro sinistro
Numa casa que se aluga...
Vejo um polícia. Arrefece.
Um grupo de três sujeitos
Discute o vinho de Torres.
Varrem as ruas. Um gato
Bebe água numa sarjeta;
Uma carroça parou
Carregada de hortaliça
Junto à Praça da Figueira.
Corto a rua dos Fanqueiros
Já um pouco estropiado...
Acendo um cigarro. A noite
Lembra um fantasma assustado...
Chego ao Terreiro do Paço.
O arco da rua Augusta
Parece mais imponente
Na minha desolação...
Vou até ao cais. Em baixo
O rio bate sem reacção...
A maré vasa. No céu,
Vão-se apagando as estrelas.
Um guarda-fiscal dormita
Na guarita, mas de pé.
Um velhote com um cesto
E uma lata vem dizer-me
Se eu quero beber café.
Num banco de pedra. Cismo.
E ali me fico a cismar
Em coisa nenhuma... O dia
Principia a querer ser
Mais um passo na incerteza
Das nossas aspirações...
As águas do rio a escutar
Parecem adormecidas...
E o dia nasce! Vem triste,
Nublado, fosco, cinzento,
Enquanto pela cidade
A vida acorda e desata
O matinal movimento

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

de que forma se pode lançar uma semente


Robert Doisneau


de que forma se pode lançar uma semente
para que cresça, sem a intempérie do tempo?

pelo amanhecer longínquo colhi um ramo de pinheiro
manso, de pequenas agulhas, verdes de um rosto
brancas no outro. O aroma era imenso
não doce nem sidra de acidulada fruta
mas uma permanência suave de uma floresta
distante e escondida.

pelo amanhecer longínquo colhi um ramo de eucalipto
não o de folhas compridas e largas fazendo lembrar espadas
mas um outro, de redondas e pequenas, simples círculos.
também o aroma era pleno, mais ácido e penetrante;
os pulmões frescos subiam a âncora, desciam o rio
na impulsão inquestionável do perigo, a rugosidade
áspera no leito liso, tão difícil de descobrir.

pelo amanhecer longínquo, julgo que foi em Abril
subi a encosta íngreme para encontrar a proximidade do azul
o lugar para lá das nuvens onde dormiam as palavras aves
lançadas ainda mal acordadas sobre o abismo
onde o ar era muito
e sendo assim, talvez abrindo as asas
no inato, nos genes adquiridos, sobreviventes
vivas como os cronómetros infinitos.

pelo amanhecer longínquo acordei numa praia
como um sonho inacabado, de chinelos e pijama às riscas
lembrando tudo, o pinheiro manso, as folhas de eucalipto
o barco deslizante, a montanha
as palavras aves sobrevoando indefinidas -

e um mar, um mar na sua constância de sal
qual mistura ácida na substância alcalina
perguntando sempre, à leveza das ondas
à sua dimensão mais branca, de que forma?

de que forma se pode lançar uma semente
para que cresça, sem a intempérie do tempo?

Quero definir-te o que é este sentimento


Charles Dermuth "Love" 1928


Quero definir-te o que é este sentimento:
o que pertence à esfera daquilo que a razão
não domina, ou simplesmente nasce da noite,
e de tudo o que a envolve. Falo de uma
íntima relação entre os seres, de emoções
que se transmitem para além de palavras e
conceitos, de um encontro de corpos na
esfera do segredo. Dir-me-ás: "Para que
precisas de uma explicação para o amor?"
Mas é a sua inutilidade que me interessa;
a dádiva, o simples dizer que as coisas são
assim porque são, e para além disso tudo
se complica. Podes, então, rir do que te
digo; ou simplesmente dizer-me que as
palavras nada substituem, e que tudo o que
elas nos dão está a mais. Mas o amor
pertence-nos. Não o podemos deitar fora;
nem fingir que não existe, como não existe
o infinito, a transcendência, a abstracção
divina, para quem só crê no concreto. É
verdade que o amor não se vê: o que vejo
são os teus olhos, a ternura súbita das
suas pálpebras, e o que elas abrem e
escondem numa hesitação de luz. Eis, então,
o que define este sentimento: um intervalo,
uma distracção do tempo, a divina abstracção
do infinito na transcendência do real.



Nuno Júdice

domingo, 12 de dezembro de 2010

Sabina Fields



Não é fácil falar de Sabina Fields. Ela apareceu numa manhã de Inverno de 1997. E a partir desse dia não mais descansou. Sabina é, de facto, um fantasma muito influente, talvez mesmo um dos meus melhores fantasmas, se exceptuarmos todos aqueles que se instituíram.
Lembro-me perfeitamente da noite desta fotografia: era uma noite varrida pelas intermitências da chuva fina que caia diante de uma luz mesquinha e incongruente, uma noite onde o nevoeiro tinha descido mais cedo sobre a cidade parcialmente abduzida, como se o tempo tivesse sido contratado por amantes ou assassinos, que ofuscassem a ordem com as costas das mãos da sua lei. A lua tinha o perfume das antevésperas e a tua pele cantava o seu retrato contíguo. Sabina sabia que vestia um vestido preto, muito curto, e que o vestido se afeiçoava aos seus contornos como ninguém, e que os seus contornos mordiam os meus olhos como serpentes sem paz nem domicílio, e que o seu corpo branco e indigno era como a mais bela nação inimiga de sempre, e que a sua ágil rendição de leite vulcânico, luvas negras e boquilha longínqua, não tinha tradução na minha língua tradicional, veiculados já os sinais exteriores de infecção e riqueza, como que para perturbar todos os emblemas terrestres, dir-se-ia mesmo para desmembrar todas as antigas rotinas e feitorias, na sua mais tenra espessura trágica e experiente.
A fotografia marca um momento em que, logo depois de descalça e levemente meditativa, Sabina acende um cigarro na ponta longínqua da sua boquilha e olha com a obliquidade máxima dos seus olhos para mim, que a pretendo convencer para a eternidade do meu erro. Tínhamos feito amor pela primeira vez, depois de termos seguido todas as pistas que nos obrigaram até ali: e ali era o seu quarto confortável e descortês, as suas próprias pistas, restos de preservativos que falharam por segundos ou milímetros ou mistério, elementos básicos de cenografia, curiosidades, pequenos detritos, e a pose mimética do gato Azahar, que parecia actuar mais como uma peça do mobiliário ambíguo do que como uma fonte fechada de perspicácia moderna.
Tinha 22 anos. E o vírus de Sabina Fields.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Liu Xiaobo - Não tenho inimigos



NÃO TENHO INIMIGOS: A MINHA ÚLTIMA DECLARAÇÃO
(EXCERTO)

cumpro a minha sentença numa prisão tangível, enquanto tu esperas na prisão intangível do coração. o teu amor é a luz do sol que salta os altos muros e penetra as barras de ferro da janela da minha prisão, golpeando cada milímetro da minha pele, aquecendo todas as células do meu corpo, permitindo-me sempre manter a paz, a franqueza, o brilho no coração, e encher de significado cada minuto do meu tempo. o meu amor por ti, por outro lado, é tão cheio de remorsos e lamentos que me fez cambalear perante o seu peso. eu sou uma pedra insensata no deserto, chicoteada pelo vento violento e chuva torrencial tão fria que ninguém se atreve a tocar-me. mas o meu amor é sólido e afiado, capaz de perfurar qualquer obstáculo. e mesmo que eu fosse esmagado e me tornasse pó, eu ainda usaria as minhas cinzas para te abraçar.
.
Liu Xiaobo
tradução de Pedro Calouste

Retirei este excerto do blog da Sylvia Beirute (http://sylviabeirute.blogspot.com/2010/12/liu-xiaobo-poemas-poesia-analise.html#comment-form)no qual se pode também ler, um magnífico artigo e vários poemas do actual Prémio Nobel da Paz.

depois do dilúvio


William Turner "A manhã depois do dilúvio"

foi apenas a manhã escondida na brevidade nebulosa
aqui e ali um raio, um foco, no amarelo branco de sol
e a inércia de não conseguir mexer as pernas
aquelas pernas por dentro, os sentimentos
desentendidos a assobiar no ar as melodias
querendo tudo dizer e depois tão calados -

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

E por vezes


Edward Hooper " Sol num quarto vazio" 1963

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos


David Mourão Ferreira "Matura Idade"

este desejo imenso de fazer nascer chocolates


Caspar Friedrich " Homem e mulher contemplando a lua" 1820


este desejo imenso de fazer nascer chocolates
o sabor intenso de um intervalo doce
como uma mão sobre o ombro, que acontece
no abraço natural, um grande aperto
que apague a mágoa, o momento incerto
e estreite os seios como margens
um rio ao longo da natureza
que desce até ao mar
a um lago sossegado
onde a lua e as estrelas -

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A invenção do amor


Javier Clavo "Amor" 1970


Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da
defesa passiva
Todos Decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas


Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da contaminação
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inex-
plicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem
razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicó-
logos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que se fala no cartaz colado em todas as esquinas da
cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das
normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas


Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo


Que todos estejam a postos Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem a polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa


Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer
às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades
individuais
a inviolabilidade do domicílio a habeas corpus o sigilo da
correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mullher
amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
Mas defendam-se de entender a sua voz Alguém que os
escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado
de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
Lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa nas montanhas

Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal
maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com
orquestra privativa
Não estarão nunca tu Procurem-nos nas ruas suburbanas
onde nada acontece


A identificação é fácil Onde estiverem estará também pou-
sado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí Engatilhem as armas invadam a casa disparem
à queima roupa
Um tiro no coração de cada um Vê-los-ão possivelmente
dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da
mulher

Mas ai de vos se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr
o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também per-
didos para nós
É preciso nesse caso ler coragem para desfechar na fronte
o tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige



Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido á vossa mesa crescido a
vosso lado
matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procuram a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do pais da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
una voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se
que situação vai atingir o climax
e a policia poderá cumprir o seu dever


Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
A voz do locutor definitiva nítida
Manchettes cor de sangue no rosto dos jornais

É PRECISO ENCONTRÁ-LOS
ANTES QUE SEJA TARDE

Já não basta o silêncio a espera conivente o medo inexplicado
a vida igual a sempre conversas de negócio
esperanças de emprego contrabando de drogas aluguer de
automóveis
Já não basta ficar frente ao copo vazio no café povoado
ou marinheiro em letra afogar a distância
no corpo sem mistério da prostituta anónima
Algures no labirinto da cidade um homem e uma mulher
amam-se espreitam a rua pelo intervalo das persianas
constroem com urgência o universo do amor
E é preciso encontrá-los E é preciso encontrá-los

Importa perguntar em que rua se escondem
em que lugar oculto permanecem resistem
sonham meses futuros continentes à espera


Em que sombra se apagam em que suave e cúmplice
abrigo fraternal deixam correr o tempo
de sentidos cerrados ao estrépito das armas
Que mãos desconhecidas apertam as suas
no silêncio do pressago da cidade inimiga


Onde quer que desfraldem o cântico sereno
rasgam densos limites entre o dia e a noite
E é preciso ir mais longe
destruir para sempre o pecado da infância
erguer muros de prisão em círculos fechados
impor a violência a tirania o ódio

Enquanto das esquinas escorre em letras enormes
a denúncia total do homem da mulher
que no bar em penumbra numa tarde de chuva
inventaram o amor com carácter de urgência

COMUNICADO GOVERNAMENTAL À IMPRENSA

Por diversas razões sabe-se que não deixaram a cidade
o nosso sistema policial é óptimo estão vigiadas todas as
saídas
encerramos o aeroporto patrulhamos os cais
há inspectores disfarçados em todas as gares de caminhos de
ferro


É na cidade que é preciso procurá-los
incansavelmente sem desfalecimentos
Uma tarefa para um milhão de habitantes
todos são necessários
todos são necessários
Não se preocupem com os gastos a Assembleia votou um
crédito especial
e o ministro das Finanças
tem já prontas as bases de um novo impulso de Salvação
Pública

Depois das seis da tarde é proibido circular
Avisa-se a população de que as forças da ordem
atirarão sem prevenir sobre quem quer que seja
depois daquela hora Esta madrugada por exemplo
uma patrulha da Guarda matou no Cais da Areia
um marinheiro grego que regressava ao seu navio
Quando chegaram junto dele acenou aos soldados
disse qualquer coisa em voz baixa e fechou os olhos e morreu
Tinha trinta anos e uma família à espera numa aldeia do
Peloponeso
O cônsul tomou conhecimento da ocorrência e aceitou as des¬-
culpas do Governo pelo engano comendo
Afinal tratava-se apenas de um marinheiro qualquer
Todos compreenderam que não era caso para um protesto
diplomático
e depois o homem e a mulher que a policia procura
representam um perigo para nós e para a Grécia
para todos os países do hemisfério ocidental
Valem bem o sacrifício de um marinheiro anónimo
que regressava ao seu navio depois da hora estabelecida
sujo insignificante e porventura bêbado



SEGUE-SE UM PROGRAMA DE MÚSICA DE DANÇA


Divirtam-se atordoem-se mas não esqueçam o homem e a
mulher escondidos em qualquer parte da cidade
Repete-se é indispensável encontrá-los
Um grupo de cidadãos de relevo ofereceu uma importante
recompensa
destinada a quem prestar informações que levem à captura
do casal fugitivo
Apela-se para o civismo de iodos os habitantes
A questão está posta É preciso resolvê-la
para que a vida reentre na normalidade habitual

Investigamos nos arquivos Nada consta
Era um homem como qualquer outro
com um emprego de trinta e oito horas semanais
cinema aos sábados à noite
domingos sem programa
e gosto pelos livros de ficção científica

Os vizinhos nunca notaram nada de especial
vinha cedo para casa
não linha televisão
Deitava-se sobre a cama logo após o jantar
e adormecia sem esforço

Não voltou ao emprego o quarto está fechado
Deixou em meio as «Crónicas Marcianas»
perdeu-se precipitadamente no labirinto da cidade
à saída do hotel numa tarde de chuva
O pouco que se sabe da mulher autoriza-nos a crer
que se trata de uma rapariga até aqui vulgar
Nenhum sinal característico nenhum hábito digno nota
Gostava dos gatos dizem Mas mesmo isso não é certo

Trabalhava numa fábrica de têxteis como secretária da
gerência
era bem paga e tinha semana inglesa
passava as férias na Costa da Caparica

Ninguém lhe conhecia uma aventura
Em quatro anos de emprego só faltou uma vez
quando o pai sofreu um colapso cardíaco
Não pedia empréstimos na Caixa Usava saia e blusa
e um impermeável vermelho no dia em que desapareceu


Esperam por ela em casa duas cartas de amigas
o último número de uma revista de modas
a boneca espanhola que lhe deram aos sete anos


Ficou provado que não se conheciam
Encontraram-se ocasionalmente num bar de hotel numa
tarde de chuva
sorriram inventaram o amor com carácter de urgência
mergulharam cantando no coração da cidade


Importa descobri-los onde quer que se escondam
antes que seja demasiado tarde
e o amor como um rio inunde as alamedas
praças becos calcadas quebrando nas esquinas


Já não podem escapar Foi tudo calculado
com rigores matemáticos Estabeleceu-se o cerco
A polícia e o exército estão a postos Prevê-se
para breve a captura do casal fugitivo



Mas um grito de esperança inconsequente vem
do fundo da noite envolver a cidade
au bout du chagrin une fenêtre ouverte
une fenêtre eclairée)


Daniel Filipe "A Invenção do Amor e Outros Poemas" , Presença, 1972

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

como explicar-te a noite sem corpo, o véu escuro


Gustave Caillebotte "Dia de chuva" 1877

como explicar-te a noite sem corpo, o véu escuro
o estado exausto que convoca as estrelas
de pulsos apertados, olhos de círio, pés líquidos
e uma música de liszt nos éteres dispersos;
as tuas mãos flutuantes nas cordas de um piano

perdoa-me o silêncio, esta lágrima de sonho
a gota impossível na muda garganta rubra
onde guardo seiscentas palavras e o musgo macio

perdoa-me, não me julgues -

quando nos cruzarmos numa esquina de Lisboa
desarmados pela hipnose das pupilas, conto-te
conto-te dos gladíolos, dos lírios, das tulipas decididas
e dos caminhos de asas hirtas em voos nocturnos
planando como auras desertas nestes rostos fugidios
onde as sombras são as linhas descontínuas -

conto-te, numa rua de Lisboa -

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Nocturnos


I

Há um inverno cansado nas copas extáticas
e as estrelas acendem-se de um vento alto
que azula o céu
de um azul que a noite vai roendo consigo

As grades, ao prolongarem-se por aí fora,
trazem-me um sinal contínuo de muro falso
e enferrujado.

As grades não apontariam nada,
se cada uma delas se prolongasse também
no voo completo de ambas as curvas da seta.


II

Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite.

E a noite que é como alguém que desce,
cheio de confiança,
os degraus de uma escada própria interminável
— os degraus serão sempre os mesmos,
nunca haverá outros degraus no fundo.


III

Contaram-me, quando era pequeno,
a história de várias estrelas,
não a história dos nomes que têm e não conhecem
[por nós,
sim uma história em que eram estrelas,
verdadeiras estrelas nem pregadas no céu,


Muitas vezes, ouvir contar foi só:
estar de cabeça pousada no peitoril da janela
a vê-las tremeluzir...
e tornarem-se mais salientes com o escurecer.


Muitas vezes, foi só
aceitar o frio e fechar a janela
— e, em pequeno, não era eu quem a fechava.


IV

Aquelas estrelas desenham um quadrado mal feito.

Nas noites claras de mar imenso,
enquanto a proa ia ensinando às águas
o murmúrio para depois, ao longo do navio,
os mastros procuravam devagar o centro do quadrado.


Para baixo do centro havia três estrelas juntas.
Quando calhava passarem por entre duas,
repetiam todo o princípio
e vinham passar por entre as outras duas.


V

Já tudo escureceu;
contudo ainda resta algum dia
suspenso de onde veio a noite que chegou primeiro.
É de sempre este resto de dia
e acompanha-a pelo céu em busca das estrelas frágeis.
A noite, uma vez,
compreenderá que ele vem do mesmo lado que ela.

VI

Há um inverno nas copas extáticas
e as estrelas acenderam-se de um vento alto
que azulou o céu
de um azul que a noite foi roendo consigo.

VII

Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite.


Jorge de Sena "Perseguição"

domingo, 5 de dezembro de 2010

Não: não digas nada


Paul Klee "Mulher a acordar" 1920

Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

Fernando Pessoa 1931

sábado, 4 de dezembro de 2010

Às vezes...quando acordava


André Kertész

às vezes... quando acordava
era porque tínhamos chegado

ficava a bordo encostado às amuradas
horas a fio
espiava a cidade e as colinas inclinando-se
para a noite lodosa do rio
e o balouçar do barco enchia-me de melancolia

a noite trazia-me aragens com cheiro a corpos suados
cantares e danças em redor de fogos que eu não sabia
o ruído dos becos a luz fosca dum bar
se descesse a terra encontrar-te-ia... tinha a certeza
para o voo frenético do sexo
e num suspiro talvez alargássemos os umbrais da noite
mas ficava preso ao navio... hipnotizado
com o coração em desordem
os dedos explorando nervosos as ranhuras da madeira
os pregos ferrugentos as cordas

as luzes do cais revelavam-se corpos fugidios
penumbras donde se escapavam ditos obscenos
gemidos agudos sibilantes risos que despertavam em mim
a vontade sempre urgente de partir

Al Berto "O medo"

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

divagação sobre três vezes mais estrelas


Georgia O'Keefe " Estrela da tarde" 1916


a descoberta maior de uma sexta-feira
foi três vezes mais estrelas
na galáxia inteira;
anãs de barrigas vermelhas.

as estrelas por mais pequenas
têm sempre a vida em chamas
não são como os planetas

mas sendo assim não têm noites nem luas
serão cegas a ver os dias
em eterna consumição

mas as estrelas quando estão no céu
brilham
e os planetas não

não saberemos se numa próxima sexta-feira
se descobrirá uma nova bactéria
que engula as chamas, seja feita de gelo
e habite o sol

mas atendendo ao frio
ainda bem que temos muito mais estrelas
por cima da cabeça -

(para que não pareça disparatado, este poema foi escrito com base em duas notícias do Jornal o Público que anunciou a descoberta de serem três vezes mais as estrelas devido à existência de algumas designadas por anãs vermelhas e também a descoberta de uma bactéria que conseguia digerir arsénico)

Para ser grande sê inteiro


Fotografia retirada da internet

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a Lua toda
Brilha, porque alta vive.



Ricardo Reis 14 - 2 - 1933

In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, 2000

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

assim fechados tão perto do meu rosto


André Kertész


assim fechados tão perto do meu rosto, aos teus lábios
não os quero nunca
coloca-lhe rosas e perfumes de oriente
fumos divagantes, sopros sibilantes
subtilezas múltiplas de mente
porque aos teus lábios assim fechados, sem beleza
não os quero nunca

disse-lhe olhando o ponto fixo no canto da mesa
não desviando o olhar. tremia um pouco.

ao inclinar o oblíquo rosto
os olhos molharam-se na frente daquele lago
sem expressão, parado, como quem aguarda
o fim de um acto, o fim de uma cena
pediu perdão, desculpou-se com a pressão
o stress de uma última reunião
e repetiu de modo diferente. tremia um pouco.
aos teus lábios quero-os sempre, quero-os sempre.

serviu-se dos sons da alma e escreveu-lhe um poema
em caligrafia cuidada, larga e absorvida pela textura branca
um guardanapo, um novo vulcão reaberto de nova lava
que deslizava, que queimava como um espelho de raios
de um rio importante, muito longo, de verdes margens.

duas semanas passadas, chove uma chuva gelada.
cinco folhas permanecem espalhadas pelo quarto.
a chama de uma pequena vela amplificada em círio, oscila.
as sombras movimentam-se sem ordem, é inverno.
as moscas não voam, a janela tem as cortinas fechadas.
vertical, olhando os quadros cegos nas paredes
fervendo, tremendo, soltou no ar as palavras, um eco imenso
por todo o lado, por todo o lado

aos teus lábios abertos de palavras duras
não os quero nunca

aos teus lábios abertos e combustíveis de palavras puras
quero-os sempre quero-os sempre

e rodava no eixo pesado dos pés como se preso
na rotação inexacta de uma estrela, rubro, ardente

nunca sempre nunca sempre nunca sempre -

O amor é uma companhia


Guy Bourdin

V

O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.

Alberto Caeiro