quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

a canção de natal


Sebastião Salgado



madrugada
quando alguém bateu à porta
o ponto final no sonho.

duas gotas corriam por sobre a pele, lentas
descendo as têmporas como se sabendo
as razões escondidas.

a preto e branco uma ponte de barcos sobre um rio
dois salgueiros em várias cores de cinzentos
duas figueiras sem figos doces.

outros tempos de há muito tempo
quando os leitos mais pequenos, por volta da volta
das borboletas, molhavam as raízes ainda verdes
das videiras de bagos a crescer, cheios de sede.

era uma tarde morna junto das amoreiras
a melopeia chilreada dos pardais.

brincávamos às prendas
dois laços de ráfia, dois embrulhos de pedras de lousa negra
e depois imaginávamos
aqui te ofereço um anel de ouro
vindo dos desertos mais perigosos da Virgínia.
aqui te entrego um tecido de seda, da china mais profunda;
sete meses de viagem pelas neves brancas, pelos lugares dos pés apertados.

o ceremonial, a humildade ingénua de uma cabeça baixa e um sorriso tisnado
os pés lavados nos pós secos do largo apagando e escrevendo mensagens.

o teu vestido um pouco manchado repleto de amoras
os dedos eram não muito finos, compridos e traziam almofadas
usavas duas tranças de índia que sorriam
eu tinha o cabelo espetado e joelhos riscados
calções de alças
e de vez em quando as mãos
dividiam dez azeitonas e um pouco de pão.

lembrei o sonho e as duas gotas que não sabia como.

no natal seguinte partiste para Helsínquia -

durante o sonho, um rosto sem rosto de cabelos lisos
cantava um jingle bells em sotaque estranho

e trazia o mesmo vestido -

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