terça-feira, 22 de setembro de 2009

Na penumbra descosida a claridade


António Gil fotografia 2008

a impressão esbatida num lenço de seda
colocado de modo pouco usual.
a imprecisão de um rosto oval
na penumbra de uma porta entreaberta -
a primeira palavra...
o olhar vertical no corpo magro
como vara de canas junto ao rio
entre olhares finos de junquilhos
e os saltos de gotas de orvalho
nos mergulhos mais pintalgados de rãs.
Sentir os pés molhados no meio do quarto
na longitude de tábuas como charcos movediços
pelo facto de não ser mais a sombra,
a escondida sombra no centro da lua
ao abrigo difuso de uma luz incompleta
que apenas denota a forma, a mão estendida
o brilho próximo da pupila indisfarçada.
a pestana muda
ao desvendar do segredo tímido e inclinado
do teu rosto, dos teus olhos, dos teus lábios
na penumbra descosida a claridade -
a voz húmida de uma segunda palavra...

Esta é forma fêmea



Salvador Dali "Vénus e cupidos" 1925

Esta é a forma fêmea:
dos pés à cabeça dela exala um halo divino,
ela atrai com ardente
e irrecusável poder de atração,
eu me sinto sugado pelo seu respirar
como se eu não fosse mais
que um indefeso vapor
e, a não ser ela e eu, tudo se põe de lado
— artes, letras, tempos, religiões,
o que na terra é sólido e visível,
e o que do céu se esperava
e do inferno se temia,
tudo termina:
estranhos filamentos e renovos
incontroláveis vêm à tona dela,
e a acção correspondente
é igualmente incontrolável;
cabelos, peitos, quadris,
curvas de pernas, displicentes mãos caindo
todas difusas, e as minhas também difusas,
maré de influxo e influxo de maré,
carne de amor a inturgescer de dor
deliciosamente,
inesgotáveis jactos límpidos de amor
quentes e enormes, trémula geléia
de amor, alucinado
sopro e sumo em delírio;
noite de amor de noivo
certa e maciamente laborando
no amanhecer prostrado,
a ondular para o presto e proveitoso dia,
perdida na separação do dia
de carne doce e envolvente.

Eis o núcleo — depois vem a criança
nascida de mulher,
vem o homem nascido de mulher;
eis o banho de origem,
a emergência do pequeno e do grande,
e de novo a saída.

Não se envergonhem, mulheres:
é de vocês o privilégio de conterem
os outros e darem saída aos outros
— vocês são os portões do corpo
e são os portões da alma.

A fêmea contém todas
as qualidades e a graça de as temperar,
está no lugar dela e movimenta-se
em perfeito equilíbrio,
ela é todas as coisas devidamente veladas,
é ao mesmo tempo passiva e activa,
e está no mundo para dar ao mundo
tanto filhos como filhas,
tanto filhas como filhos.
Assim como na Natureza eu vejo
minha alma refletida,
assim como através de um nevoeiro,
eu vejo Uma de indizível plenitude
e beleza e saúde,
com a cabeça inclinada e os braços
cruzados sobre o peito
— a Fêmea eu vejo.

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"