quarta-feira, 5 de maio de 2010

Fragmentos de um ensaio escrito de joelhos

Eu considero o amor dentro de uma genuflexão, “esa genuflexión máxima del arrebato”, como escreveu um dia Diego Medrano (Oviedo, 1978), num livro que tem muito de coisa genuflectida, a começar pelo título El hombre sobre las rocas e a acabar numa espécie de nota constritiva, pseudo-explicativa e testamentária, o último poema “Despedida y cierre”.

Todo o livro de Medrano é percorrido por um movimento violento de queda (e mais: pela suspeita de que o tempo é uma força essencialmente vertical, num só e decisivo sentido, ignorando alguma relatividade defunta por delicadeza e alguma gravidade crítica por vício), incorporando uma certa “atitude atlética de cair / sobre a causa das coisas contraproducentes / primeiro”, como escrevi num texto não muito longínquo, que caía ao meu lado também, curiosamente numa repartição do erotismo de cujo nome agora não quero lembrar-me.

Morto por vestir os andrajos de um maldito na era do capitalismo tardio e da realidade rarefeita, Medrano aparece na capa do seu livro de óculos escuros (icárico ma non troppo, diríamos), com ar de boémio condescendente, uma mistura de lobo iluminado pelo uivo transparente da epístola, com as multidões apagadas dos últimos dias aos seus pés, personagem de um telefilme policial dos anos 80, entre o tédio e a dinastia de princípios, a pose e a poesia autodestrutiva, a noite analfabeta e os recados do rancor.

Mas não é da marca Medrano que eu quero falar. Comecei por dizer que o amor que eu considero, considero-o dentro de uma genuflexão, de uma aterragem forçada de joelhos no áspero chão do virtuosismo, tal como acontecia na infância, quando tropeçávamos, ainda em terra firme, e como era bom tropeçar, cair de joelhos, sangrar e fazer um curativo minúsculo com direito a vínculo perpétuo com a vida. Hoje já não damos conta que caímos. Porque a excepção é não cair, habituamo-nos à queda. Também não sentimos o tempo e o tempo tem atrito amarelo e dá nas vistas. Enfim. Eu quero é voltar à genuflexão, depois de ter caído do início do texto até aqui, mas dou-me agora conta que já não é da mesma genuflexão que eu quero falar, nem mesmo daquela que queria falar quando comecei esta frase genuflexa. Going on.

Medrano, no poema 25, que fala de genuflexões, arrebatamento, lobos, céus e infernos (deus sabe o quanto Blake se fartaria de o reprovar se um dia o tivesse de aceitar na sua lista de amigos do facebook), Medrano fala também com o desconhecimento de causa daquele que, uma vez consciente de que cai, não consegue prever o fim, o limite da queda, a fronteira entre a queda e a sua consequência indízivel, e, por isso, antecipa-a no gozo insalubre das metáforas e no silêncio escorregadio dos mitos. Antes dessa “genuflexión máxima del arrebato”, Medrano escreve: “Desconozco si nuestras vidas están llamadas a convertirse en literatura por encima de la normalidad, del sentido común (…)”. De alguma forma, Medrano convence-se e pretende convencer-nos de que:

1. A literatura é uma excepção à banalidade da queda (a literatura está “por encima de la normalidad” e a normalidade é cair)
2. O sentido comum não é literatura, logo exerce o seu direito de queda.
3. A vida (sentimental) situa-se algures na suspeita (ele desconhece, não ignora) entre a normalidade da queda e a excepcionalidade da terra firme, que é uma espécie de enfermaria ilegítima do sentido comum, cheia de profissionais competentes que tratam das nódoas negras e das feridas que a queda contínua provoca nas nossas microscopias para sempre.

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