quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

O robalo





O acaso predomina por volta do meio-dia
hora indistinta de refeição matutina.
Um restaurante vazio. Os últimos talheres
e a mesa ao fundo de chapéus de cozinha,
aventais de bolsos largos, alças limpas;
o último descanso antes de mais um dia.

Apenas meia-hora e chegam as formigas
e algumas cigarras que falam, falam, falam
pelas mãos, pelos cabelos em desassossego.
Um robalo, filetes de pescada, coelho estufado.
Aguardam pacientes as iguarias;
arrefecidas, sózinhas; se tivessem lágrimas
talvez usar toalhas em vez de guardanapos.

Vem a propósito a mesa contígua:
“ Não imaginas o sufoco, o frio, o jeep
um continente de filamentos brancos
uma paisagem de névoas, muitas e finas
como se nem céu nem estrelas
que cintilam, salvam e iluminam.
Tan-tan-tan e nada, avariado o abominável
e nós parados, a despedir vida
na fúria que consumia o convite:
Gostas de neve? Que tal as montanhas da Suíça?
Que frio. Que frio. Que frio. Não imaginas.
No infinito. Tanta sede. Tanto gelo.
Água! Dêem-me água! Não! Não! Whiskie!
Uma garrafinha térmica de boca pequenina!
Que frio. Não imaginas!
E ele! Impávido olhando o carro!
O túmulo! O parvo! Como se aquela lata
fosse um filho fraco que precisa de cuidado.
Ser corrigido. Que raiva! Que desvario!
Dois pontapés assentes nas rodelas de borracha.
Maldito jeep!”


Coloquei auricular ao fazer de conta, inventar:
“Sim! Claro! Naturalmente! Em Santa Catarina.
Os documentos. O B.I. , o número do contribuinte.”
O ar alheado de quem nem ali está
pedindo por fim laranja, doce em fatias.
Mas no fundo a voz de rapina, inaudível:
“Não parem. Vá lá. Faço-me pequenino.
Pego num livro. Continuem as fantasias.”

Na mesa contígua, ali ao lado:
“Bem te disse! Fim de ano decente
pede pedras de granito e uma lareira
a alegria em casa dos amigos;
os corridinhos, os sambinhas, palavras soltas
disparos de rolhas de cortiça
enquanto há pés de dança e energia.
Desta dita durou até às tantas
quando a lua bocejou, abriu os braços
teve preguiça – deitou a noite subiu o dia.”

Doze gramas de açúcar não é bom para a glicose
mas depois de me obrigarem na longínqua Inglaterra
prazeres de café amargo, gosto dele muito doce.

Na mesa contígua, ali ao lado
um prato vazio, não há restos
apenas faca e garfo, encostados
e o guardanapo abandonado.
Do outro o robalo, vestido de Inverno
de soslaio, olhar de vidro, prateado
resiste.

“ Não consigo! Não quero! Faz-me lembrar o frio.
Que frio! Que frio! Não imaginas!”

Levanto-me. A conversa pára.
Cá fora assobio e sinto quente a alma
mas arrasto de surpresa os pés frios
como se dois cubos de gelo...

Deslizo e medito:
“Queres ver que o robalo...”-

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