terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Fila para Avatar

O meu avatar fala sozinho e
tem um gorro azul feito de memória e loucura
está recheado de sombra roxa e pôr do sol, Outro dia
na fila do cinema disse-me que criou dez heterónimos,
perguntei-lhe porquê o número redondo e porque confundia
sempre poesia e prosa,

O meu avatar é só riso espalhado
Sinto nos seus olhos azuis e cabelo ondulado
a vontade de ser toda a gente, Ladrão na Austrália, pregador escocês,
professora de Yoga, Prostituta no Marquês,
vendedor de alhos filipino, sucateiro na Amadora,


O meu avatar criou dez heterónimos de olhos cansados - disse-me na fila do cinema,
que tinha medo do escuro

Medo que o escuro o recheasse por dento, como uma procissão silenciosa de virgens negras ou búfalos subaquáticos
Contou-me que os seus heterónimos são gente educada com corpos de silêncio, desejam uma boa jornada a este e àquele que passa, perguntam mutuamente a hora, mesmo sabendo sempre que hora faz.


Têm necessidade de falar, às vezes entram todos num café e pedem um copo de água. Seguem o telejornal às riscas com os seus gorros azuis e escrevem no seu gesto quadriculado um ou dez poemas de amor:

O meu avatar chama os heterónimos dos seus jogos de azar, e conta a todos eles uma história de amor, encomenda-lhes um ensaio sobre este ou aquele autor, uma corrente de vanguarda, coze-lhes os calções rotos da jornada,

Leva-os a ver o pôr do sol e a todos eles alinhados diz que a paisagem é bonita, mete-os na fila do cinema enquanto vai comprar bombocas, manda-os ir evangelizar a Escócia, enquanto fuma um cigarro em todo o lado, já só átomo com vontade de se fundir a outro átomo, para que a União seja a calma.

Vejo nos seus olhos, vária gente que escreve
Às vezes enquanto tira as meias ou as calça, pergunta-me sobre a utilidade da literatura e reparo que ele se parece uma nuvem,
Uma nuvem carregada que se olha ao espelho, guardo no vidro transparente a sua calma e chuva tropical , e vejo no espelho toda a gente com máscara e sem a Máscara,

a máscara é também gente:
O que se calca é também o que se é)

É então que ele diz: Tu és queda livre e curva que não passa mensagem nenhuma.
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Não tenho argumentos contra esse gorro azul

Recheio-o de medo e vamos ao cinema – Preenchemos todo o quarteirão Coppedé, esperamos que o sol se ponha, olhamos as máscaras gregas de pedra, a coluna clássica de cada varanda, vemos sem ver a gente lá dentro, descalça a ouvir o seu Tango, - às vezes atira-se de uma varanda e dá-me a mão pequena dizendo – Tu não passas mensagem nenhuma, és só queda e confusão – O Vento tira fotografias às máscaras e a nós todos, revela-nos, no musgo, nas paredes no riso, no fundo de todos os poços, no espelho – Este querer estar sempre em ti, ser já só fronteira, o avatar a comer com a boca cheia de espuma de morango, diz esta e aquela sentença, ouço-o com atenção – Pergunta-me sobre a necessidade de registar? Diz depois parecendo um triângulo – Toda a memória provém do sol –

Guarda muita coisa ao mesmo tempo e é só riso a espalhar,
escreve a negrito as sentenças de maior relevo,

Umas vezes não pergunta e é só dança outras é
fronteira e meta-susto que se alimenta,
recheia-se a si próprio de vento
Estamos na fila, na tela e no acento.



Nuno Brito

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