quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Nesses dias não anotava matrículas

Nos dias de Março, fim de Fevereiro
apara-se os cabelos das árvores:
mais de lado, mais ao alto
conforme o penteado;
menos copa, menos ramos
um molho bem atado.

Nos dias da Baixa à Biblioteca
duas janelas no segundo andar
os ramos finos qual vidro partido
gretavam o ar nos olhos miúdos
- alguém pequeno que observa
e risca folhas soltas de papel
matrículas velozes de marcas
antigas: Simca, Taunus, Capri.

Onde estão as notações, os registos
as surpresas dos repetidos
nas colecções sem caras
(números letras suspensas
de placas cor de xisto)?
Perderam-se nos recantos
casa dos pais altas janelas.

Nos dias dos caçadores de ninhos
(descobertos nos vazios)
muitos homens de serrotes ruídos
despiam árvores já despidas
na espera dos dias primos;
previsto despontar de brilhos
verdes.

Homens em cordas grossas de sisal
(balancé de pé fincado nas dobras dos braços
transformados em aparas de lâmina faminta)
desnorteando os nós em migalhas de fibras
ramos em queda;
círculos divididos céu terra.

Nos dias da estética antes da Primavera
surgia mais branco o horizonte na janela
(cortes duros excessivos sem queixume
àrvores grandes nos troncos mudos).

Nesses dias esperava o pôr-do-sol
a despedida
na parte perdida dos ramos
e não anotava matrículas.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

o amor esconde-se nas arestas da dor

O amor é um jogo sem regras
Nada é simples
Ladrão de vontade
Poeta perdido sem pés
Tudo é simples
Só asas
O amor
É um jogo sem regras
São sempre três no amor
Eu
tu
os outros
nada é simples
ladrão de vontade
O amor
É solidão em estado duplo
trilogia incompleta
Uma dor tripartida em prazer
Solidão em estado duplo
Amo o amor na sua indelicadeza
Rude de amor
Perene
Eterno
Etéreo
É solidão em estado bruto
Só asas
O acaso ditado que se redobra
Tudo pode ser
Tudo é simples
Reciclagem de afecto em dor
Dor em afecto
Nada é simples
Poeta perdido
Sem pés
Só asas
Sombra em luz
Sombra em nós
Amo o amor na sua indelicadeza
Nossa sombra
Amor nosso
É caos organizado
Em estado duplo
Amo o amor na sua indelicadeza

Em estado puro
É paz

Paul Auster

Something happens. Or else, something does not happen.
A body moves. Or else, it does not move. And if it moves,
something begins to happen. And even if it does not move,
something begins to happen.

Paul Auster "White spaces"

Parti a cadeira

Parti a cadeira contra o muro
no prazer destruidor daquela madeira
lembrava o dia que foi destroço
náufrago de uma zanga de tridente.

Era bela. Quando olhava o fundo
um anel em argola rodeava antes do fim
tornava-a segura. Mas parti-a
com todas as forças em mil pedaços
reduzi-a a uma inexistência última
que era tua.

Separei a palhinha e sombreei os raios
disfarce de girassol- último adeus.

Acendia-a de chamas
reduzi tudo a cinzas-
último suspiro.

Perdi-te. Morri.

Magnolia Grandiflora

Destila em ti um aroma lunar
de rosas mil forma branca
delicada Prímula
rosto de tulipa
uma seda junto aos dedos
na descida
em que te adoro de joelhos
deslizando na coluna
vista curva de receios
louco a meio a face junto
no triangular designio
lábios de destino
ao estelar desiquilibrio.

Magnífica indefesa sem ser eu fera
apenas e tão só alguém que observa
a oculta beleza que me desperta
na sempre insistente natureza
não humana
que te vê tão simplesmente
como opulenta e extensa deusa
"Magnolia Grandiflora"

Fulbright Scholars

Ted Hughes, poeta nascido em 1930 faleceu em 1998. Foi casado com Sylvia Plath a quem conheceu em Cambridge como bolseira Fullbright em 1955. Sylvia perdeu o pai aos oito anos e tentara o suicídio em 1953. Casaram tiveram dois filhos, separam-se em 1962 e em 1963 Sylvia suicida-se.
Esta pequena introdução faz parte da informação que recolhi num livro que recentemente comprei e se chama "Cartas de Aniversário" (edição Relógio D'Água)dirigidas a Sylvia durante vinte e cinco anos depois da sua morte.
Hoje deixo o primeiro desses poemas nas duas versões Inglesa e traduzida.

Fullbright Scholars

Where was it, in the Strand? A display
Of news items, in photographs.
For some reason I noticed it.
A picture of that year's intake
Of Fullbright Scholars. Just arriving-
Or arrived. Or some of them.
Were you among them? I studied it,
Not too minutely, wondering
Which of them I might meet.
I remember that thought. Not
Your face. No doubt I scanned particularly
The girls. Maybe I noticed you.
Maybe I weighed you up, feeling unlikely.
Noted your long hair, loose waves-
Your Veronica Lake bang. Not what it hid.
It would appear blond. And your grin.
Your exaggerated American
Grin for the cameras, the judges, the strangers, the frighteners.
Then I forgot. Yet I remember
The picture: the Fullbright Scholars.
With their luggage? It seems unlikely.
Could they come as a team? I was walking
Sore-footed, under hot sun, hot pavements.
Was it then I bought a peach? That's as I remember.
From a stall near Charing Cross Station.
It was the first frsh peach I had ever tasted.
I could hard believe how delicious.
At twenty-five I was dumbfounded afresh
By my ignorance of the simplest things.


Os Bolseiros Fullbright

Onde é que foi isso? terá sido na Strand? Uma exposição
de acontecimentos recentes, com fotografias.
Por alguma razão reparei nela.
Uma fotografia tirada naquele ano
com os bolseiros Fullbright. Mesmo a chegar-
ou já chegados. Ou só alguns deles.
Será que estavas lá no meio? Examinei-a,
sem grande minúcia, imaginando
qual deles podia vir a encontrar.
Lembro-me desse pensamento. Não
da tua cara. Dei sem dúvida particular atenção
às raparigas. Talvez tenha reparado em ti.
Talvez te tenha avaliado, achando-te improvável.
Prestei atenção ao teu cabelo comprido, levemente ondulado-
à tua franja Veronica Lake. Não ao que ela escondia.
Parecias loura. E o teu sorriso.
O exagero do teu sorriso
americano frente às câmaras, aos juízes, aos estranhos, aos
que metem medo.
Depois esqueci-me. Ainda assim lembro-me bem
da fotografia: os bolseiros Fullbright.
Tinham bagagem? É pouco provável.
Teriam vindo em equipa? Eu caminhava
com os pés doridos, debaixo de um sol escaldante, em passeios
escaldantes.
Foi então que comprei um pêssego?- Lembro-me que foi assim.
Numa tenda perto de Charing Cross.
Era a primeira vez que saboreava um pêssego acabado de colher.
Nem podia acreditar como era delicioso.
Aos vinte cinco anos estava de novo pasmado
com a minha ignorância das coisas simples.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A derme adormecida

A derme adormece endémica
sede pele vermelha
na quente tarde que queima
(toalha de felpo montes de areia)
lençol que passeia uma outra pele
macia indelével invisível de tela
branca tontura as ondas perto.

Se a nuvem se descuida e voa a mosca
afasta-se a espuma retoma a forma
o fresco ciúme de sol posto
na derme
que acorda e estremece.

A poesia de "quase"

Gostei imenso desta poesia de Mário Dionísio que agora partilho convosco;
uma poesia de "quase" que "quase" acontece.

Uma mulher quase nova

Uma mulher quase nova
com um vestido quase branco
numa tarde quase data
com os olhos quase secos

vem e quase estende os dedos
ao sonho quase possível
quase fresca se liberta
do desespero quase morto

quase harmónica corrida
enche o espaço quase alegre
de cabelos quase soltos
transparente quase solta

o riso quase bastante
quase músculo florido
deste instante quase novo
quase vivo quase agora

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O poeta é um pouco louco

É curioso escrever o poema como quem sobe uma escada
até à cerimónia secreta de manto, vela e rosto tapado.
Estender em dois buracos o olhar imperfeito de retinas
na raiz de outras almas outras sinas.

Não será postulado único como origem.

Por vezes é um circo que se anima de um trapezista
no equilíbrio de uma vara, um anão que rebola na
impossível guilhotina de uma garra imemorial de um
tigre ou num balancé de uma tromba de elefante.

O poema como resultado expositor de palavra

Cabeça de guizos incomposta e exigente
na súbita invenção de margens, um rioimediato
que nasce de um sopro ou fumo vago.

Sonha-se a imagem no poema como gozo
uma garrafa de asa uma chávena de gargalo
e a mesa pendurada no belo tecto arabesco
da mesquita Halloween; grande abóbora.

E nada existe desta forma para além do cisco
que resiste junto ao canto, obriga a vista
à cuidadosa medida
que lança de novo a âncora
o bálsamo do benefício
o merecido alívio
nos risos improváveis de juízo:

o poeta é um pouco louco
uma nota descontínua.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Poema

Mais um poema de Nuno Júdice do seu livro "Cartografia de emoções"

Poema

Podemos falar dos sentimentos, descrever
as impressões que nos ameaçam, e revelar o vazio
que se descobre na ausência um do outro: nada,
porém, é tão inquietante como a dúvida,
o não saber de ti, ouvir o desânimo na tua voz,
agora que a tarde começa a descer e, com ela,
todas as sombras da alma. É verdade que o amor não é
apenas um registo de memórias. É no presente
que temos de o encontrar: aí, onde a tua imagem
se tornou mais real do que tu própria,
mesmo que nada te substitua. Então, é
porque as palavras são supérfluas; mas como viver
sem elas? Como encontrar outra forma de te dizer
que o amor é esta coisa tão estranha, dar o que nunca
se poderá ter, e ter o que está condenado
a perder-se? A não ser que o guardemos dentro de nós,
num canto de um e outro a que só nós chegamos,
sabendo que esse pouco que nos pertence é
tudo o que cabe neste sentimento.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Alta muralha

Era o prédio mais alto na rua mais alta
da ciddade junto ao mar.
Telhados de remendos e vigas desalinhadas
condensadas em brilhos de alumínios
reflexos arco-íris nos dias húmidos
desfiando luz.

A rua era a mais funda na cidade baixa
de legos castanhos, vista do prédio alto.

A náusea do perigo a evidência da distância
na volta da varanda e a cidade inerte, suspensa.

Não havia asas talvez dormissem de bicos quentes
rodeadas de sovacos e o arfar de folhas verdes.
Das árvores na varanda alta não se viam troncos
apenas cabelos de selva, círculos infantis incertos
copas distintas de tílias, plátanos, loureiros
e o sobrevivente rododendro no átrio do Paço
que previa de botões pequenos, pontas de lança;
não era a época do lilaz.

Na varanda alta era um na cidade muda
recebia raios de chama golpes na face
e os dedos vincados no tubo inox
vidro aquecido.

Trouxe uma cadeira de lona uma mesa de arame
um guardanapo bordado um copo de água
abriu o bloco estendeu o olhar até ao azul
tão azul no limiar de um céu mais claro.
Lembrou o dia da casa mais baixa na rua mais
estreita da vila mais pequena
agora na varanda alta esplanada sobre o mar
onde certamente as gaivotas e os golfinhos
eram os mesmos indiferentes aos ritmos
dos cimentos e palavras tão distantes.

Não pôs o chapéu não queria
um fio de sombra separando o Sol
deixou-se ficar como quem aguarda
um amigo do céu uma sereia do mar
e interrogou-se se talvez não devia
trazer uma outra cadeira
ou antes
uma banheira na varanda alta.

E sorria e gritava na mais alta muralha
na cidade calada.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

O dia 14 de Fevereiro

Está previsto um dia de Sol amanhã
por isso não se cuidem
não se cuidem da cor

dos lírios das orquídeas da romã
dos "fruit de la passion"
nos bosques "du lendemain"
numa praia de Itapuã

e não se cuidem por isso
dos aromas de uma rosa
em pétalas cor de maçã
do travo sabor picante
de uma folha de hortelã

e por isso
o poema é só isso uma rima
de um feitiço
para o dia de amanhã!

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Narimbá

Narimbá quebrado no barco sai para o mar
a pele morena sabe a destinos de Sol e sal
e Narimbá parte, os dias todos pela manhã.

Leva farnel, uma sardinha o pão de maná
olha as ondas em héxagono sisal
espera o tempo largo medindo o céu
descaindo de luz nas pratas do seu mar.

Houve um dia o barco no areal.

Nesse dia o Sol subiu mais alto
soltou gotas escondeu o olhar
de nuvens cinzas ondas sentidas.

Foi o dia mais triste na praia de Iemanjá:
14 de Fevereiro - o dia da sereia

Narimbá entrou no mar.

Convictos

Das manhãs laminares
que deslizam pelo útero
escolho aquela
vermelha suspensa
em os olhos se espalharam
grandes e convictos
e nunca mais te viram.

As paredes do meu ser

AS paredes dos meus dias são feitas de vidro
sujeitas aos sinais do clima;
sol intenso, águas de chuva, gotas de grizo
intenso frio:
três camisolas, um anorak, meias de lã
mas sobrevive o brilho
de um sorriso hortelã no ar adverso
e as formigas seguem o seu caminho
tão escuro, tão espesso, nas rotinas
da cidade.

Quando era menino minha mãe
via dias num aquário de neve
prédios de pernas ao contrário
dentro de paredes líquidas.
Respirava água a alta torre, a casa mais bonita
e as mãos pequenas de criança à roda fixa
do mesmo cristal, sem renas, feitas de pedaços
de penas, estrelas brancas, ora em cima
ora em baixo.

A minha cidade tem paredes cor de tela
escrevo nelas palavras anónimas de grafites
de pastel, na forma perene de gravuras
ilustradas, serpentinas de pincel.

Por vezes no Carnaval
quando era menino minha mãe
fazia chapéus de listas, de fitas coloridas
mas um dia disse uma asneira picante
pediu-me a língua e pôs
pós de cor gengibre, especiaria opalina
pimenta, ardia ardia ardia
guardei as lágrimas numa bolsa pequenina.

As paredes dos meus sonhos são feitos de névoa fina
são rios ou areias movediças
mas não os sei
nem qual é o seu destino
guardo risos guardo lágrimas
numa bolsa pequenina
a bolsa de minha mãe
aquela que viu nascer
os meus sonhos de menino
as paredes do meu ser.