domingo, 27 de fevereiro de 2011

XXVIII - Li hoje quase duas páginas


Harald Solberg

Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.

Alberto Caeiro " Guardador de Rebanhos"

a pintura de Wassily


Wassily Kandinsky


É à luz de uma pintura de Wassily
que admiro o amarelo súbito
o azul intenso na forma elíptica.

Na manhã de um distúrbio adormecido
é insustentável o fragmento do sonho
que em traços distintos guarda indícios
nas bolsas dos olhos no incontornável do espelho.

É à luz de uma atmosfera de Kandinsky
que procuro entender a génese e o verbo
o afirmativo de uma dualidade
o lado simétrico
a intensidade da cor e o labirinto -

José Ferreira 27 de Fev 2011

sábado, 26 de fevereiro de 2011

(escrita pouco inocente)


Richard Avedon


No livro do imaginário a lua é verde de morrer, as cadeiras brancas, e a terra amarela começa a dormir - gosto de poetas obscuros.
Não há poetas obscuros.
Se alguém diz - esta atenção é minha - não é um poeta obscuro?, e se diz - esta não é a minha atenção - não é um poeta claro?
Não.
É preciso encontrar as chaves - às vezes é fácil, às vezes é difícil.
Não.
Cada imagem é a chave de outra imagem e e elas abrem-se umas às outras, as imagens.
Não.
Tudo são chaves para abrir tudo.
Não.
A chave entra na fechadura, a porta abre-se sobre uma nova porta.
Não.
Portas sobre portas até que a porta final abra sobre a luz que atravessa o espaço aberto de todas as portas.
Não.
Os poetas são metafísicos.
Não.
A metafísica é uma distância de onde os poetas vêem, em perspectiva, a realidade.
Não.
Não há realidade?
Não, não há realidade - todos os poetas são claros a esse respeito.
Se eles dizem - atenção - cria-se a realidade da atenção.
Se eles dizem - atenção - anulam a atenção, criam um espaço vazio.
A imagem não é uma realidade?
O que os poetas provam é que é preciso uma imagem para revelar que a realidade não existe.
No livro do imaginário a lua é verde de morrer, as cadeiras brancas, e a terra amarela começa a dormir - gosto de poetas claros.
Não, ainda não.

Herberto Hélder " Photomaton & Vox" Assírio & Alvim 4ªed. 2006

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Porto

moro nela até me sentir daqui,

cidade macho ainda sem namorada.

escrevo o teu lugar na palma das mãos


Guy Bourdin


escrevo o teu lugar na palma das mãos
ao longo de muros projecto sombras gestos
o voo de pássaros e corro
pertenço às noites de rios que amam e cantam
que se escondem em poços mais profundos
precipitando-se em direcção ao inverno

sem regresso toco a música que fica
mais perto da distância
a minha partida estava já nos nós dos teus dedos
nos anéis dos teus cabelos

no teu sorrir que fios de música
teceram para que se desperdiçasse


Tatiana Faia Revista Ítaca nº 1

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

tarde longa


Marc Chagall

naquela tarde de algarve tarde longa
assomava a leve temperatura das gaivotas
de asas brisadas e penas brancas.
arcos redondos guardavam
as costumadas setas.

a estética de silêncios delineava a intermitência de azul
na não intensidade das ondas
e as areias eram de olhos fechados
um deserto de almas.

naquela tarde de algarve tarde longa
não houve nomes nem memórias na voz dos lábios
nas cores soletradas pela música dos dedos
e adormeceram sem a pressa do sal e dos cinzentos
ao som dos búzios pelo mar adentro.

José Ferreira 24 Fev 2011

Emily


David Hamilton


A word is dead
When it is said,
Some say.

I say it just
Begins to live
That day.


Está morta a palavra
Dizem alguns
Mal é proferida.

Eu digo que só
Então nesse dia,
Ela começa a vida.


Emily Dickinson "Cem Poemas" Trad. Ana Luísa Amaral, Relógio d'Água 2010

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

as metáforas sensíveis




apenas uma frase anotada numa página branca
perseguindo o uníssono dos dias
como um símbolo como um símbolo -


apenas uma frase na folha em branco
de tinta sem a continuidade de um texto
versos ou estudo analítico de células
de artérias como rios de sangue e ser vivo
como agulhas muito finas agulhas de trigo
ondulantes ondulantes como os dias -

apenas uma frase na folha em branco
por concluir irresoluta e indeterminada
sob as leis dos números as convenções humanas
não reportando para identidades definidas
tautologias círculos arbitários de signos
actos de homem como se rígidos
explicados na miopia de óculos de meia lua
na ponta do nariz óculos de cientista

a frase isolada e única na página em branco
um símbolo um símbolo
uma fita partida de um cinematógrafo antigo
em pausa um corte ultrapassável e substituível
a acertar a relevância de ter sido escrita
e ter a griffe de um dia
no mês das flores mais bonitas

a frase na página branca não não se explica
e reporta a uma realidade em fragmentos escondida
na irreversibilidade das fotografias a sua vida
o reconhecimento do preto do branco
naquele e naqueles dias -

a frase na página branca é um liame sensível
que liga o agora com o indeterminante de um tempo
sem saber quando
um símbolo um símbolo perseguindo perseguindo
o uníssono dos dias -

José Ferreira 23 Fev 2011

Correntes D'Escrita 2011

de sítio


em sítio de película
ligeiramente ao lado do desenho
por onde passam casas com sede
a bocejar cores às marés de cana verde
um fumo muito antigo
dentro dos olhos de toda a gente
e circos a desfilar
transformados em orla do mar
à marcha à venda
o milho verde em mãos abertas
e a outra história pirata
e crianças sem saia
de carne de coco
ao chorinho mais verde
da estrada
fumos calados
e paredes que suspiram (Deus é Fiel)
quando as varandas incham ao mar
a regressar
(a quem) a orla é uma rede de brisa a balançar devagar
entre um mar verde velho
e um chão ainda mimado
ainda esverdeado

antes que tudo amadureça

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

se não existisse a noção de cinza



se não existisse a noção de cinza
a ardência completa a fogueira acesa
não encontraríamos nunca o azul
o paradigma
mesmo que incompleto
de atingir o paraíso -

José Ferreira 22 Fev 2011

Amor


David Hamilton

o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luís Peixoto "A Casa, A Escuridão"

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Emily 657


David Hamilton


657

I dwell in Possibility—
A fairer House than Prose—
More numerous of Windows—
Superior—for Doors—

Of Chambers as the Cedars—
Impregnable of Eye—
And for an Everlasting Roof
The Gambrels of the Sky—

Of Visitors—the fairest—
For Occupation—This—
The spreading wide of narrow Hands
To gather Paradise—

Emily Dickinson


Habito na possibilidade -
Uma Casa mais bela do que a Prosa -
Em Janelas mais numerosa -
Em Portas - superior -

De Quartos como Cedros -
Impregnáveis ao Olhar -
E por Telhado Duradouro
Os Telhados do Céu -

De Visitantes - a mais bela -
Isto - para a Ocupar -
O abrir largo as minhas Mãos estreitas -
Para colher o Paraíso -

"Cem Poemas" Trad. Ana Luísa Amaral Relógio D'Água 2010

domingo, 20 de fevereiro de 2011

a luz branca


Richard Avedon 1987


supuz um vidro escuro inquebrável que chegava à lua
que dividia as estrelas que impedia a mistura do céu -

pura ilusão
quanto mais observo
a transparência subtil das cortinas
os desenhos de luz branca
delineando o corpo
na forma de não-distância
melhor compreendo
que o vidro nunca aconteceu -

e o quadro mudou
reacendeu de calor o pleno inverno
na paisagem magnífica de um alto monte
onde as mãos insinuantes sobre as rendas
onde a brisa
e onde suavemente
se ouve o deslizar da melodia
dedos que caminham
nas cordas de um violino -

José Ferreira 20 Fev. 2011

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

música e poesia


Richard Avedon


habitualmente a música empresta-nos os braços
e dança sozinha como as borboletas.
perante a exigência de um universo azul
de um universo rosa de um universo multicolorido
sublima os dias como um livro aberto
uma janela pousada no presente do destino
um lugar sentado nas cadeiras de orquestra do cérebro
descobrindo os signos as letras despidas
e os sons que dançam por vezes
no negro das avenidas
nos prados mais verdes
nos bosques mais escondidos.

habitualmente a música empresta-nos o lugar das fitas
num cinematógrafo sobre paredes brancas e vazias
desenrolando cenas implícitas, explícitas sobre os desígnios
e a subjectividade do sentir
revelando por vezes os vestidos secretos
de uma invasão de prímulas ou quadros múltiplos
reinterpretando a ausente realidade dos artistas.

e a música dança sozinha como as borboletas
sem braços nas pautas dos dias
na sua cor clara
nas suas asas de graffiti
a colorir espaços depois do éter
circulando intensamente na elegância dos desvios
nos loopings como se objectos invisíveis.

e a música empresta-nos os braços como linhas
em palavras rectas como setas ou enroladas como pétalas
nas quais por vezes se endoidece
sem lhes dizer dos medos e dos desafios
quando alteram as desordens infinitas
como árvores ladeando azinhagas longínquas
fronteiras de salgueiros margens indefinidas.

e a música coloca os dedos e encerra os olhos
e dança dança sozinha como as borboletas

e a música pode ser uma poesia
que não desafina nem se explica
apenas levita numa dança de brilhos
e decompõe o silêncio em fragmentos
fragmentos e harmonias -

José Ferreira 18 Fevereiro 2011

Talvez um dia se atinja a redução do pensamento


Oskar Schlemmer "Bauhaus Stairway

Talvez um dia se atinja a redução do pensamento
pela mediação do vento
E será essa a mais preciosa economia
O osso vibrará em consonância com o músculo
O joelho e o ombro serão um só adágio

Bastará a mão na página
para que uma ave branca siga a linha azul
As incertezas terão o frémito das folhas
A obscuridade será um oboé saindo do lodo
Um gafanhoto sobre a mesa restabelecerá o estatuto do universo

A melancolia do ouvido a estranheza da visão
em entrelaçadas estrelas líquidas
beberão a alma da solidão como uma linfa branca
e os fulvos frutos da terra estarão unidos
num indivisível acorde



António Ramos Rosa "Deambulações Oblíquas" Quetzal Editores

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

os aromas das flores noctívagas


Magritte "o vestido de noite"

como responder de forma lisa e suave
senão falando de flores e aromas;
as magnólias de seda branca
definíveis no plano despido dos ramos
como sinos inaudíveis e invertidos
e quanto aos aromas
vagueando na sedução dos jasmins
nas suas volúpias de doces caprichos
flores pequenas e destemidas
e ao mesmo tempo delicadas e subtis
suspensas sobre o tronco e sobre o tanque
onde de vez em quando descansam as sombras
e flutuam as camélias mais maduras.

como responder de forma lisa e suave
senão falando de flores e aromas;
lembro agora o vermelho e branco das buganvílias
em vasos de barro altas e as cabelos laranja das estrelícias
e lembro aquela planta de tronco verde e flores noctívagas
lançando perfumes estonteantes
continuadamente intensos na distância.

desculpa desculpa divago divago desculpa desculpa

Imagino o teu olhar severo a teoria da crítica
que simples e tão poucas as metáforas
versos de criança talvez ternos talvez puros
talvez leves talvez insignificantes

mas compreende que sem ser ingénuo
nem completamente destituído de juízo
pratico o equilíbrio
o equilíbrio mais difícil de pontas
num bailado exigente
por onde brilham lagos e se espelham estrelas
nem sempre alegres nem sempre tristes
e por onde em noites mais cheias
passeiam cisnes -

José Ferreira 17 Fev 2011

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

bolo de milho


gosto de bolo de milho
e nada é mais simples
a minha varanda vai aumentando todos os dias para o mar
não sei quantas outras varandas com velas cá chegaram
sei que as espero como um Índio de pernas cruzadas
que aceita trocar


posso entender olhos em caras muito longe
e na dúvida sei dobrar
as sobrancelhas à volta da terra
é que está tudo tão quieto aqui
depois de guerras se comerem sozinhas
pedras arderem no espaço
e células codificarem operações militares
que não me cabe a mim perguntar
só deixar o colapso acontecer
no que muito bem lhe apetecer
como este bolo de milho
tão simples de gostar

Não tenhas medo do amor




Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

o encontro inefável no dia dos namorados





não era já tarde…..nem altas horas da madrugada
era a hora da coincidência pelas calçadas da cidade;
o encontro, o cruzar de olhos, o sorriso largo
a direcção dos braços, a impossibilidade de não ser barco
e não navegar, não navegar na linha contínua dos afectos
namorava……………………………..namorava -

não era já tarde………………nem altas horas da madrugada
era a hora até aí improvável da continuidade
(nunca mais disseste nada……….eu devia ter falado)

pensava na voz fechada à luz de um encontro inefável
(quero-te…………………………………….quero-te)
e lembrava-se de um poema escrito há muito tempo
guardado no meio de um livro, no segredo da biblioteca
de uma casa junto ao mar………………..quero-te
assim se chamava assim se chamava:

“quero-te da mesma forma que me quero na mais pura realidade
sem a presunção de aliviar todas as chuvas e tempestades
pousar os trovões como folhas navegáveis no espelho prateado
quero-te e quero-te na síntese forte do poema
o grão de ouro a película mágica imune a toda a realidade

porque a realidade dói como uma lança
enche-nos de medo torna as almas pesadas
provoca dos mares a revolta causa naufrágios.

bem sei a realidade é um farol decapitado
do qual nunca se desiste ao imaginar o cais
e as memórias são letras de páginas encostadas
na grande biblioteca das surpresas
descobertas descobertas
como quando na praia roubamos as areias
a escoar por entre os dedos a escoar por entre os dedos
e entre as levas aquela mais larga mais única
mais branca mais raiada que nos prende
reassumindo a importância
ali à nossa frente apesar de tão gasta
a memória do passado
uma imagem, uma imagem que fala
tremendo tremendo em traços unidos e ruídos desfocados
uma imagem uma imagem que fala
mas que não existe e já não é realidade -“

pensava pensava
escrito há muito tempo naquela casa naquela casa
escoando memórias como areias
lentamente lentamente há muito tempo
antes da hora da coincidência naquela rua da cidade
escrito há muito tempo
junto ao mar -

e permanecia na circunstância
de ter vozes caladas...............vozes caladas
repetidas………… repetidas…………….......... repetidas
dentro da cabeça…………………..dentro da cabeça
repetidas…………………………………..repetidas
(quero-te………………………………........quero-te)
(quero-te da mesma forma que me quero
na mais pura realidade -)

e ainda as outras vozes de um coro grego
dentro da cabeça.......dentro da cabeça:

“é pouco provável só a chuva de maná
e não há só universos plácidos
a realidade é feita de acertos e reticências
nos passos definitivos que são e acontecem
caminhos caminhos
os mesmos caminhos em que o cérebro cresce
aumenta a sinapse e se torna ágil -


toda a realidade é um tempo adiado
de uma outra realidade - “

não era já tarde..........nem altas horas da madrugada
caminhava caminhava caminhava




José Ferreira 15 Fev 2011

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Uma carta no dia dos namorados


(imagem em www.irisquilts.com)


Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.

Nuno Júdice “Poesia Reunida”

domingo, 13 de fevereiro de 2011

sabes


Marc Chagall

sabes ………….lembro-me desde a primeira hora
o lugar enorme dos olhos, as similitudes da alma
muito caladas dentro da cabeça……..dentro…..dentro
as vozes de um e do outro lado
gémeas, gémeas gemas de circunstâncias, limbos abertos
pétalas azuis de aromas incertos
no silêncio dos lábios..........de um e do outro lado
de um e de outro lado -

José Ferreira 13 Fev 2011

Um dia


Edward Weston 1927

Um dia, mortos, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

Sophia do Mello Breyner Andresen "Dias de Mar"

sábado, 12 de fevereiro de 2011

um poema que flutua


Gerard Richter "Abstracto" 1992

o poema desce a encosta, uma folha nua
uma folha que flutua na condição das sedas
uma folha que balança e oscila
oscila na proximidade de um rio
por entre os ruídos no deslize das águas
no fascínio das pontes, na miragem;
as chaves as portas as névoas as fases
rítmicas misturas de luas e mares

um poema que flutua na noite cerrada -

José Ferreira 12 Fev 2011

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Um poema luminoso de Sophia - Casa branca


Jacques-Henri Lartigue


Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flores marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.
...........................................

A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos

Os murmúrios da terra indefinida.
Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.

Sophia do Mello Breyner Andresen "Poesias"

as teias enredadas e frágeis



o tempo dos relógios não anda ao contrário
o pêndulo anda desconcertado não descreve arcos infinitos
anda, anda e depois pára, no meio de um quadro
….as tintas desbotadas,….a paragem….nas teias de um quarto
e as teias enredadas e frágeis, frágeis linhas inclinadas
num jogo inseguro de palavras.

José Ferreira 11Fev2011

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Um poema luminoso de Sophia


Marc Chagall

Eras o primeiro dia inteiro e puro
Banhando os horizontes de louvor.

Eras o espírito a falar em cada linha
Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Eras a pureza e a força do mar
Eras o conhecimento pelo amor.

Sonho e presença
de uma vida florindo
Possuída suspensa.

Eras a medida suprema, o cânon eterno
Erguido puro, perfeito e harmonioso
No coração da vida e para além da vida
No coração dos ritmos secretos.

Sophia do Mello Breyner Andresen

temo.............quando


Jacques-Henri Lartigue 1931

………………as palavras perdem-se na rigidez da muralha
no teu corpo a flecha fraca…………………………………
……………………………nos teus olhos a cinzenta grama
……………………………………...as palavras perdem-se
no ínfimo lugar de um ponto……………………………….
…………………………final, quieto…….um eco distante -

temo pelo frio gelado de um lago…. a indiferença
a perigosidade……….………..na branca claridade
temo pelo brilho inteiro………….…não reflectido
o incompletar de um bailado …………….possível
temo…………………………pela dupla patinagem
temo………………………………………quando

as palavras a muralha o corpo a viagem

temo………………………………………quando
as palavras ardem……………………....a muralha
inclina………………………o corpo......a viagem
quando-


José Ferreira 10Fev2011

blocos de embalo


deitou-se ao meu lado de deslize
alisada por todas as mãos
em novos vasos rápidos
à procura do líquido morno dos bichos
há dores que se aninham quando lhes toco
rendas de algoritmos que me entram pelos olhos
a corrigir campos de gaivotas vermelhas
e relvas de vulcões com asas
quis abraça-la, talvez um abraço
e no embalo o código foi-me adormecendo devagar
lambendo cada célula e prometendo o fim da divisão
sons de guerra ouviam-se ao longe na pele
e em terras caladas do cérebro
caíam asas molhadas
que esqueci
as dores têm forma
a de gaivotas sem asas
iguais a todos os braços
em todos os ritmos
de um único movimento
e o mundo segue o principio do aumento da confusão
(ou então nós é que lhe confundimos o fim)
mas não é a temperatura que faz a beleza da árvore

são blocos colapsados sem asas
formas simples de vazio
que fazem a árvore crescer-nos por dentro
e o mar
ao longe a confusão é branca
cortada pela linha do tempo
(a única que existe)
e por ela entram todos os vazios
pendurados em cada cérebro
e um em estado mais sublime parou
para se deitar ao meu lado
e fui adormecendo aos poços
enquanto bandos de gaivotas sem asas -

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

RIO EM DESESPERO


Corre rio corre,
corre desenfreado,
a brutal enxurrada descaracterizou-te,
e embruteceu-te.
Levas vidas que afogas diabolicamente,
porque tudo inundas
além do teu leito que te não basta;
fustígas-nos a alma
submissa e impotente
enquanto olhamos a TV
visualizando dramáticos confrontos
entre a morte e a vida
de seres vivos despojados,
t ã o t r u c i d a d o s,
mas sobretuto inocentes...
....................
Dás crédito à revolta da natureza,
à força incomensurável
dum Planeta bom
que nos acolheu,
mas hoje tristemente abandonado à sua sorte,
por culpa de humanos indígnos,
t ã o t r e s l o u c a d o s ,
não merecedores da cohabitação!

Corre, rio corre,
corre desesperado
porque em teu feroz seio
também levas os gritos e lágrimas
dum Planeta que chora
inexoravelmente a sua desdita!

( António Luíz, 20-01-2011; incluído no livro:
"Poesia pragmática: Poemas de Vidas" - 2010/11)

Perguntas


Vincent Van Gogh

(Mais um concorrente ao prémio Correntes d'Escrita)

Tenho sempre, na algibeira da noite,
algumas vigorosas perguntas de reserva,
prontas a disparar em legítima defesa
contra o negrume.

Algumas são pequeninas, vulgares
aspectos de pormenor.
Outras, pelo contrário, são enormes,as
desabridas como a boca dum forno –
do género porque é que deste quatro,
e não seis, ou oito, pernas à rã.

Hoje ocorre-me fazer a menor de todas:
se foste tu que fabricaste o tempo
e a ele nos acorrentaste?
e com que barro? e com que raio
de segunda intenção?

Se é que não foi apenas por descuido.
Ou até casualmente, como acontece às vezes
ao cientista que faz experiências
e acaba por descobrir seja o que for.

A.M.Pires Cabral "Arado" Ed. Cotovia

entre-actos


Saul Leiter

conhecia muitos lugares do mundo……………….
.......……………………………………sem nunca estar
o mundo pode ser espectacular………………………………
...………………………………diziam em todos esses lugares
e todos falavam em partir………………………..........
...………………………….diziam que o mundo lá fora
era a porta entreaberta………………………………....
...……………………......um entre-acto de um teatro
a face por desvendar…………………………….....
...…………………….....um pólen possível a polinizar
lá fora nesses lugares…….................
......……………………..sem nunca estar.

e os dias rodavam imperativos………………………………......
.........………………………………e as estações rodavam cíclicas
específicas, originais em todos esses lugares………………..

e a porta entreaberta abre, abre…….........
................……………………………….devagar.
neste, naquele, em cada pé que se estende………………………………
…………………………………………..de frente e na frente ao caminhar
quando -


José Ferreira 9Fev2011

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Fobias e Semântica



A lista de fobias que podemos, por exemplo, encontrar nas regiões mais sórdidas da internet ascende ao cúmulo do credível e ofende, não raras vezes, a nossa capacidade para as verbalizarmos de forma coerente e estável. Em primeiro lugar, estão os nomes, os nomes dados a cada fobia, cuja etimologia feroz vegeta na morfologia estrábica das palavras: das mais humildes, desde a Automatonofobia, que professa o medo das representações antropomórficas (bonecos, ventríloquos, figuras de cera, criaturas animadas), às mais exigentes e sonâmbulas, como a Tetrofobia, muito enganosamente o medo do número 4, ou a Triscaidecafobia, o medo do número 13. Já o medo mediático e incomum da famosa sexta-feira 13 recebe a pomposa e dupla denominação de Parascavedecatriafobia ou Frigatriscaidecafobia.
A lista é supostamente babélica ou infinita (e tendencialmente mais impenetrável quanto mais matemática e minuciosa for a sua incidência irracional), mas haveria, com certeza, nas intenções obscuras de Borges, ou mesmo de Stanislaw Lem, o projecto ignóbil e inconsequente de a levar a cabo em vida, como se se tratasse de um dicionário extremo e ofegante, ainda que a razão lhes ditasse o caminho contrário, qual fio de Ariadne, sempre pronto a sugerir as saídas emergentes e os antónimos da perdição.
Se a fobia vista ao microscópio deixa ampliar o seu campo vocabular e semântico de batalha, ao ponto de tornar a sua leitura tão estranha e heterodoxa quanto a sua etiologia desesperada, o mesmo acontecerá quando apontamos a lente do telescópio para o Espaço, onde o medo adquire os contornos subjugados do puro medo especular?
A resposta arde na frequência casta das galáxias.
A propósito do que ficou dito - e do que forçosamente acabou de ficar por dizer - há um poema de Roberto Juarroz que nos submete ao resumo, que é uma forma mais sensata de aniquilarmos distâncias, e talvez seja agora oportuno relembrá-lo em parte:

El fruto es el resumen del árbol,
el pájaro es el resumen del aire,
la sangre es el resumen del hombre,
el ser es el resumen de la nada.

(…)

La palabra es el resumen del silencio,
del silencio, que es resumen de todo.


E se houvesse um resumo para todas estas fobias, uma fobia que englobasse todas as outras, reais e imaginárias, uma fobia capaz de reinventar fobias, micro e macroscopicamente desumanas, que nome torpe lhe daríamos, como circunscreveríamos a sua ocorrência na ordem supersónica do caos?
Deixo aqui a minha sugestão:
Sjdfkjsafykawhfaleuylesfgawegfkawefaskeufgawegkfaskegfaskefaksefaksegfasekfgaels&gfaskefgaselufgseufgaseeufgaseufgase€gasefgaseufgasezfgaseukfgasekfasekfasekfasekf#sek#fgasefgasekhfgawpaweuw.eofuqwef723087r2pq3rufq2pefy2q380f!2^ç3pqyq38fq28pe4yf,weuofawfFOBIA.

Iremos procurar a razão da giesta


Paul Outerbridge 1936

(mais um concorrente ao prémio Correntes d'Escrita)

Iremos procurar a razão da giesta
a razão do amarelo
iremos procurar a razão
iremos procurar
e os olhos tomarão todas as cores
as cores de tudo.


Pedro Tamen “ O livro do Sapateiro “ , Ed. Dom Quixote, 2010

.......os dias caem


Edouard Boubat


a perfeição exagerada do teu corpo..................
…………….......................................da tua alma
acendeu a chama.............................................
..........................o corpo arde..........................
..............................................as cinzas voaram.
como pontes invisíveis.......................................
....................................cintilam…….....cintilam
no teu rosto, nos teus lábios.................as cinzas
adormeceram definitivamente..........................
as cinzas...........................naquela possibilidade

traço-risco/traço-risco......................
.....................................os dias caem
traço-risco/traço-risco......................
...........................folhas de um diário
traço-risco/traço-risco.......................
.............................na floresta mágica
traço-risco/traço-risco.......................
..........................um cogumelo gigante
traço-risco/traço-risco.......................
............................de diâmetro grande
traço-risco/traço-risco........................
...................um lugar muito agradável
quando-


José Ferreira 8Fev2011

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Pausa


Robert Doisneau


(e ainda uma concorrente ao prémio Correntes d'Escrita)
Está a decorrer uma votação sobre os candidatos deste ano
no blog asfolhasardem.wordpress.com , de
Manuel Margarido

«Pause

Podiam ser versos tortos,
estas linhas, se me libertassem
de facto dos referentes
que trago na carteira,
junto ao bilhete de identidade,
lenços de papel.
Sempre que tento agarrar um deles,
meio segundo antes de conseguir olhá-lo,
um gancho (do cabelo, preto) prende-se
nas unhas,
em prejuízo de outros detalhes
esquecidos com uma nova precisão. »


Margarida Ferra " Curso Intensivo de Jardinagem " Ed.Etc., 2010

domingo, 6 de fevereiro de 2011

No poema


Paula Rego "Auto-retrato em vermelho" 1962

No poema

..................chego sendo

......................e deixo de ser

.......já não sendo.......nas palavras

nas palavras que escrever.....às vezes.

mas mesmo quando não sendo ....deixando de ser

no poema...ao escrever......há sempre a influência

sendo diferente de ser....num outro ser

que não sendo..........posso ser

..no poema........às vezes

quando-


José Ferreira 6Fev2011

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Bicicletas


Fotografia retirada da internet


(Mais um concorrente o prémio Correntes d'Escrita)

Por muito tempo amarei casas que existam apenas
para guardar uma bicicleta ou os remos de um bote
As casas interessantes não têm pretensão nenhuma
Estão perto de nós na hora necessária
mas a qualquer momento
com mais clareza
afastam-se das certezas que perdemos
e da imensidão que se avista de lá

Um velho provérbio diz:
Se deres um passo atrás, talvez te coloques a tempo
de uma estação clemente

José Tolentino de Mendonça "Viajante sem sono"

os teus olhos de cegonha abrindo o mar


Salvador dali "o barco" 1938

---------------------------"pensar é como andar à chuva"
---------------------------------------------_____-F. Pessoa


não se adivinha a queda das pétalas
nem as corolas despidas de eternidade.
talvez te soe como exagero
mas observa que há momentos sem tempo
relógios indefiníveis e parados, quantuns de luz
só possíveis no sublime estado
de ter o caule elevado, bravio e natural
de ver o invisível e adivinhar a brevidade
com que me acendes os pés nos caminhos do calvário
de barbas brancas, uma bengala e o pacemaker avariado
enquanto espalhas, enquanto espalhas o aroma dos nardos
num alpendre morno, rodeada de árvores altas
enquanto a lua se esconde
embrulhando à pressa as cortinas, repetindo, repetindo
não, não aconteceu, não aconteceu, não foi nada
apenas o deslumbre de uma fase branca, iluminada.

é uma ilusão dizer que me esqueço
que me esqueço de um quotidiano feito de viagens
quando permanece como um rio fluido escorrendo terras
apertando e largando segundos no correr das margens.
não, não nego a contemporaneidade nem a injustiça dos homens-lebre
a dor das crianças adormecidas, as mãos atadas de sonhos
os martírios dos cucos calados, vidas sem surpresas nem asas abertas.
não, não nego os pregos, os martelos, os crucifixos das cidade
as falsas seduções de uma realidade construída de brilhos
brilhos, brilhos, brilhos fugazes.

compreendo às vezes os equívocos das palavras
os seus sonos de real ou irreal, um cinema acordado
construindo uma cena, uma cena por vezes sem sentido
quando nada mudou, nada mudou
dentro da alma.

cala-me. cala-me. agradeço-te. cala-me e não te cales.
não me deixes falar. não me deixes soltar. agradeço-te.

depois de escrever estes versos bato a porta
viro a chave que fecha a casa, abro a cidade
percorro o gelo e os passeios quadrados
fujo das linhas rectas, dos olhos fechados
e canso-me de pensar, canso-me de pensar
no café, no metro, no supermercado
percorro as ondulações do meu jeito e peço-lhe que se acalme
que se acalme

e apesar de um tempo seco e de um frio impermeável
sinto a chuva que me invade
e penso, penso, penso
na proximidade mais longínqua que te afasta
e nos teus olhos de cegonha
abrindo o mar -

José Ferreira 5Fev2011

A arca (supostamente) de Noé



O mundo está a mudar, e muito depressa. Na ausência de eficácia e convergência nos protestos provenientes da espécie dita esclarecida, os animais têm vindo a utilizar aquilo que têm mais à mão (passo o animismo imperfeito), para sacudirem a ordem do dia e o establishment de um mundo que ainda chora de noite quando acorda, está tudo escuro e não vê nem a mãe, nem o pai por perto.
Alguns historiadores, zoólogos e defensores de um Criacionismo de pendor sueco e obsceno acreditam que os animais se reuniram muitas vezes em surdina enquanto o homem vigiava a sua frincha de inocência, tomada tantas vezes pelo gigante da incoerência nítida.
Muitos acreditam ainda que os animais estabeleceriam planos que combateriam a estratégia paraplégica de uma espécie que reinava com a convicção de que era sublime (e apenas sublime!), e de que, por isso (ou nem por isso), lhe era conveniente existir acima e ligeiramente abaixo de todos os séculos, expectativas e erros, conforme a disposição daquele dia.
Pouco tempo depois, os animais – ainda segundo fontes do Novo Criacionismo – assinaram um tratado que mencionaria estar para breve o fim dos tempos de um certo tipo de sabedoria. Colocaram entre aspas “sabedoria” e “certo tipo”, mas não “o fim dos tempos”. Propuseram novos slogans, verdades, diálogos, mentiras e escatologias débeis. Deseducaram-se como uma pétala que foge à flor, por uma questão de milímetros. E tornaram-se reis, depois de violarem a única mulher a bordo e assarem na brasa a bondade de Noé, que, dizia-se, tinha um lombo impecável, se o molho se fizesse de véspera e a as batatas reluzissem.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

a chama inebriante do gengibre


Annie Leibovitz


aguardo sempre impaciente a inconsciência dos meus degelos
quando me transformo no meu outro escondido.
e ao gostar mais dele do que de um diário de acidentes
aguardo essas chegadas e partidas
quando me visto de aromas, vários ventos e faúlhas
na acesa transcendência dos sentidos
sem medo do sangue vivo, das múltiplas feridas
do excesso das queimaduras, do gelo mais gelado dos granizos
no sem limite dos sonhos, até ao limite das cinzas.

sonho. sonho sonhos.
não à poeira contínua,não às trevas, sim aos sinos
quando nascem os dias de roupagens clandestinas.

sonho. sonho sonhos.
sem ser gente, na metafísica de ser inconsistente
sem acordar as inexistências
e não ser nada e ser apenas
um ser sem ser, um ser vazio
um ser sério, sem poesias
um ser sem ser, sem o mistério
de púrpuras e purpurinas
sem a chama inebriante do gengibre
no meio de uma floresta nas amígdalas
sem as loucuras da pele, as cartas ridículas
sem os triângulos das pirâmides que são muito antigas
antes de Cleópatra, depois das mitologias.

sonho.sonho sonhos.
aguardo sempre o palco breve de Keats, de Shakespeare
aguardo sempre impaciente o sono da consciência
o sonho não-consciente, sem regras nem mandamentos -

José Ferreira 4Fev2011

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Poema em linha recta

Realmente quem, aos dezassete anos, declama e performa assim poesia, ainda para mais do Álvaro de Campos, merece destaque (Obrigado ao José Almeida que me deu a conhecer o jovem talento).

não sei porque saíste


Edouard Boubat


disse
faltavam ainda milhares de gestos
não sei porque saíste da frente do espelho.

- pousou os óculos e acendeu um isqueiro
naquele jeito religioso de um nirvana no meio de um concerto
como era possível ser o único no meio da melodia -

não sei porque escondeste esse olhar de sereia
de afundar navios, a pique, agora, quando
desaprendi a sobrevivência nua de ser ilha.

- foi obrigado a pousar a caneta inclinada de bolina
enquanto o gato lhe subia o colo
arredondava o dorso numa curva da espinha
e no olhar suplicante de uma festa
acendia o seu modo de trabalhar afectos
e exigia a repetição contínua
pelo meio da cabeça, esticando as orelhas -

não sei porque recusaste o devaneio das luas escondidas
o jogo erotizado das cortinas.

- o gato pequeno mesclado de tigre
miou o desespero de poder viajar o ombro
e descer de novo ao colo na tremura dolente -

como conclusão que não surpreende
o poeta desistiu provisoriamente do poema
- enquanto insaciável afagava o pêlo -
e o gato de olhar intermitente
simbolizou ao mesmo tempo o desejo e o recalcamento
enviando sinais de fogo a cada novo movimento
da pele ao deslizar os dedos -

José Ferreira 3Fev2011

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Pedro lembrando Inês


Edouard Boubat

Em que pensar, agora, senão em ti? Tu, que
me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a
manhã da minha noite. É verdade que te podia
dizer: «Como é mais fácil deixar que as coisas
não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos
apenas dentro de nós próprios?» Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
até sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.

Nuno Júdice

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

duas horas da manhã o aquecedor no máximo


Luís Lobo Henriques


duas horas da manhã o aquecedor no máximo.
os pincéis esfregam os cabelos em cem por cento algodão
misturam cores organizadas e suaves, na absorção serena
de um quadro húmido; a impressão de ser esta a cor mágica
aguarelada; um verde mar, um barco sépia, a transparência rosa
no fundo do fundo da água ao encontrar a tarde descendente
os olhos abertos do areal, bege e largo.

duas horas e um quarto o aquecedor no máximo.
o pintor interroga-se dos pormenores. o mar está calmo.
no barco desenha os braços, dois de cada lado -

José Ferreira 1Fev2011