quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Dizem que não sabiam quem era

what’s in a name?
"William Shakespeare, in "Romeo and Juliet" (c. 1595)

Usava roupa como a noite escura
Voltava a tempo do telejornal
Passava pelos rostos com candura
Sonhava em morar na marginal

Pintava a cara logo de manhã
Subia a saia como quem procura
No pescoço a velha marca da maçã
No peito um só rasto de ternura

Soltava a dor só pela ranhura
Prendia o olho de escorrer de sal
Fingia ser actriz de uma aventura
Diferente ou de frente e tal e qual

Sorria os lábios feitos de amanhã
Tardava um sorriso ao fim do dia
Trincava quatro amores e uma maçã
Trazia restos de uma noite vazia

Foi vista última vez no tal café
Cruzava a perna em laço de presente
E antes que alguém dela desse fé
Gastou-se no meio de toda a gente

Vertia roupa como a noite fria
Trazia os lábios postos na manhã
Despia a saia como quem queria
Adão e a velha marca da maçã

Brindava à dor só por mais um dia
Fechava o olho a escorrer de sal
Pisava os restos com melancolia
Pintava a cara no último ritual

Mordia os beijos gastos no divã
Tardia num sorriso inacabado
Tomava quatro amores e uma manhã
Soltava a dor com cheiro a guardado

Foi vista última vez com o tal batom
Atava a perna em laço de presente
E antes que alguém emitisse um som
Calou-se no tal café de tanta gente

7 comentários:

raquel patriarca disse...

Marlene, o poema tem um ritmo e um 'suspense' impressionantes, e acho magistral o facto de ficarmos sem saber, de facto, o nome.

Elza disse...

Gostei imenso do teu enredo, dessa história pequenina que não conta para os outros, que não tem nome, mas existe! E em facetas mil. Gostei particularmente dos versos: "Fingia ser atriz de uma aventura/ Diferente ou de frente e tal e qual". E para quê mais comentários? A poesia não se explica. E, no entanto, está tudo lá, nos teus versos. Parabéns!

josé ferreira disse...

Marlene adorei a subtileza do enredo, as quadras encaracoladas umas nas outras, as rimas certas, as frases no discorrer de notas de uma sinfonia. "Mordia os beijos gastos no divã" "vertia roupa como a noite fria" "trazia os lábios postos na manhã" "foi vista última vez com o tal batom".
Fazer poesia em quadras de rima certa sem se tornar vulgar é muito difícil, o teu poema é muito bom e dava uma linda canção!

Maria Inês disse...

adorei o poema oh parceira :) pessoalmente gostei imenso do "trincava quatro amores e uma maça". E a ideia do "gastou-se no meio de toda a gente" traduz maravilhosamente as inumeras pessoas invisiveis e sem nome que como no teu poema, têm uma historia mas que ninguem se lembra de descortinar. e se ninguem tiver a sensibilidade de a contar como tu, é apenas mais uma pessoa sem nome no meio de tantas pessoas sem ele. gostei muito!

Joana Espain disse...

E lá vamos nós rio abaixo nos teus poemas num dia amarelo torrado:). O fluir musical quase que subverte a tragédia do anonimato. Muito bonito.

auxília disse...

Até me esqueci da rima (achava eu que me irritava!) e deixei-me conduzir pelo "enredo" tecido de metáforas-surpresa. Parabéns, Marlene.

Ana Luísa Amaral disse...

Marlene, só tenho uma palavra (aliás, duas): muitos parabéns!