terça-feira, 30 de junho de 2009

Pastelaria

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante!

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny (Lisboa, 1923-2006)
in Nobilíssima Visão

segunda-feira, 29 de junho de 2009

A chuva dissonante

Castelos de pedras pequenas

Surge sem defesa a tontura do lado detrás da nuca
a impressão de um olhar cravado que nada mostra
esconde, não desvenda, um lugar de outros
que não se conhecem, sombras de outras histórias
na ansiosa existência indefinida de diversos sentidos
os recém-nascidos, os do meio, os mais antigos.
Por vezes a tontura surge como eixo de um globo
corte certeiro de Equador nas florestas tropicais
chuvas caudalosas, calores infinitos, Amazónias
de paisagens magníficas, arábicos ventos desertos
de passos lentos que conduzem à vida dos Nilos.

Não pára esse olhar intenso do lado detrás da nuca
como uma queimadura no dia frio; um pêndulo largo
contando os segundos, alinhando os ponteiros
no som das aves.

Construo paredes, ergo castelos de pedras pequenas.
Os quadros nas paredes não são meros adereços
inertes, sem vida. Os quadros são significantes
insubmisssos, soldados de futuro, células vivas.


Ruas pequenas, muitas esquinas
na reinvenção de um novo ser,
uma planta de uma nova fotossíntese,
seiva líquida de cor rubra, vertigem
nesse olhar de traves grossas
por trás da nuca...
e a tontura do vapor
de uma veloz locomotiva...

sábado, 27 de junho de 2009

A vida

A vida, as suas perdas e os seus ganhos, a sua
mais que perfeita imprecisão, os dias que contam
quando não se espera, o atraso na preocupação
dos teus olhos, e as nuvens que caíram
mais depressa, nessa tarde, o círculo das relações
a abrir-se para dentro e para fora
dos sentidos que nada têm a ver com círculos,
quadrados, rectângulos, nas linhas
rectas e paralelas que se cruzam com as
linhas da mão;

a vida que traz consigo as emoções e os acasos,
a luz inexorável das profecias que nunca se realizaram
e dos encontros que sempre se soube que
se iriam dar, mesmo que nunca se soubesse com
quem e onde, nem quando; essa vida que leva consigo
o rosto sonhado numa hesitação de madrugada,
sob a luz indecisa que apenas mostra
as paredes nuas, de manchas húmidas
no gesso da memória;

a vida feita dos seus
corpos obscuros e das suas palavras
próximas.

Nuno Júdice, in "Teoria Geral do Sentimento"

A folha branca na manhã complexa

A réstea de luz suficiente, o oxigénio necessário
um braço de sol, anjo caído que ilumina
a lisa folha branca disponível
na manhã complexa.

A luz suficiente recolhe numa aurora circular
o olhar fundo de uma noite incompleta.

No íntimo inclinar de sobrancelhas
encontro a ausência no teu mundo
a escondida claridade do teu sorriso
cândido, a estranha sensação diferente
de um toque demasiado leve nos lábios.

Quase o choque imediato de neurónios
na queda imprevista de umas chaves
e o deslize de uma auréola
para o lado de lá da janela.
Uma brisa,
fluxo imperceptível de Venturi,
estabelece a fronteira entre a rua,
a saída no corredor e o lugar fixo
de gravidade presa no meio espaço
de uma sala sem a luz suficiente
o oxigénio necessário depois do bater
da porta de uma despedida geométrica.

A folha branca eleva-se um pouco
na corrente de ar à altura medida
de um prisma de cores cruzadas.

Um código de palavras invisíveis
surge nas sombras de um poema
guardado; incompreendida
tatuagem interna, inscrita
no sabor ainda presente
de uma pele de pétalas
macias.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

quinta-feira, 25 de junho de 2009

A quadra premiada

Dancei com tão pouca arte
que até o cravo ao meu peito
com o teu, num halo à parte,
mostrou que tinha mais jeito!

Agostinho

Esta foi a quadra premiada no concurso deste ano do "Jornal de Notícias".
Uma tradição poética que se mantém!

Um cardume de cabeças

Concerteza a noite na imensidâo
de santos populares. Muitos, são muitos
debicando broas e sardinhas
engolindo ruídos, saboreando as notas
de um concerto de Villa Lobos
na praça do cogumelo gigante
cimento branco...

Antes era as Fontainhas (no lugar assassinado
de uma ponte) e as barracas, carroceis
farturas, desacatos e cadeiras circulares
na roda giratória de um enxame de gritos.

O fogo de artifício junto ao muro, beiral do rio
um cardume de cabeças,olhos brilhantes
os lábios abertos de espantos.

Passos lentos até ao "Cristal" destruído
o palácio inexistente. O final destino
nas tílias da Rotunda.

No caminho inverso barulhos breves
os pés mais arrastados, o suporte
de relvas em desalinho na Avenida.
Comprava sempre o "Notícias", na madrugada
onde se lia as quadras, as melhores
a premiada.

Na noite de S. João até aos nossos dias
permanece a memória e a poesia.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio de Andrade (Póvoa de Atalaia, 1923 - Porto, 2005)
in Os Amantes Sem Dinheiro (Lisboa, 1950)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Crepúsculo


A retina dos poemas

Na noite mais noite
os pirilampos acendiam as vestes verdes
e os mosquitos serpenteavam globos de vidro
nos passeios;
actividade de solstício
despertar natural da canícula.

Quando dia
quente tão quente a areia.

Oito horas a praia deserta...
na toalha de conchas e bolsa amarela
há quanto tempo não era assim o crepúsculo
lento descer até ao fim
uma linha ténue de aguarela
laranja decrescente paralela
na vertigem de um mar chão...azul.

O olhar na ausência de Rolleiflex
os passos breves o adeus da cor;
um mergulho ao centro dos peixes.

Depois do dia
na noite mais noite
asas longas ao encontro
de um rosto que divide o horizonte
e adianta de um lado a madrugada
do outro o nascer de estrelas
e a luz dos pirilampos
nos silêncios da noite
na retina dos poemas.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

O aviador



Kasimir Málevitch " O aviador" 1914

Dois amantes, o mundo

dois amantes, o mundo
cada um no seu reino, beijam-se nas praias
quando as ondas batem as areias

o mar é o meu navio,
hoje naufrago feliz

sabes quem sou, as dunas
que se levantam com o vento são
os sonhos do amor que dormita
em sossego nas praias

a terra és tu o mar sou eu

Jorge Reis-Sá, in "A Palavra no Cimo das Águas"