segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Carta à Minha Filha

Pormenor do quadro de Renoir imagem daqui


Lembras-te de dizer que a vida era uma fila? 
Eras pequena e o cabelo mais claro, 
mas os olhos iguais. Na metáfora dada 
pela infância, perguntavas do espanto 
da morte e do nascer, e de quem se seguia 
e porque se seguia, ou da total ausência 
de razão nessa cadeia em sonho de novelo. 

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se 
de junho, o teu cabelo claro mais escuro, 
queria contar-te que a vida é também isso: 
uma fila no espaço, uma fila no tempo 
e que o teu tempo ao meu se seguirá. 

Num estilo que gostava, esse de um homem 
que um dia lembrou Goya numa carta a seus 
filhos, queria dizer-te que a vida é também 
isto: uma espingarda às vezes carregada 
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande 
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te 
testamentos, falar-te de tigelas - é sempre 
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à 
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua 
de mentiras, em carinho de verso. 

E o que queria dizer-te é dos nexos da vida, 
de quem a habita para além do ar. 
E que o respeito inteiro e infinito 
não precisa de vir depois do amor. 
Nem antes. Que as filas só são úteis 
como formas de olhar, maneiras de ordenar 
o nosso espanto, mas que é possível pontos 
paralelos, espelhos e não janelas. 

E que tudo está bem e é bom: fila ou 
novelo, duas cabeças tais num corpo só, 
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio 
ameaçando chamas muito vivas. 
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura 
se transformou castanho, ainda claro, 
e a metáfora feita pela infância 
se revelou tão boa no poema. Se revela 
tão útil para falar da vida, essa que, 
sem tigelas, intactas ou partidas, continua 
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo. 

Não sei que te dirão num futuro mais perto, 
se quem assim habita os espaços das vidas 
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos. 
Porque te amo, queria-te um antídoto 
igual a elixir, que te fizesse grande 
de repente, voando, como fada, sobre a fila. 
Mas por te amar, não posso fazer isso, 
e nesta noite quente a rasgar junho, 
quero dizer-te da fila e do novelo 
e das formas de amar todas diversas, 
mas feitas de pequenos sons de espanto, 
se o justo e o humano aí se abraçam. 

A vida, minha filha, pode ser 
de metáfora outra: uma língua de fogo; 
uma camisa branca da cor do pesadelo. 
Mas também esse bolbo que me deste, 
e que agora floriu, passado um ano. 
Porque houve terra, alguma água leve, 
e uma varanda a libertar-lhe os passos. 

Ana Luísa Amaral, in 'Imagias (Um pouco só de Goya: Carta a minha Filha)' lido aqui

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