sexta-feira, 4 de maio de 2012

esta carta que te escrevo ( XV )


                                    Annie Leibovitz


escrevo-te esta carta para que a guardes
e para que não temas qualquer tempestade na Primavera
“Imagine” digo-te, um outro mundo um outro lugar
há mais do que ramos partidos, o que existe é o que está
mas se quisermos podemos sublimar as intempéries
passar acima dos raios, acima, acima de tudo.
vou-te contar, começa assim:

imagina a cidreira e o chá,  não em pacotinhos de papeis permeáveis
mas como folhas e pequenos tufos amarelos, em pequenos galhos
que emaranham na fervura das águas.
imagina o vapor , a condensação
a capacidade de conseguir voar e ganhar asas e voltar de novo
numa tranquilidade de gotas que se espalham –

o chá de cidreira tem a capacidade, o valor da história
a narrativa quente que recolhe resultados, pólens e aves
a cidreira acalma, não fiques nunca triste, disse-te um dia
abre os braços e respira, de cima das encostas do Kilimanjaro
abre os braços e sente uma alegria nos lábios
adorna e revolve a cabeça por sobre os ombros
no conhecimento dos pássaros. abre os braços e respira
respira longe como o horizonte e um crepúsculo que arde
respira e aspira a libertação do corpo e sobreleva todas as maldades;
o cinzento dos carros, os fumos e os ruídos das buzinas
a imensidão de prédios altos, tapando o sol sobre as estradas
e sobre a alma, porque o sol faz bem à alma, levanta o sangue
faz apetecer ser grande, para guardar um ramo de raios sempre
como o mar e as praias e o areal –

imagina  como corro com as palavras
sem conseguir escrevê-las ao mesmo tempo que saiem
procurando que te toquem o rosto, hoje depressa, com muita força
com os braços todos abertos, e os lábios e o corpo –
Imagine,  digo-te, tudo o que quiseres
porque fiz com as palavras um quadro de imagens
que povoam o deserto
que povoam os bosques e os muros das aldeias
que povoam os mares –

as febres, sim as febres de transcender, as levezas
as pontas dos dedos, a um milímetro das tuas faces
antes de tocarem e de fecharem os braços
apenas durante alguns minutos, um intervalo, o intermezzo, como um gosto
a imensidão do gesto, essa nova forma de respirar
abre os braços

respira de novo a alfazema e os odores naturais, a autenticidade
de querer ir mais e mais e mais e mais, sempre mais
devolvendo todos os segundos mal utilizados para reencontrar o mundo
o mundo dos teus braços. abre os braços –

se te acontece como a mim, há gotas de suor e os olhos como achas, acesas
e o cansaço não tem qualquer expressão porque chegámos alto
como se estivéssemos dobrados e juntos, todos misturados
com as cabeças nos braços, com as cabeças nos ombros –

aquele momento em que nos sentimos no máximo afecto e na pertença
de mais do que matéria, uma magia, um lugar de oceanos
um fundo de mar de corais, para que os peixes saibam, já o disse
quero os teus olhos felizes, uma gargalhada de lábios
as cabeças a escorregarem com as palavras e sem medos –

como todos os dias quero o teu sossego, emprestar os meus braços
para que os desmontes e construas de um outro modo
como um canto de aves e uma melodia, como as cordas de uma guitarra
que toca alegrias –

sou tonto, bem sei, uma loucura boa, que deseja e que vislumbra
uma loucura que responde a todas as perguntas e sonha –

podemos ser mais e podemos muito, uma frase simples
e pode ser tudo –

a complexidade das palavras por vezes atordoa adormece na forma penosa
e depois já não encontramos a bússola
já não conseguimos encontrar as nossas estrelas, a nossa lua –

aconchega-te de novo e ronrona, suspira e depois deixa que eu de novo
ronrono, por toda a noite, por cima do teu corpo –

desculpa-me, hoje estou deste modo, em abandono, como um forno
mas os dias e as cartas não podem ser todas iguais
as palavras saem e soltam-se sem serem obrigadas a ser notícia
como os títulos dos jornais, vê esta aurora como uma privacidade das pupilas
as pupilas que se abraçam –

quero que adormeças devagar
com as duas mãos devagar, a puxar as roupas até ao pescoço
para que não arrefeças e  sem olhos tristes: um sorriso no corpo, um sorriso na alma 
um sorriso do tamanho do mundo
para que os peixes saibam, para que os peixes saibam
para que os peixes saibam –

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