sábado, 12 de maio de 2012

esta carta que te escrevo ( XIX )




escrevo-te esta carta para que a guardes
como um papiro enrolado e teimoso, numa cor de cera
e de duplo sentido,  de barco e vela acesa
de mar e areia, de cor clara  e noite, de sonho e folhas estendidas, numa mesa.
vou-te contar, começa assim:

está um dia luminoso com raios parados e quentes.
 num rádio próximo, as ondas do éter, a música.
uma Tracy Chapman soa de  voz cheia e funda
e por vezes ausente e acústica no solo tarã-rã-rã, tarã-rã-rã
e sinto-me oscilar em  mãos invisíveis
sobre os ombros, os ombros da camisa,  azul como o céu morno –

repetem-se as cores, digo-te, é uma revolução por dentro
uma revolta que me nasce nas raízes  e sobe bem por dentro
um poder do intangível, uma hipérbole de um coração aflito
um batuque, um batuque de sinais, sem limite, “a bout de soufle”.
 repito-me, e canso-te –

a tua paciência esgota-se, não sei, digo, não sei , e preciso dos teus olhos
preciso dos teus olhos para os colocar junto dos meus, tão simples e tão perfeito
para os saciar de lábios, de mãos de roda, numa volta
e de outra volta. e depois encostados no meu peito, um conforto tão perfeito
e os braços, os braços e o abraço
os braços, dos dois lados, e um sossego, um sossego perpendicular
perpendicular ao areal, à linha do mar
e depois o laranja do crepúsculo, um incêndio a subir por dentro
até que horizonte arda, se vista de cinza e nos ofereça a lua
a lua branca sem distância e o mar ao fundo –

está um calor de assalto, tão forte que me dá forças
está um calor de dia, é isso que quero dizer, um calor de Roma, italiano
sobre uma toga branca e pura apenas porque não te encontro
agora, neste momento, voando num pés de sabrinas , soltando os cabelos
recebendo as carícias anónimas das brisas, as carícias que também são minhas
porque é lá onde se junta, esta minha espada de versos, a afastar inimigos.
 agora
no sítio em que sigas, eu  caminho –

desculpa, não quero ser obsessivo, respira, respira sempre, como quiseres
venero os teus passos e dispo-me do artifício, é tal o teu poder, tornas-me um anjo
e um  cupido atingido de seta, a despir-se e a tapar o umbigo –

as mãos que estendo são de muitas linhas e histórias e de algumas passagens de ventos
tempestades e trovões de alguns outros, eu acredito
e há um respeito em tudo o que me dizes –

desculpa, não é meu costume esta revolta, ser tão despido
mas é dos raios, os raios que apoquentam, que fulminam
que tanto me traçam a tua figura, como depois me recortam o ar em frente
e abrem um poço escuro, um lugar cheio de vazio        
uma rasteira do tempo, a supressão do linho –

sim, hoje é um dia luminoso e preciso dos teus olhos             
como faróis, faróis brilhantes de um navio, e das tuas mãos e dos teus dedos
para lavar as veias mostrar os aromas das palavras quando se vestem de vermelho
as palavras
que soam do lado de fora e depois entram nos ouvidos, e fazem eco, ressoam
e aproximam e crescem, de um tamanho, de um tamanho
que não seguramos o corpo e subimos o rio
 até à nascente
para descer de novo na seda de pedras que se amaciam
na selva das margens invejosas que quase não acreditam
nas árvores e nos  pássaros que se agitam;  
ramos, folhas e asas e um curso de águas duplas e lisas
um aconchego de infinito  –

abraço-te meu anjo, à minha frente, neste ramo de palavras
onde predominam jasmins e jacintos, os aromas das glicínias
o vermelho das buganvílias, as flores de petúnias, múltiplas cores
e as orquídeas, sim, as orquídeas
e uma união, tão perfeita, tão perfeita dos sentidos –

beijo-te a corda das vértebras, a coluna, e seguro-me
dás-me um mundo
de ombros nos ombros e de cabelos estendidos em trança
de um só lado para emoldurar o rosto, enquadrá-lo melhor, sereno
para que adore a sua inclinação breve, o seu sorriso de mistério e sem mistério
o seu desejo de amoras
o seu desejo de febre –

mas calo-me. como sempre tenho que calar as palavras, a sua platina
que me abre e me torna exausto, em arrepios.  calo-me e guardo-as.
para uma próxima carta.
como sempre é tarde e há um silêncio enorme nas paredes do quarto.
 dorme, descansa, dorme e descansa ao mesmo tempo.
sonha,  corre, sonha e corre  dentro do sonho por uma aurora
por um campo de margaridas de pétalas brancas e olhos amarelos
no dia de todos os pólens
e sonha agora, agora –

por onde sonhares, eu caminho, sonho contigo –

sonho contigo –
dorme, descansa e sonha
agora, agora  –


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