sábado, 26 de setembro de 2009

Um quadro nítido





Enquanto traço o poema
um ruído deslizante como um silvo
o perigoso movimento das coisas
a separação de estruturas
o chão treme
a clarabóia ressoa
na abóbada de vidros em cores.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
A camisa descansa do aperto de seda.
As calças finas e cinzentas.
As lamas soltas e pulvurolentas
nos lábios das solas, caem lentamente.
Um roupão branco cinta o corpo nu.
Os pés como lapas refrescam na cerâmica
da mesma cor branca do roupão
como prolongamento de giz onde a borracha
acrescentou os pés e os tornozelos.
Um silêncio. Uma ausência.

Um quadro nítido.

Lembro-me dela. Os olhos na cor do mel.
O grande eucalipto, as folhas, o aroma.
Inspiro a ternura desse vento Sul.
Os quentes dias de Setembro
as areias lisas, limpas, disponíveis
a praia, a grande praia deserta.
Os marulhos íntimos na posição de "Leonardo"
os braços e pernas abertas, lado a lado
escutando no azul indigo o horário das aves
que passam na procura de alimento.
Eram mais belos os cabelos de sereia,lisos
sem caracóis, sem os rolos pendurados
33mm de películas, fotografias e mais
fotografias que sorriam devagar no quarto
sem luz, entre líquidos e sombras, antigas.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
Naquela os restos de roupa e esta agora
onde me sento e traço o poema linha a linha
sem rima, em cruz emergente e singular.
Aqui o lugar original, o real, o horizontal.
Ali a história aquilina, o redemoinho
o retiro inventivo, os estilhaços de vidro
caindo, caindo, caindo do alto prédio
que arranha os céus e abre os paraísos
caindo, caindo, caindo até aos granitos
em partículas ínfimas e poeiras partidas.

Um quadro nítido.

Lembro-me dela. O primeiro dia.
Aquele de um lenço que encolhia o rosto
e era findo de nó pequeno e orelhas de coelho.
A gabardine comprida, os botôes de quatro pontos
as botas altas, o calor das malhas
a fivela muito larga de um cinto.
O meu ar rídiculo pousado no seu caminho
como um fardo de chumbo, sem saída.

Um quadro nítido.

Duas cadeiras, uma vazia.
As paredes deslizando de pés grandes
caminhando nos quatro sentidos
abatendo os quadros, encolhendo o espaço
querendo olhares de perigo.
Não! Não é possível!
Nada é mais que um destino!
Guardo a cor dos prados nos meus olhos
uma abóbada de vidros claros e coloridos
ímpares
e tenho amigos -

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