domingo, 19 de outubro de 2008

A minha bata amarela

Tenho uma bata amarela
Com dois bolsos
Pregados
Que visto no hospital.
Neles, guardo ternura
Sorrisos
Palavras
Afagos
E suaves mentiras
Daquelas, que não fazem mal!

Pressinto e prendo nas mãos
Muitas horas
Sofridas
As dúvidas
Restos de fé perdida
Pedacinhos, esfarrapados
De Esperança,
Tristes lágrimas incontidas!
Mas, ainda mais do que a dor,
Guardo nas minhas mãos
O susto
O desespero
O pânico
E, um imenso terror!

Lá fora, brilha o sol...
Há risos, vozes no ar
Muita alegria
Na praça!
É a vida a brotar
Apaziguada
Liberta
Apressada
Na gente sadia
Que passa!

Lá dentro, rostos velhos
Rostos jovens
Pálidos, esquálidos
Corpos ardentes de febre
Lábios secos
Cansados
Sem cor
Dizem-me como em oração:
" Deus é grande!"
" Deus é Pai!"
E, fixam os olhos nos meus
À espera que eu diga:" Sim!"
" Estou melhor, hoje, não estou?"
E,fixam os olhos nos meus
Inquietos, ainda à espera,
Agora, à espera de mim!

Então, muito de mansinho
os meus dedos esguios
Trémulos
Desajeitados
Gelados
Tiram de um dos bolsos
Pregados
Da minha bata amarela
Que visto no hospital,
Uma suave mentira
Daquelas, que não fazem mal!

Quando a doença é feroz
E me estendem a mão
Transparente
Emaciada
Suada
Que eu aperto nas minhas
Sinto e cheiro,
Impotente
Agoniada
Ansiosa
E aterrada
A estranha vibração
Da Morte que já fareja
Faminta
Gulosa
Excitada
E, ronda no hospital!

Quem me vê, vê-me serena
Naquele momento supremo.
Mas, dentro, num grito
Mudo
Angustiado
Perdido,
A minha alma explode
E, esgotada
Incapaz,
Chora
Clama
E pergunta:
" Porquê tanto sofrimento?
Se existes,
Deus,
Onde estás?"

Maria Celeste Carvalho

5 comentários:

Elza disse...

Celeste: Não tenho palavras para elogiar os seus textos... O estilo corrido que usou fez-me estar consigo a fugir depressa "daquela que ronda no hospital"... (Também eu já andei por esses corredores e como ansiei arrancar de um desses bolsos das batas amarelas "Uma suave mentira
Daquelas, que não fazem mal!") Gostei imenso de a ler outra vez!!!

António Pinto de Oliveira (António Luíz) disse...

De principio ao fim quanta sensibilidade, reflexão profunda e ao mesmo tempo tranquilidade e angústia na tremenda inquietude da pergunta : " Deus onde estás ??". Prefiro na verdade não perguntar! Prefiro não me iludir! Crua e cruelmente, amiga Celeste, prefiro aceitar a culpabilidade e a responsabilidade do genoma e do Destino ( essa "força oculta da natureza" que como um maremoto, furacão ou terramoto tudo pode mudar num momento...). Por isto sou agnóstico e ateu assumido, e só assim não praguejo em permanência contra "Ele". Grande homenagem que faz aos doentes, aos sofredores desta vida... muitos parabéns! Antonio

josé ferreira disse...

Este poema tocou-me profundamente, conheço bem a sensação das batas às cores, dos rostos que nos angustiam e nos obrigam ao sorriso exterior, à noite negra interior num massacre de impotência. No ritmo perfeito da descrição revejo muitos sentimentos que também foram os meus.
É um poema de alma grande, muitos parabéns Celeste!

Nuno Brito disse...

muito forte o texto, de impotência, medo - sofrimento


Parabéns Celeste!

auxília disse...

Só hoje li o seu texto, Celeste. E acho que foi um atraso no tempo certo (?). É que tudo nele me fez viver, uma vez mais, a impotência face à dor, à degradação física, à perda de quem amamos. Obrigada pelas palavras que, estranhamente, me purificaram da revolta abafada.