quinta-feira, 14 de junho de 2012

as janelas são vidros que iluminam


                                   fotografia de Alexandra Klemm

as janelas são vidros que iluminam. as janelas são uma companhia
em muitos  quadrados pequenos ou de uma só folha sem esquadria
e sem fragmentos nas faces límpidas.
e as janelas têm diferenças
as diferenças de fora e as diferenças de dentro
na distância das areias com que se amalgama o vidro –

as janelas abrem-se na claridade e no escuro
têm boas chamas, fogueiras lentas,  cinzas nas malhas do vento
e a reinvenção do espírito, a alma pura que não fala
a que se sente
na superfície transparente de silêncios –

e depois nas janelas também há o redondo
o círculo de um homem de Vitrúvio
a centrifugação de um mundo
um mundo de outros e único –

as janelas giram entre os latifúndios de um horizonte
e os pés de uma bailarina, de um bailarino
numa dança contínua
um equilíbrio
o ponto de alavanca de uma Grécia antiga
para levantar as asas e ser mais leve que a molécula de oxigénio
na densidade mais profunda –

essa possibilidade apenas existe
quando os olhos sorriem nos olhos dos outros
nos lábios dos outros, nos ombros dos outros
nos dedos dos outros, na pele dos outros
nos cabelos dos outros, na cabeça dos outros
nos pés dos outros
quando caminham –

nunca somos únicos e somos sempre únicos
este o maior paradoxo que existe,  
em cada célula orgânica
do dinossauro ao ser mais ínfimo
e a importância é o conjunto, não a ilha –

a ilha é a maior das mentiras porque há sempre terra e raízes;
uma atlântida, um triângulo das bermudas
uma palmeira e um coco de casca dura
uma rosa e os espinhos
uma música e um ruído
um cronómetro de sentidos  –

a ilha é uma mentira, a maior de todas as mentiras
porque esconde um continente
na superfície líquida
um continente que cresce todos os dias
como as janelas, as janelas e os vidros que iluminam –


 josé ferreira 

quarta-feira, 13 de junho de 2012

um soneto de Rimbaud



lá ia eu, de dedos nos bolsos abertos; 

o meu paletó tornava-se assim ideal; 
caminhava debaixo do céu, Musa! era o teu servo; 
Oh! mas que amores esplêndidos eu sonhava!

as minhas únicas calças estavam rotas. 
era o Pequeno Polegar sonhador, com um sonho à volta 
e criava rimas. o meu albergue era a Ursa Maior. 
as minhas estrelas do céu exalavam aromas e escutava,


sentado na borda das estradas, os bons fins de tarde 
de Setembro quando sentia as gotas, 
gotas rosadas na minha fronte, como um vinho forte; 

onde numa chuva de rimas e no meio de sombras fantásticas, 
das cordas de liras, tirava os elásticos, 
libertava os meus pés magoados, e colocava-os perto do coração -

Arthur Rimbaud (tentativa de tradução minha, o original pode ser lido aqui)

terça-feira, 12 de junho de 2012

os pés estão descalços, a pele é fina
























os pés estão descalços, a pele é fina:
skin against skin.
será mais suave o caminhar pelos caminhos
mais de terra, menos de pedras e de asfalto que não ferve.
o asfalto  é plano e negro,  sem azul  e sem descoberta -

os pés estão descalços, a pele é fina:
skin against skin.
será mais suave a escolha de um caminho, fios unidos.
fios de seda como linhas de um tecido:
que se tece e é tecido pelo sol, pela lua e pelas brisas
um tecido de sentidos –

os pés estão descalços, a pele é fina:
skin against skin
a simbiose de cor como o velame das orquídeas
mais de terra, mais de árvores
e de raízes  –

 josé ferreira

sábado, 9 de junho de 2012

poema de uma tarde de junho





















há este hábito de esperar os versos.
quando chegam tiro-lhes a capa molhada de uma chuva de junho
espreito a brancura dos ombros
coloco a mão na nuca para que descansem de uma viagem de mil anos
com ternura
para que soltem os cabelos

e de mão na cintura danço com eles –

josé ferreira

sexta-feira, 8 de junho de 2012

poema em cinco movimentos sobre uma fotografia



 I
escrevi dois poemas, hoje
na esperança de surpreender o teu corpo em contraluz
na luz da janela, tocando a cortina.
ao longe o rio é um murmúrio muito lento, as searas estão sossegadas.
respira-se a densidade verde.
na mesa um  prato de porcelana, um  círculo de ouro
os restos dos últimos biscoitos
 incompletos,  de uma forma imaginária, surpreendidos
e testemunhas  
em migalhas pequenas, nas pontas dos  dedos, uma  a uma –

II
escrevi  os poemas por este momento.
não te movas, quero o tempo parado, pause.
 suspenso, como numa fotografia , um fragmento
e a melodia, a música dentro da cabeça  e uma cúpula de cisnes
um céu azul mas diferente na luz branca da cortinas –

III
o teu corpo é um poema, um mar em movimento.
não te posso explicar o meu ritmo, o batimento do mercúrio
sei que a pulsação é de perigo, sei que  bateu
bateu muito como uma campainha
as têmporas, os ouvidos
a explosão dos sentidos –


IV
se voltares junto da janela branca e da cortina
em contraluz
e olhares de uma forma longa
do lado oeste, quando o rio descreve a curva mais abrupta 
como um cotovelo, junto do bosque da tigelinha, no lugar do monge
a esconder-se e  a descer
num brilho reflectido surge, na inclinação mais forte
um lago enorme de ondas, uma imensidão infinita
um corpo enorme com mãos gigantes que recebe as águas doces
as águas de um rio -

V
levamos as bicicletas pelo caminho das hortas
junto da represa onde as rãs saltam, onde há vespas e asas grandes de borboletas.
na descida mais abrupta colocamos velas brancas e sopramos
sopramos muito com bochechas de renascimento, para chegar depressa.
para descer sem medo a escada das baías
 até ao pátio fluido das areias, a serenidade das brisas –

haverá o crepúsculo das roupas molhadas, o banho múltiplo
e ao voltarmos com pedaços de mica e restos de algas
as bicicletas ficarão inanimadas com as borrachas limpas
numa relva crescida
e entraremos em casa com uma alma sem vícios
sem joelhos duros  e de mãos macias
para lavar o sal e adormecer na luz dos vaga-lumes
intermitentes, na respiração dos troncos e cheios de raízes
pousados, muito quietos e juntos –


 josé ferreira

quinta-feira, 7 de junho de 2012

com as letras todas nas margens de um rio




escrevo-te de novo com as letras todas e as rugas nos olhos
de piscarem sombras
e afastadas para longe
 para um lugar sem retorno, distante –

coloca o rosto no meu ombro,
como um sossego imprevisto de uma baía
ou de uma margem revestida de arbustos verdes
quando os rios são um privilégio sem inocência
somos crescidos
e mergulha nessa profundidade fresca como num mistério
de segredos e significados de rendas, um afecto de búzios
uma memória de outros tempos mas com sentido, filtrada
tornada mais fina, mais de linhas, mais de linho, mais de almofadas e companhia
e de tempos parados olhando uma pulseira de  cores ou um céu de arco-íris
mais de momentos tranquilos, digo, e uma música de fundo
um intervalo sem vírgulas, sem soluços, sem lágrimas e sem mentiras –

mas não tremas
não tremas, nem no sorriso
o sorriso quando treme e como a queda de um hemisfério
a incompletude dos dias –

josé ferreira

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A um ritmo certo, na parede branca


                                           

                                  Ludvik Glazer-Naudé        


As fotografias  passavam como diapositivos.
A um ritmo certo, numa parede branca.
Ali um barco, ali um pássaro, ali uma árvore
Ali um ombro.
A um ritmo certo que passava na parede branca.
Ali os olhos, na metade de um espelho.
Ali um braço, ali uma unha pintada de vermelho.
Ali um pé pousado numa sabrina plana.
Ali uma brisa de platina e os cabelos ao vento.

A um ritmo certo na parede branca.

josé ferreira 6 Junho 2012

terça-feira, 5 de junho de 2012

Sento-me então a olhar o rio





                                           Roland Gerth 


Sento-me então a olhar o rio, 
os meus pensamentos formam cardumes 
que contra a corrente se insurgem 
mas as águas são inexoráveis; 
olhando-as, a superfície cintila, 
propaga-se como se fossem notas 
de um piano na garupa de um cavalo 
que se dirige para o mar. 
O rio bebe as cores da cidade, 
sobre elas eu abro o coração 
em que te encontras, as colinas 
emolduram as raízes que à terra
nos ligam. Para os meus olhos 
é um momento de pausa: as coisas 
que interrogo não resistem à maré,
não dão respostas; perdem-se no mar 
como tudo o que a memória não reteve. 
Mas este rio 
já foi longamente folheado, nele 
escrevemos o romance de amor 
que nos deu uma casa, 
nos cortou o cabelo, nos afastou 
das rugas, nos entregou o azul 
(tecido, nuvem, divã, janela...) 
o voo das artérias, lugar do corpo, 
portas que nos amanhecem, espelho 
onde fazemos fluir a vida. Acordes 
da guitarra que forja o horizonte, 
que guia o sinuoso voo das gaivotas 
e acaricia a pele que rasga atalhos 
no interior dos sonhos. Estarei 
vivo enquanto me guardar 
teu coração. E no seu lucilar, 
esta água imita o fogo 
que devora sombras e escombros, 
libertando a asa que no sangue 
respira. A foz está próxima, 
mas o horizonte é o teu olhar. 
No leitor do carro, a guitarra flexível 
sublinha o que divago; os acordes 
disparam, 
encontram-me na trajectória do seu alvo.


Egito Gonçalves In A FERIDA AMÁVEL , Campo das Letras, 2000

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Intervalo



                                      Lillian Bassman


Faço um intervalo porque a boca se fechou
num silêncio de silício, uma campânula de vidro
imerso e sem imagens, e foi um dia de domingo –

Um caderno permanece aberto de notas dispersas sobre números
Um quotidiano, uma utilidade que não fala, nem mexe, nem merece.
Melhor assim o silêncio –

Faço um intervalo porque penso nos teus braços
Nos teus olhos, abrindo um sorriso
Nos teus modos tímidos
Na tuas palavras  sopradas pelos lábios
Nos teus ombros típicos:
Uma alça presa e a pele à mostra –

Faço um intervalo pelo rio grande imaginário
Com um chapéu de palha e um barco
Uma viola cheia de cordas dentro das mãos
Na posição de sol e por cima do teu colo –

O barco desliza na divisão perfeita de uma linha
Pela grafite de um compasso  e a meio do rio
E podia ser uma gôndola  de dias quentes
De profundidades ilíquidas, lentamente e sem a mente
Nos labirintos e nas ilações de rumos –

Faço um intervalo e penso na transparência de um horizonte
Em dias diferentes
O caminhar dos dedos como se corressem
E transpirassem e batessem num ritmo de músculo
Num íman de sede, numa entrega de tudo
Uma promessa de mundo –

Faço um intervalo porque é importante o sonho
E não creio nos demónios que calcinam a alma, como pedras
Demónios que atordoam e fazem perder os sentidos –

Acredito na cor das brisas e seguro as velas nos dias difíceis
Porque há muitos momentos na vida:
A distância de um oceano e a diferença do frio
A proximidade numa mesma cidade tornada longínqua
E o habitar da possibilidade como dizia Dickinson –

 josé ferreira 4 Junho de 2012

domingo, 3 de junho de 2012

O vagar


O vagar do que dizia soava ao escorrer do azeite, no lagar da ainda aldeia. No entanto, não morrera ele no chão, onde caíram as azeitonas deixadas. As que não se apanharam deram-se à terra. E ele ficou, com quem ficou, mas foi como azeite entornado fora de prato. Aceitou, mesmo depois de entender, até ao fim. É isso o que mais lamento.
Quase incógnito, impotente, como tantas mulheres de todos os tempos, e na inversão de papéis, mesmo assim, quando disse que não, foi não. Essas poucas ocasiões foram poucas demais, mas há quem se lembre.
Os tempos de hoje são parecidos aos dele em muitos lugares, é isso que me surpreende muitas vezes.
E se tudo pode mudar, deu o aviso, o que não muda. E o vagar do que dizia soa ainda como azeite, verde, velho, sensato, e a tempo, mesmo que ele morto. Morreu fora de casa e fora de terra. No entanto, ironicamente, ficou a esperança nesse aviso, e também tanto a agradecer. 
Anabela Couto Brasinha

sábado, 2 de junho de 2012

Poema

A poesia está guardada nas palavras - é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.


Manoel de Barros

Aqui vai o "exercício" com um sorriso para a inspiradora Ana Janeiro

AZeite

Ah!
Bentas, pois!
Cegueira total.
Dê para onde der,
É.
Fogeee! Foi por um passo.
Gueto, o cansaço dado,
Há que animar.
Ida, e que travessia!
Jesssusss!

Ler a mente, só o que é preciso,
Maluquice é o que há mais, e
Não falta muito, deleite.
O verde suave não afoga.
Pelas cores do céu que trocaram,
Que ficou sempre fim de tarde,
Restam.
Sem esperar nada,
Também não há fim ou princípio.
Uaaau! É bonito ver como se move o azeite!

Voz vai dizendo, música,
Xilofones; os tolos, esses,
Zombam. Amor não traz dor, isso é outra coisa.

Aí azeite
fui rua fora, até que entrei casa dentro. o zig zag na TV, não pensei se tropecei,
Azelha eu!
corro para os tachos fazer  arco-íris, e foguetes, a grande festa. não há nada como o azeite, verde garrafa, e desculpa, esvaziei ontem a última garrafa de outra coisa, e é forte o azeite, aquilo é condimento, alimenta, e nada faz falta aqui.



acordei com os braços em cima dos teus seios
olhando a encosta, junto do carro vermelho.
foi aí uma hora e pouco nos mexemos;
as mãos em silêncio, as asas sem medo -

o planar dos melros por cima dos pinheiros
era um  lago parado na cor dos espelhos,

 e por vezes os lábios
como borboletas –

josé ferreira 2 junho 2012

sexta-feira, 1 de junho de 2012

7

                                Katerina Bodrunova

Fecham-se as persianas
À ternura urge o lusco-fusco.
E os olhares ácidos
Do crepúsculo
Não saboreiam
Silêncios subtis
Num sabor feito de ardor
E arco-íris.

Fecham-se as persianas.
A ternura invade o chão nu
Numa união sempre original
De corpos doces a saber a sal.

Fecham-se as persianas.
Arde a luz.

                                10.07.1991

José Almeida Silva in Amanheceste em mim pelo poente, Editora Moura Pinto, 2007