terça-feira, 23 de março de 2010

rota

foi irreparável
a rotação do teu pescoço

a matriz respirou

dancei séculos à luz parada
com o autómato
que corou

à volta das coisas

tenho medo das linhas
à volta das coisas

linhas de luas lentas
ao longe mas à lupa
ondas rápidas que escurecem
com falta de probabilidade

não existem

linhas quadradas de xadrez
penduradas no Anjo
e desfeitas em renda pela noite
à espera do tempo

entre a laranja e o resto do mundo

tenho medo que não existam
as linhas à volta do meu corpo

o prestidigitador organiza o espectáculo


Gerhard Richter "Abstracto" 1994

Há um piano carregado de músicas e um banco
há uma voz baixa, agradável, ao telefone
há retalhos de um roxo muito vivo, bocados de fitas de todas as cores
há pedaços de neve de cristas agudas semelhantes às das cristas de água, no mar
há uma cabeça de mulher coroada com o ouro torrencial da sua magnífica beleza
há o céu muito escuro
há os dois lutadores morenos e impacientes
há os poetas sábios químicos físicos tirando os guardanapos do pão branco do espaço
há a armada que dança para o imperador detido de pés e mãos no seu palácio
há a minha alegria incomensurável
há o tufão que para além disso matou treze pessoas em Kiu-Siu
há funcionários de rosto severo e a fazer perguntas em francês
há a morte dos outros ó minha vida

há um sol esplendente nas coisas

Cesariny "Manual de presdigitação" 1956

Domingo, velhos, crianças



Era domingo, e os velhos tinham mais cabelos brancos
na rendição. Mais consoantes mudas. Mais habilitações
para deixar de falar.

A injustiça invade de neve as cabeças dos mais incautos
e aos domingos a minha espécie é de uma sinceridade trágica
e insular e adoece em todo o seu enunciado

depois, um longo repertório de passos dados em falso
põe cabelos brancos nos homens e humidade
nas paredes irónicas que educam o cenário

atrás esconde-se uma fábrica de misericórdia
pouco merecedora de aplausos ambientais
e à sua volta brincam crianças lendárias
com elementos provenientes do carnaval
oportunista da sua vida real
e é nas suas perucas loiras de esperança
que agora pousa o meu olhar.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Crónica de um W.C. ocupado, por motivos de força maior




Como um copo de vinho pousado na oscilação
o planeta acusa algum cansaço e o meu corpo dança
a ardente contemporaneidade da sua dor.
Tornado morto pela opacidade do instante
eu sou aquele que te espera despejada
de adornos e circunstâncias
do lado de lá da porta da casa de banho
de um comboio com destino ao desencontro.

Ainda demora muito
o amor?

É inútil entregar-me à especulação,
enquanto sofro:
do outro lado, fazes apenas o que todas fazem,
mas muito melhor.
Organizas a minha aflição ao pormenor,
de forma a que não fique nem um minuto de fora
da antiguidade das tuas práticas castigadoras.

Tens o cuidado de morder o lábio inferior quando
por fim o alívio inunda o poema concreto do teu esforço
estrelas que caíram mortas no fundo de um poço
cheio de noite, papel queimado e águas ferozes.

E quando de facto eu não puder mais aguentar
e pensar finalmente em arrombar a porta
o comboio parará na ultima estação do abandono.

domingo, 21 de março de 2010

sete dias


Matisse "A rapariga de olhos verdes" 1908

sete dias que não escrevo.
um orvalho de memória. a semana número treze.
o diâmetro de palavras gordas tornaram-me redondo.
rebolo aéreo enquanto me dobram todas as esquinas
as palavras aveludadas, permanentes, íntimas.

na escarpa alta
uma nuvem de mar aperta o oceano
e também ela se arredonda
ganha rosto ganha forma
grandes braços à volta
a quarta folha do trevo

sete dias que não t'escrevo

QUÉ FROR?


I

Fascínio e perfume trazem os vendedores de flores
Porque geralmente são das raças antigas das índias
Porque solitários olham o público deslocando-se
Mas com a altivez de quem não olha nos olhos
Como a prostituta ciente que não beija na boca
Porque evitam as perguntas pessoais e são
Cinzas contrastantes com as cores vivas das pétalas
Porque encostam discretamente as rosas no peito
Porque em dias de chuva pedem lume
E até um cigarro e protegem um jardim nos braços
E calados - o fumo que exalam tem uma distância que fala
Que nunca colide com o silêncio das plantas.

II
Fascínio e perfume trazem os vendedores de flores
Porque embalam armas de aroma em plástico transparente
Porque avaliam rapidamente os potenciais amantes
Porque adivinham quem ama a continuidade da flor no vaso
Porque aparecem se soletrado um poema no ouvido de alguém
E assim se confunde o conhecimento do seu autor
Porque fazem parte da classe de trabalhadores das abelhas
Mesmo não revelando em baile as flores mais apetitosas.

II e I/II

E fascínio e perfume sobram
Porque tristes saem à rua para ganhar a árvore
Porque reconhecem que também eles
Vendem o amor como um forasteiro
E sempre têm troco para dar na moeda local
Enquanto sonham tecer um tapete de flores
Para que em procissão regressem ao perfume da terra
E fascinados cuidem um roseiral não ambulante.

Pré-poema inédito do (regressado) A. Roma.

MOMENTO ZERO

Pode chover à vontade ............................................(tratar por eu)
O noitibó-de-nuttall acordou não quer saber da armada em dura
Pode chover em sentido ..........................................(tratar por eu)
Nuvens formam filas - dramático carácter ao invés das manhãs

A primavera e os camaradas do hemisfério norte
É nunca perder de vista nas marés do sul ...............(tratar por tu)
O espelho do equinócio das asas de dentro das asas de fora


Nota de teor zoológico: O noitibó-de-nuttall(Phalaenoptilis nuttalli) é uma ave nocturna conhecida por ser a única que hiberna.

sábado, 20 de março de 2010

Micronações: O reino do amor




É o amor, e não o Vaticano,
a mais pequena nação do mundo.
Podemos imaginar: um coração,
um enclave totalmente independente
do território estrangeiro que o domina.

Mas quando um coração se liga a outro
perde imediatamente a sua soberania.
As suas fronteiras adoecem e desistem.
O sol desfaz as faces dos seus príncipes.
O povo ganha finalmente um governo.

quinta-feira, 18 de março de 2010

bullying


olivier taugourdeau "janela"

qual o sinal que prenuncia o facto?
caiu uma pedra de um muro sobre a estrada
era azul e amarela na casa abandonada
agora na cor cinzenta,abstracta.
na inclinação de luz um vidro inteiro é branco
e ninguém já existe por detrás da janela;
a ruína de um quadrado, um campo de batalha
depois a escola

depois na escola as pedras não falam alto
silvam na forma de dedos maiores
uma toada por sob uma cruz de cimento
e um lamento : mas porquê?
e depois o silêncio, sempre, sempre o silêncio

passado muito tempo surge a pergunta:
como será o fundo de um rio quando quer o mar?
e os peixes?

alguns peixes sabem voar

e depois o silêncio -

paraíso


Zena Robinson "o espírito do jardim" 1997

"com o correr dos anos, observei que a beleza,
tal como a felicidade, é frequente. Não se passa
um dia em que não estejamos, um instante, no paraíso."
Jorge Luís Borges "Os conjurados"

madrugada:o fumo branco de um universo
onde o mar tem barcos de bosque e erva
raios reflexos de neve e mármores impuros

os corvos voaram sem ruído na lua breve

linha a linha a semente
o segredo múltiplo das orquídeas

a derme treme nua
cresce uma voz de terra profunda
mística como um hino na sombra:
acredito em ti mulher
em ti...em ti...em ti...

frequente instante -

terça-feira, 16 de março de 2010

Canção da mulher descalça


A imagem lendária de uma mulher descalça
não porque as mãos estejam sempre descalças
mas porque os pés são as mãos das nossas desinibições.
A cidade não está preparada para a leveza
que uma mulher desempenha descalça
e oferece a sua espada à doença simpática
do amor.

Só os pobres e os pássaros
e as ambulâncias a vêem passar
porque nunca cicatrizam onde
a necessidade vende melhor.
Na perspectiva da cidade dos homens
uma mulher descalça põe a morte em perigo
e a vida depois.


Os homens ignoram, pelo menos três vezes por dia,
esta erótica crepuscular.
E vão para o Café e discutem gases
política póstuma e cerveja com futebol.

domingo, 14 de março de 2010

Tempo fluvial


Paul Rubens "O rapto de Europa" 1629

Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos

Nuno Júdice

sábado, 13 de março de 2010

3D



A três dimensões
Esticava a ponta dos dedos
Para desviar as legendas

Quando era grande
Alice não sabia se queria o dandi

Bebe-me! Morde-me!respira fundo! Segue o coelho!
A chave? O chapeleiro louco
Versace, Gautier, Valentino, Galliano
Costura uma saída.

Alice tem tempo! Alice tem tempo!
Alice tem tempo de dizer que não queria.
Acabou o filme.

Grãos de milho rolam na alcatifa -

sexta-feira, 12 de março de 2010

Democracia




quanto ao tempo um pouco mais louro e quente
o adeus do inverno no caule esguio dos junquilhos.
amarelo o sorriso quanto à política.
dizem que PECados ninguém tem;
história antiga de Cerejeira que não usava brincos.

empurra para o lado
tapa o bocejo da confirmação um pouco cinza
na extinta Assembleia de credos "Pap'açorda"

o senhor presidente
silêncio. serenidade. filosofia.
Sócrates sempre soube, mas era o outro.
o gato tem sete vidas, "Free" as the wind.
TeVI à escuta do jornalista.

o senhor presidente
ar circunspecto de economista.
ainda não é hora de bomba atómica
(talvez para o ano, quem sabe
no meio do terreiro do paço;
um cogumelo mágico.
depois lava-se tudo no Tejo
e daqui a mil anos
volta o ùltimo dos moicanos)

quanto ao governo, procurador, casa pia
liberdade,censura - opinião nemhuma.

a justiça moribunda que decida -