segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Poema

Mais um poema de Nuno Júdice do seu livro "Cartografia de emoções"

Poema

Podemos falar dos sentimentos, descrever
as impressões que nos ameaçam, e revelar o vazio
que se descobre na ausência um do outro: nada,
porém, é tão inquietante como a dúvida,
o não saber de ti, ouvir o desânimo na tua voz,
agora que a tarde começa a descer e, com ela,
todas as sombras da alma. É verdade que o amor não é
apenas um registo de memórias. É no presente
que temos de o encontrar: aí, onde a tua imagem
se tornou mais real do que tu própria,
mesmo que nada te substitua. Então, é
porque as palavras são supérfluas; mas como viver
sem elas? Como encontrar outra forma de te dizer
que o amor é esta coisa tão estranha, dar o que nunca
se poderá ter, e ter o que está condenado
a perder-se? A não ser que o guardemos dentro de nós,
num canto de um e outro a que só nós chegamos,
sabendo que esse pouco que nos pertence é
tudo o que cabe neste sentimento.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Alta muralha

Era o prédio mais alto na rua mais alta
da ciddade junto ao mar.
Telhados de remendos e vigas desalinhadas
condensadas em brilhos de alumínios
reflexos arco-íris nos dias húmidos
desfiando luz.

A rua era a mais funda na cidade baixa
de legos castanhos, vista do prédio alto.

A náusea do perigo a evidência da distância
na volta da varanda e a cidade inerte, suspensa.

Não havia asas talvez dormissem de bicos quentes
rodeadas de sovacos e o arfar de folhas verdes.
Das árvores na varanda alta não se viam troncos
apenas cabelos de selva, círculos infantis incertos
copas distintas de tílias, plátanos, loureiros
e o sobrevivente rododendro no átrio do Paço
que previa de botões pequenos, pontas de lança;
não era a época do lilaz.

Na varanda alta era um na cidade muda
recebia raios de chama golpes na face
e os dedos vincados no tubo inox
vidro aquecido.

Trouxe uma cadeira de lona uma mesa de arame
um guardanapo bordado um copo de água
abriu o bloco estendeu o olhar até ao azul
tão azul no limiar de um céu mais claro.
Lembrou o dia da casa mais baixa na rua mais
estreita da vila mais pequena
agora na varanda alta esplanada sobre o mar
onde certamente as gaivotas e os golfinhos
eram os mesmos indiferentes aos ritmos
dos cimentos e palavras tão distantes.

Não pôs o chapéu não queria
um fio de sombra separando o Sol
deixou-se ficar como quem aguarda
um amigo do céu uma sereia do mar
e interrogou-se se talvez não devia
trazer uma outra cadeira
ou antes
uma banheira na varanda alta.

E sorria e gritava na mais alta muralha
na cidade calada.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

O dia 14 de Fevereiro

Está previsto um dia de Sol amanhã
por isso não se cuidem
não se cuidem da cor

dos lírios das orquídeas da romã
dos "fruit de la passion"
nos bosques "du lendemain"
numa praia de Itapuã

e não se cuidem por isso
dos aromas de uma rosa
em pétalas cor de maçã
do travo sabor picante
de uma folha de hortelã

e por isso
o poema é só isso uma rima
de um feitiço
para o dia de amanhã!

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Narimbá

Narimbá quebrado no barco sai para o mar
a pele morena sabe a destinos de Sol e sal
e Narimbá parte, os dias todos pela manhã.

Leva farnel, uma sardinha o pão de maná
olha as ondas em héxagono sisal
espera o tempo largo medindo o céu
descaindo de luz nas pratas do seu mar.

Houve um dia o barco no areal.

Nesse dia o Sol subiu mais alto
soltou gotas escondeu o olhar
de nuvens cinzas ondas sentidas.

Foi o dia mais triste na praia de Iemanjá:
14 de Fevereiro - o dia da sereia

Narimbá entrou no mar.

Convictos

Das manhãs laminares
que deslizam pelo útero
escolho aquela
vermelha suspensa
em os olhos se espalharam
grandes e convictos
e nunca mais te viram.

As paredes do meu ser

AS paredes dos meus dias são feitas de vidro
sujeitas aos sinais do clima;
sol intenso, águas de chuva, gotas de grizo
intenso frio:
três camisolas, um anorak, meias de lã
mas sobrevive o brilho
de um sorriso hortelã no ar adverso
e as formigas seguem o seu caminho
tão escuro, tão espesso, nas rotinas
da cidade.

Quando era menino minha mãe
via dias num aquário de neve
prédios de pernas ao contrário
dentro de paredes líquidas.
Respirava água a alta torre, a casa mais bonita
e as mãos pequenas de criança à roda fixa
do mesmo cristal, sem renas, feitas de pedaços
de penas, estrelas brancas, ora em cima
ora em baixo.

A minha cidade tem paredes cor de tela
escrevo nelas palavras anónimas de grafites
de pastel, na forma perene de gravuras
ilustradas, serpentinas de pincel.

Por vezes no Carnaval
quando era menino minha mãe
fazia chapéus de listas, de fitas coloridas
mas um dia disse uma asneira picante
pediu-me a língua e pôs
pós de cor gengibre, especiaria opalina
pimenta, ardia ardia ardia
guardei as lágrimas numa bolsa pequenina.

As paredes dos meus sonhos são feitos de névoa fina
são rios ou areias movediças
mas não os sei
nem qual é o seu destino
guardo risos guardo lágrimas
numa bolsa pequenina
a bolsa de minha mãe
aquela que viu nascer
os meus sonhos de menino
as paredes do meu ser.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Ambos nos olhares

Quero-te de olhares noutro sentido
aberta aos sons que o vento traz
descruzando a lira de mensagem
que sendo minha no silêncio
da tua como onda se desfaz

em chuva persistente de morrinha
gotas de discurso tão fugaz
como ruído de granizo impertinente
sem frases belas palavras ternas;
folhas e maçãs de um Paraíso.

Quebrem-se os arames
as pelúcias dos ditames
e frente a frente ao som das águas
falemos sem qualquer medo
nas mãos das fragas
dos olhares noutro sentido
sem outras mágoas.

Dizem do homem ser mais muralha
preso de nós e de lugares
Dizem da mulher ser mais profundo
o sentir e a chama de acendalha
embora a mesma lógica- o ideal
a metade do divino
o meio caminho
a lima e o mel doce
a flor e o espinho.

Por isso em ti me fundo de liana
em palmas oscilantes de passeio
no teu ombro nada vejo
cego em florestas de cabelo
nas lágrimas mágicas de brilhos
ambos nos olhares
unos sentidos.

Poema

Uma pequena pérola de poema que começa numa frase muito conhecida, muito utilizada.


Poema

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Onde há ondas

Não engole, digere,

é planeta, dimensiona-nos,

espaço e lógica do nosso papel.

Ama-se assim,

em abandono, sem força,

à música que o manipula com um sopro

numa dança contemporânea, onde se cai e rebola,

onde se pára no silêncio e se mexe só os olhos devagar.

E como se deseja,

se espalha e se abre na pele de todos, sempre nua para ele

que despimos, novos e velhos, e lançamos em sentida oferenda,

numa troca bem pensada, onde pelo nada de quem nada teme ao nadar

em ondas que nem sempre vemos crescer, já sem fôlego, se recebe o sabor de todo o ser,

não refinado, não mutilado, em ferida aberta

que dói, mói, arde e sara

salga a humanidade.

O Mercador de Veneza

Tarde parda de domingo
algumas gotas de chuva
poucas na praça.

Desafio de segredos e espantos
nas falsas modéstias de um balcão
cadeiras soltas veludos gastos
de cor rubi junto à coluna
pessoas muitas.

O Mercador de Veneza época áurea
o fosco judeu brilho de usura
alguns mais personagens no cenário.
História de anos talvez trezentos
os tormentos deduções e aventuras
nem tantos talvez minutos.
Nas luzes do presente
nas rotinas escuras de
cidades consequentes
homens tantos mulheres várias
amores pedintes riquezas raras
são intermitentes raízes sempre
em séculos de idades.

Cofres ouro prata chumbo
alegoria cristalina de mensagem
súmula do conforto no posfácio
prémio defesa subtil que destina
o suspenso final que oscila
entre um quilo de carne humana
e a suprema entrega da sua amada!

Ganham os bons julgados fracos.
Sem a filha, as moedas, a vingança
perdem os fortes que no fim
se tornam fracos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Quatro quadras

Inventário


De que sedas se fizeram os teus dedos,
De que marfim as tuas coxas lisas,
De que alturas chegou ao teu andar
A graça de camurça com que pisas.

De que amoras maduras se espremeu
O gosto acidulado do teu seio,
De que Índias o bambu da tua cinta,
O oiro dos teus olhos, donde veio.

A que balanço de ondas vais buscar
A linha serpentina dos quadris,
Onde nasce a frescura dessa fonte
Que sai da tua boca quando ris.

De que bosques marinhos se soltou
A folha de coral das tuas portas,
Que perfume te anuncia quando vens
Cercar-me de desejo a horas mortas.


José Saramago

Retirado do livro oferta do Jornal de Letras

Poesia curta

Alguns poetas têm o condão de escrever em poucos versos grandes mensagens
daquelas que ficam na memória como uma estrofe de pauta, uma canção.


A história da moral


Você tem-me cavalgado,
seu safado!

Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo!

Alexandre O'Neill

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O prisioneiro da liberdade

Não é suportável todos os dias
a gota pinga a alma ferida
o negrume tão escuro de uma vida
putrefacta de destino. O não sentir
a pele amiga que nos cobre e amacia.

Dez anos de exílio na escura prisão
grades de quem ousou denunciar o
opressor. Entrega ingénua de liberdade
a própria, una, pura, princípio singular
de cruzada, sina frágil. A dor só
que gira na roleta dos duros cardos
permanente e forte, imensa tortura
na rotação de globo, cela profunda.

Quatro paredes medidas de mãos
junto ao catre- dez por cinco palmos-
vinte livros ao alto um copo de lata
a janela de carvão uma algema desenhada.
Luz de velas em escada de ceras
o espelho torto de tábua na moldura
um prego e um nagalho discreto
o prisioneiro à solta olhos fechados
a alma ferida na almofada.

A terra do nunca

Mais um poema do Nuno Júdice um poeta que muito admiro desde que me chegou às mãos o livro "Cartografia de Emoções".
Hoje deixo-vos um poema que vem publicado num livro oferta com o Jornal de Letras. Chamou-me à atenção o nome e o síndrome "Peter Pan" que por vezes me seduz no desejo de elevar um pouco os braços e em magia de "Sininho" tocar as estrelas, conversar na Lua e espreguiçar-me coçando lentamente os olhos aos primeiros raios de Sol, ou seja cobrir-me de um sentir de girassol na direcção exacta da Luz.



A terra do nunca

Se eu fosse para a terra do nunca,
teria tudo o que quisesse numa cama de nada:

os sonhos que ninguém teve quando
o sol se punha de manhã;

a rapariga que cantava num canteiro
de flores vivas;

a água que sabia a vinho na boca
de todos os bêbedos.

Iria de bicicleta sem ter de pedalar
numa estrada de nuvens.

E quando chegasse ao céu, pisaria
as estrelas caídas num chão de nebulosas.

A terra do nunca é onde nunca
chegaria se eu fosse para a terra do nunca.

E é por isso que a apanho do chão,
e a meto em sacos de terra do nunca.

Um dia quando alguém me pedir a terra do nunca
despejarei todos os sacos à sua porta.

E a rapariga que cantava sairá da terra
com um canteiro de flores vivas.

E os bêbedos encherão os copos
com a água que sabia a vinho.

Na terra do nunca, com o sol a pôr-se
quando nasce o dia.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Heterónimos de Fernando Pessoa

Segue o teu destino
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-votos aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis (1916)
Poesia Heterónimos Porto Editora
(introdução e organização de
Auxília Ramos e Zaida Braga)