terça-feira, 30 de março de 2010

Últimas vontades




Deixo-te uma indicação inquieta
e uma explicação concisa
sobre a forma como deves
vender a tua ausência
a mais ninguém.

Deixo-te um velho planeta bipolar
e maioritariamente triste nos trópicos
da decência
uma nação na bancarrota da sua pose
irresponsável perante o auxílio.

Deixo-te uma bússola e um pêndulo
completamente perdidos nos seus afazeres
domésticos e desprezíveis.
O pack inclui ainda uma venda de oxigénio
e um revólver compreensivo
que fará as vezes da minha vez.

Deixo-te o misterioso compasso que desenha
ângulos mortos nos desertos onde acaba o coração
e começa o âmbito da flecha que não atingiu
por pouco uma história mais simples.

Escrúpulos que não cabem na caixa
negra deste poema.

segunda-feira, 29 de março de 2010

penélope - a canção de primavera


Jonh William Waterhouse " a song of springtime" 1913

preso,penélope, preso
na memória dos teus seios
que em sonho abres qual cisne de lábios grossos
em dança branca na altura de dois braços.

luzes,penélope, luzes
nos faróis helenos de fogueiras nas muralhas
onde adormeço células de cordas tensas
no círculo veloz de sangue enfermo;
caminhante de desejo .

desconheço, penélope, desconheço
as invejas de helena, as fúrias de aquiles
só não gosto destes muros onde esmoreço
de espada à cinta, lassa, sem deslizes.

ainda,penélope, ainda
trabalham agulhas sobre as águas
na esperança de um barco à vela,
uma jangada, uma tábua colada de dedos
e o corpo, o corpo forte de ulisses.

resistes,penélope, resistes
e sei que um dia não serão só raios
sobre o ulmeiro de ítaca
nem só lágrimas de noite no destecer de tecidos.
a luz exacta de uma seta surgirá no teu pranto
e o fim dos pretendentes.

levaremos argus e o alaúde de ébano
voltaremos a visitar os campos -

O último andar

No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar.
É lá que eu quero morar.

Quando faz lua, no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar

De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:

no último andar.


Cecília Meirelles (Rio de Janeiro, 1901-1964)

sexta-feira, 26 de março de 2010

Informações Úteis



Amar mata.
Amar puede matar.
Vietato amare.
Aimer peut entraîner
une mort lente et douloureuse.
Loving can cause male impotence.

Richelieu




por favor.por favor. não se importa

mar. tanto mar
o não limite errante num cerco de vento
nuvens e um sol tímido de gente.

muitos anos atrás um túnel escondido
nas linhas de um comboio e encostas de uma serra
época de generais e domínios de frança.
na arqueologia fugaz de fato e alfaiate
desceu escadas de ferro à luz da lanterna
acendeu filamentos dentro de uma capela
no meio de espíritos e nichos vazios;
antigo templo invisível sem nomes nem símbolos.

uma alta abóbada e três barras metálicas onde
porventura rendas, um crucifixo e talha dourada
em toda a volta um ruído de água em direcção ao rio.

desce.desce.sobe.sobe. quatro horas ao fim do dia
e o fim das pilhas. escuro. que susto. A mãe zangada
15 anos e quatro manchas de lama nas abas do casaco.

mar.tanto mar e um altar. A analogia do divino.

vem a propósito a existência dos anjos. Onde são?
vestem-se de branco?
será que se escondem atrás da linha do mar
num terraço plano de precipício onde
descansam asas e saltitam algodão?

a analogia. a entrada secreta de um túnel.
talvez exista uma porta naqueles arenitos mais míudos
uma porta de Alice
que abra uma saída.

de repente um céu húmido de castelos brancos.
um breve granizo. Um pouco de sol.
uma nuvem de asas grandes nas mãos de uma criança.
gaivotas debicam pepitas esfusiantes de milho.

na mesa mineral de um lugar seguro
interroga a possibilidade física de uma porta de mar
e o caminho qual será?

chega o empregado:

por favor. um café curto e um sumo de laranja natural
desculpe. por acaso não tem o público? O jornal?

imaginou um grande espaço branco e anjos
todos descalços, um pouco suspensos de asas
cabelos soltos e olhos de muitas cores, tizianos
na luz de auréolas, uma genética de néons
anunciada de trombetas solenes:
agora à sua direita something completely diferente!

pouco a pouco as gaivotas saíam.
incrível. as nuvens tão diminutas e o azul.
como mudou a atmosfera.
a palha entupiu numa pevide
e lembrou-se do Richelieu, o melro que fugia aos gatos
entre camélias rubras e azáleas claras, floridas, o tempo delas -

A falling love (epílogo e teorema)





I

O amor não é como Roma:
demora a cair.
Por isso, a volúpia é lenta
e o poema não nos ensina
o pára-quedas a tempo
nem que a queda
também ela é um objecto
passível de cair.

Demoradamente.

II

Porque repara: pode-se fazer tudo com o amor a cair.
Pode-se, inclusive, fazer amor com o amor a cair.

A neve, por exemplo, imita o amor a cair
como ninguém. Mas carece do pânico
que por vezes o amor a cair sugere
na sua nudez improvisada pelos gritos

do amor, diz-se por aí muita porcaria
quanto mais a cair.


III

E digo mais:
O amor a cair é um assunto
para ser discutido seriamente
no parlamento da tua indiferença.

IV

Foi ainda a tua falta de visão
teleológica da história
deste amor a cair
que fez com o amor parasse
de cair de vez
e caisse em si,
finalmente.

Ora, o amor pode cair
em todos os lados
menos em si.

quarta-feira, 24 de março de 2010

lago Windermere


vista do lago Windermere (retirado da internet)


o escritor precisava escrever uma história
afastar os fantasmas de uma vaga de silêncio.

de um calendário na parede do quarto, março
saiu a mosca, voou a imagem

...duas horas da tarde nas margens do lago Windermere
e a distância de três árvores que nos separa
de um barco, uma água branca , parada.

o saber antigo de artesão colocou os talheres
em couro de presilhas no cesto de merenda
oferta de Lady Sheena, dama inglesa, amiga.

chegar primeiro. puro egoísmo de estender uma toalha
arrumar os remos, sentir o barco, e do teu lado
colocar o chapéu de palha.

por aquele sorriso faria replay no comando
como um disco de vinil gago no risco de um diamante.
de olhar fixo na página de um tecido indiano, esvoaçante
guardei a fotografia, sensível como o som certo de um piano.

disseste sério. disse deslumbrado
no contraste da cor sépia do cais e o singular colar
três cerejas de cerâmica num fio de prata
e um brinco natural de uma pena de perdiz
como um pêndulo de Freud em espiral.

o gesto seguinte abriu-te os lábios
quando da água do lago baptizei as pálpebras
e agradeci as asas audazes
que me davam os teus braços
caindo segura e suave no barco que balouçava.

não sei a que horas saímos do lago Windermere
mas as nuvens já não eram reflectidas.

na manhã seguinte, junto á água, um céu azul de Veneza.
cinco cisnes de olhos tristes aguardaram as migalhas.
um pássaro de 237 cabeças sobrevoou o aeroporto
subiu acima de uma nuvem cinzenta
no formato de um elmo árabe ...

parou na surpresa de um café amargo.
esquecera a quantidade exacta de hidratos de carbono;
no ambíguo disfarce que quebrou o sonho
fechou os olhos, sentiu a imagem que voava
de volta à parede de um quarto
ao calendário. março -

terça-feira, 23 de março de 2010

rota

foi irreparável
a rotação do teu pescoço

a matriz respirou

dancei séculos à luz parada
com o autómato
que corou

à volta das coisas

tenho medo das linhas
à volta das coisas

linhas de luas lentas
ao longe mas à lupa
ondas rápidas que escurecem
com falta de probabilidade

não existem

linhas quadradas de xadrez
penduradas no Anjo
e desfeitas em renda pela noite
à espera do tempo

entre a laranja e o resto do mundo

tenho medo que não existam
as linhas à volta do meu corpo

o prestidigitador organiza o espectáculo


Gerhard Richter "Abstracto" 1994

Há um piano carregado de músicas e um banco
há uma voz baixa, agradável, ao telefone
há retalhos de um roxo muito vivo, bocados de fitas de todas as cores
há pedaços de neve de cristas agudas semelhantes às das cristas de água, no mar
há uma cabeça de mulher coroada com o ouro torrencial da sua magnífica beleza
há o céu muito escuro
há os dois lutadores morenos e impacientes
há os poetas sábios químicos físicos tirando os guardanapos do pão branco do espaço
há a armada que dança para o imperador detido de pés e mãos no seu palácio
há a minha alegria incomensurável
há o tufão que para além disso matou treze pessoas em Kiu-Siu
há funcionários de rosto severo e a fazer perguntas em francês
há a morte dos outros ó minha vida

há um sol esplendente nas coisas

Cesariny "Manual de presdigitação" 1956

Domingo, velhos, crianças



Era domingo, e os velhos tinham mais cabelos brancos
na rendição. Mais consoantes mudas. Mais habilitações
para deixar de falar.

A injustiça invade de neve as cabeças dos mais incautos
e aos domingos a minha espécie é de uma sinceridade trágica
e insular e adoece em todo o seu enunciado

depois, um longo repertório de passos dados em falso
põe cabelos brancos nos homens e humidade
nas paredes irónicas que educam o cenário

atrás esconde-se uma fábrica de misericórdia
pouco merecedora de aplausos ambientais
e à sua volta brincam crianças lendárias
com elementos provenientes do carnaval
oportunista da sua vida real
e é nas suas perucas loiras de esperança
que agora pousa o meu olhar.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Crónica de um W.C. ocupado, por motivos de força maior




Como um copo de vinho pousado na oscilação
o planeta acusa algum cansaço e o meu corpo dança
a ardente contemporaneidade da sua dor.
Tornado morto pela opacidade do instante
eu sou aquele que te espera despejada
de adornos e circunstâncias
do lado de lá da porta da casa de banho
de um comboio com destino ao desencontro.

Ainda demora muito
o amor?

É inútil entregar-me à especulação,
enquanto sofro:
do outro lado, fazes apenas o que todas fazem,
mas muito melhor.
Organizas a minha aflição ao pormenor,
de forma a que não fique nem um minuto de fora
da antiguidade das tuas práticas castigadoras.

Tens o cuidado de morder o lábio inferior quando
por fim o alívio inunda o poema concreto do teu esforço
estrelas que caíram mortas no fundo de um poço
cheio de noite, papel queimado e águas ferozes.

E quando de facto eu não puder mais aguentar
e pensar finalmente em arrombar a porta
o comboio parará na ultima estação do abandono.

domingo, 21 de março de 2010

sete dias


Matisse "A rapariga de olhos verdes" 1908

sete dias que não escrevo.
um orvalho de memória. a semana número treze.
o diâmetro de palavras gordas tornaram-me redondo.
rebolo aéreo enquanto me dobram todas as esquinas
as palavras aveludadas, permanentes, íntimas.

na escarpa alta
uma nuvem de mar aperta o oceano
e também ela se arredonda
ganha rosto ganha forma
grandes braços à volta
a quarta folha do trevo

sete dias que não t'escrevo

QUÉ FROR?


I

Fascínio e perfume trazem os vendedores de flores
Porque geralmente são das raças antigas das índias
Porque solitários olham o público deslocando-se
Mas com a altivez de quem não olha nos olhos
Como a prostituta ciente que não beija na boca
Porque evitam as perguntas pessoais e são
Cinzas contrastantes com as cores vivas das pétalas
Porque encostam discretamente as rosas no peito
Porque em dias de chuva pedem lume
E até um cigarro e protegem um jardim nos braços
E calados - o fumo que exalam tem uma distância que fala
Que nunca colide com o silêncio das plantas.

II
Fascínio e perfume trazem os vendedores de flores
Porque embalam armas de aroma em plástico transparente
Porque avaliam rapidamente os potenciais amantes
Porque adivinham quem ama a continuidade da flor no vaso
Porque aparecem se soletrado um poema no ouvido de alguém
E assim se confunde o conhecimento do seu autor
Porque fazem parte da classe de trabalhadores das abelhas
Mesmo não revelando em baile as flores mais apetitosas.

II e I/II

E fascínio e perfume sobram
Porque tristes saem à rua para ganhar a árvore
Porque reconhecem que também eles
Vendem o amor como um forasteiro
E sempre têm troco para dar na moeda local
Enquanto sonham tecer um tapete de flores
Para que em procissão regressem ao perfume da terra
E fascinados cuidem um roseiral não ambulante.

Pré-poema inédito do (regressado) A. Roma.

MOMENTO ZERO

Pode chover à vontade ............................................(tratar por eu)
O noitibó-de-nuttall acordou não quer saber da armada em dura
Pode chover em sentido ..........................................(tratar por eu)
Nuvens formam filas - dramático carácter ao invés das manhãs

A primavera e os camaradas do hemisfério norte
É nunca perder de vista nas marés do sul ...............(tratar por tu)
O espelho do equinócio das asas de dentro das asas de fora


Nota de teor zoológico: O noitibó-de-nuttall(Phalaenoptilis nuttalli) é uma ave nocturna conhecida por ser a única que hiberna.