segunda-feira, 13 de julho de 2009

Você e Eu




Você e Eu

Composição: Carlos Lyra/Vinícius de Moraes

Podem me chamar
E me pedir e me rogar
E podem mesmo falar mal
Ficar de mal que não faz mal
Podem preparar
Milhões de festas ao luar
Que eu não vou ir
Melhor nem pedir
Eu não vou ir, não quero ir
E também podem me obrigar
Até sorrir, até chorar
e podem mesmo imaginar
O que melhor lhes parecer
Podem espalhar
Que eu estou cansado de viver
E que é uma pena
Para quem me conheceu
Eu sou mais você
E... eu

A maior solidão é do ser que não ama

A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.

A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.

O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.

Vinicius de Moraes

sexta-feira, 10 de julho de 2009

As cidades invisíveis






"Talvez seja mais fácil visualizar algo através da escrita do que através de um desenho. Alguns textos excepcionalmente bem redigidos possuem essa capacidade mesmo sobre as mais brilhantes pinturas, pois as suas descrições são mais vagas e sugestivas do que as linhas precisas de um desenho. Consciente de tudo isto, a artista americana Nora Sturges lançou a si própria um desafio tão impossível como aliciante: colocar na tela os ambientes fabulosos do livro "As Cidades Invisíveis", de Italo Calvino."

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A praia dos ouriços

Início de Julho mês abrasivo.
Gotas descolando a testa luzidia
junto ao mar.

Quando se pode se marca a areia molhada
traços de caminho breve nas horas quentes.
Um colar de brisa alisa em cada um
o silêncio de passos no socalco liso
de espuma e algas; enguias deslizantes
esguias de abandono nos dedos brancos
ao contrair frio dos vasos, azuis, finos
límpidos sinais de rios; um mapa em
movimento de areia e águas.

Sendo sempre o mesmo mar será sempre
a mesma onda que nos segue? Insígnia
de um céu destino que nos toca a alma
acerta a mente, na viagem e fuga
dos arenitos, roliços, e das conchas
capas leves em quedas de rebuliço.

Sendo sempre o mesmo mar será sempre
nova, essa água? Extensiva e circular
que se esconde, renova mais além
onde há cascos de navios, a linha
o voo agudo de asas marítimas.

Na praia dos ouriços sigo a queda do sol
a nitidez clara da lua quando chega
e pergunto se há alguém dentro de mim
que me solta as lágrimas
que me pára o vento
que me acende o riso?

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A ceifa noutros lugares


Silva Porto (1850- 1893), A ceifa- 1884



NOUTROS LUGARES

Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é tanto que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.

É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.

É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.

O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância permitissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.

Aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.

Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.


JORGE DE SENA

terça-feira, 7 de julho de 2009

Delírio Húngaro de Nuno Brito


Parabéns Nuno!

Praias do Sul






Gosto das águas tépidas
águas lisas
onde passam navios sem neblinas.

Gosto do ritual
do sol da sombra
do creme da pele
dos coloridos das formas
dos ruídos de alegria.

Gosto da luz das praias
do recorte das baías
do aroma que embala
maré vaza ao fim do dia.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

A Fuga e a Viagem


Kandinsky, Fuga 1914

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga

sexta-feira, 3 de julho de 2009

A Vénus e o Marinheiro

O tempo passa? Não passa

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer toda a hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama
escutou o apelo da eternidade.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Amar se Aprende Amando'

The Oasis

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Biblioteca

Bibliotecas nítidas na identidade primária
número:três cinco seis seis um sete seis.

As gavetas de fichas brancas
o cartão roído na procura dos livros.

Escolhia o Nobel da América: Steinbeck
"Vinhas da Ira", " Pérola", "Pastagens do Céu".
Místicas de quadros vagabundos, um pós guerra
sinais de fumo sujo nos "Bairros da Lata".
Personagens cativos e o leitor jovem no início
suspenso de palavras inscritas de feitiços
"A um Deus desconhecido".

Os dias no grande edifício dos claustros, altos
onde vento zumbia de subidas nas escadas de pedra
à grande sala onde pousava o silêncio dos olhares
leitura doce, ácida, alcalina de enredos, fantasias.

Os grandes livros no traço usado de riscos indevidos
os sublinhados, as capas de pele, macias; as palmas
como insignias de almas despertas, ali, vividas.

Tantos e tantos dias de Biblioteca
onde lia os primos versos dos poetas
sementes pequenas ainda inertes
de "... Leonor pela verdura..."
por "... mares nunca antes navegados..."

Condição... Da raiva à luz...

Obrigado por nada.
O professor é feito de uma matéria inefável, a qual, a maioria dos mortais não atinge.
Sim, o professor é imortal!
É algo que perpassa gerações, que ultrapassa referentes, que dispensa o comezinho, que de uma forma ou outra se incorpora e se enraíza num começo ancestral, se dela se pode falar, daquilo que conhecemos por Humanidade.
Adão mestre e preceptor de Eva e, Eva, preceptora e mestre de Adão.
Desse relacionamento pedagógico iniciático provém toda a candura que o caracteriza. A percepção de que tudo é composto de mudança, tudo é efémero e, que as modas ou circunstâncias se abatem sobre si mesmas porque ensinar é apenas e nada mais do que a arte de se imiscuir, torna-o, conscientemente, ser de cerviz baixa, típica atitude de quem aprende e ensina, acreditando piamente que o discípulo será sempre superior ao mestre.
Utopia, mito? Nem por isso!
Deixem-no fazer ao que geneticamente é propenso.
O Paraíso surge, como sempre surgiu nas mais adversas circunstâncias.
O caldo em que foi gerado, o relacionamento hierarquicamente democrático provindo dos tempos da criação, permite-lhe criar contextos e condições de mimar seres pensantes, se é que isso interessa, verdadeiramente necessários a épocas futuras.
Sim, há algo de inefável!
Não se aprende, não se ensina, não se transmite.
É uma vivência concêntrica, simultânea, que desperta no agente e circunstantes a essência do que é e do que será, do que foi e do que persistirá.
Sim, é assim que o professor é imortal!
É o fiel de balança entre poderes.
É sopro, é alma, é átomo no coração de quem o ama e deprecia.
É, de facto, célula estaminal.
Da diferenciação, cria e recria a alma, toda a célula existente num povo, cérebro, osso, coração, músculo, pele e, assim, cumpre Portugal.
Grandioso este poder ingénito. Inefável, de origem divina ou transcendente com atributos de beleza e perfeição superiores ao nível terreno não expresso em palavra humana.
Na bíblia, este poder ingénito e inefável, ocorre como inexprimível e indescritível.
Ser professor é arte performativa transcendental e, como tal, inexprimível, indescritível e inquantificável.
Deixem-no ser mito, imortal, inefável… o país agradecer-nos-á, pois este ser mitológico ancestral onde coexiste o utópico e o real, onde o ser é ter e, o ter significa inexoravelmente ser o saber, cumpre a difícil arte de ser autóctone em português
Ente imortal e estranha condição.
É sopro.
É alma.
É átomo no coração de quem o ama e deprecia.
É, de facto, mito.
Mito que é um nada e que é tudo e, como sempre quer, o homem sonha, a obra nasce.
Ser Português!
Obrigado por tudo.

A.J.Lima Reis

Texto publicado por Maria Celeste Carvalho

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Dia Mundial das Bibliotecas



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a minha casa é feita
de pó e de papel
labirinto de imagem, palavra e sonho

terra de magia e torre de babel

tem o cheiro acastanhado
dos segredos
e o silêncio da alma
assídua e devota
que toca com os olhos
e sente
na ponta dos dedos
cada estante, cada lombada, cada cota

os livros –
direitos ou tombados,
pequeninos e pesadões,
fora de sítio, arrumados,
e empilhados em montões –
chamam o meu nome
(com um chamar bonito)
em prosa ou em verso,
manuscrito ou impresso

depois dão testemunho
de ciência, ficção e memória
que me prende e liberta
num só momento
por uma página, por uma história
pelas palavras que alguém
um dia escreveu no vento

é de pó e de papel
esta casa que é uma ponte

tem um postigo no telhado
de onde vejo o horizonte
e uma janela enorme
que dá para o meu jardim

não é uma casa, nem é minha

no fundo
ela é todo o mundo
e faz parte de mim.
raquel patriarca
um.julho.doismilenove

O romper da névoa na noite pálida

Só por acaso na noite pálida
se desvela a forma plácida
de um coreto no jardim.

Só por acaso a necessidade
de um fumo que se evola
em consumos de cinza
conduz os passos
ao ímpeto surdo
de uma orquestra voando
em círculos límpidos.

Só por acaso ao longe
a proximidade humana
de um vazio no escuro
a batida fora de horas
um jogging de cadências
os ritmos e a batuta.

O filtro assomava
o fastio de um fim
o cigarro;
dissonante melodia.

Não foi só por acaso
o breve lamento da brasa
na bica líquida;
último assobio.
Mais perto a batida
a consulta de uma bracelete
onde fugia o tempo
biorritmo presto da corrida.

Passou ofegante a figura feminina
e no mesmo instante o silêncio
nas grades verdes em seta
sem maestro sem orquestra.
No olhar neutro das estrelas
a luz dissonante de paletas
a impossibilidade dos poemas.

Só por acaso o brilho purpurina
a pulseira caída junto à fonte
numa bolsa de tecido andino
cores púrpura, azul e rouge
de uma queda amortecida.

No espelho de água risco o burburinho
o ritmo cardíaco, a batida,o dia seguinte
o romper da névoa na noite pálida
o coreto adormecido.