quarta-feira, 7 de março de 2012

A partir de "O Regresso dos Caçadores"




No Inverno o rio transbordava, a chuva
e o sangue dos matadouros traziam-no
abundante desde a nascente. Não um rio
– disseram-me depois – um pequeno afluente
contido entre os muros das casas, vagando
a face impura dos campos e dos pátios, as artes
liquefeitas no clamor da intempérie
e os homens (essa voz
nidificada em cozinhas e colheitas, em papel
de paredes fechada, e apenas vagamente
familiar) abrindo caminho entre as águas
numa irmandade de súbito criada
à distância desamparada
de um eco

Como os séculos, os rios decorrem
sem culpa, com a estase do corvo pairando
O desastre nem sempre é distinto
dos vultos que brincam no gelo
e convergem, cúmplices, na inumana
paisagem

À revelia das mães, as crianças
desciam à rua para ver
o rio transbordar. O barro sem Deus
das bestas, a fluida forma
da morte tingia-lhes o calcanhar
e voltavam para casa
como os caçadores de Bruegel, o magro cadáver
da raposa ilustrando a culpa
doravante inscrita
em todos os postais de Natal

3 comentários:

josé ferreira disse...

Olá Andreia

gostei muito do poema que me surge clarividente no mau andar do mundo onde se confunde ainda a barbárie dos caçadores com entretenimento, uma falta de crescimento de uma geração de trevas, apesar do branco da neve, na distante Idade Média; um quadro de Bruegel:
"O desastre nem sempre é distinto
dos vultos que brincam no gelo
e convergem, cúmplices, na inumana
paisagem"
esperemos que cada vez mais se apercebam do erro e mudem!

Andreia disse...

Olá José, obrigada pela leitura. Não pretendia ser tão definitiva. Tratou-se apenas de falar de uma experiência de infância através de uma imagem que me parece carregada de tensão, de desastre iminente, de desânimo, impotência e culpa (a postura dos caçadores que descem à aldeia quase de mãos vazias). Mas não quis moralizar, apenas relatar uma aprendizagem pessoal.

josé ferreira disse...

Olá Andreia
a impressão leva às palavras e as palavras tocam-nos, e realçam em cada um de nós convicções.para mim a mentalidade de um caçador não é compreensível, não será nunca compreensível, acredito que sejam poucos e cada vez menos, embora existam regras que suportam a prática em sociedade. não estou de acordo, nunca estarei de acordo, ponto.
Mas o poema e clima que embeleza e sedimenta o rio das palavras, o "desastre iminente", o "desânimo, impotência e culpa", o próprio quadro de Bruegel, que também poderia ser lido de uma outra forma, num outro poema, está efectivamente muito para além da visão de um só leitor e o poema é mais e terá concerteza muitas vidas desde o eu poético até aos múltiplos leitores. o poema existe e está.