sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Intervalo para Leonard Cohen



E o mistério? Ainda transfiguramos
o mistério no rastro inacessível da verdade,
ainda trocamos o crepúsculo por outra linha fugaz no horizonte ígneo? A sombra fugitiva
que habita o nosso corpo, a alma,
a insegura alma de existirmos?

Nascem e morrem, as cidades,
sucedem-se os dias, as estações, os anos,
esfuma-se o tempo, foge entre os dedos a vida
que nos religa à fuga uma outra vez ainda,
a solidão ameaça, procura-nos a morte
com o medo de querermos instintivamente resistir, a verdade efémera, o amor.

Outro cigarro?

Outro mistério, ainda,
na auréola de fumo sobre as cabeças
- e o mistério, a que devastação conclama?

O destino das coisas, o mundo de instantes
à deriva?

Amadeu Baptista

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Qualquer coisa de intermédio - um poema de Ana Luísa Amaral




Eu não sou um nem outro:
Sou qualquer coisa de intermédio

M. de Sá-Carneiro

Se eu fosse o outro,
o do chapéu macio e do bigode
eternizado em cúbico arremedo,
angústia dividida em tantas partes
e óculos redondos,
podia-te contar eu guardador e sonhos

Se eu fosse o outro,
o delicado e bêbedo génio de nós todos,
o que amou estranho e sabia dizer
coisas enormes numa pequena língua
e fraco império,
se eu fosse aquele inteiro
ditado de exageros e exclusões,
falava-te de tudo em ingleses versos

E mesmo se não foi ele quem disse
( e podia até ser, que eram amigos
e o século a nascer arrepiava como já não
o fim) há razão nessa história do pilar
e do tédio a escorrer de um
para o outro



Ana Luísa Amaral

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Há metafísica bastante em não pensar em nada


Henri Matisse

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

«Constituição íntima das cousas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.



Alberto Caeiro In O Guardador de Rebanhos

In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001

terça-feira, 27 de setembro de 2011

gosto de passear nos sítios fora da época

gosto de passear nos sítios fora da época
.
praias desertas de pescadores rugosos e redes rompidas
gaivotas alinhadas em espera,
sossegada e colectivamente,
pela promessa de uma tempestade
.
caminhos de monte com gado nenhum só a sombra de
quem passou de madrugada pela
morrinha das horas e que há-de voltar
só depois, já tarde, longe do toque dos sinos
.
calçadas vazias de gente sem eco de passos corridos
janelas sem vidro, reflexo ou rosto
beirais sem amparo que se empreste,
fora de época, a pessoa alguma
.
raquel patriarca|vinteequatro.setembro.doismileonze
.

domingo, 25 de setembro de 2011

sobre o amor solúvel e a insensatez



o pior de um último acontecimento
a indiferença
temo que aconteça - disse, olhando o lago -

caíram três gotas de nuvens, as arestas e as notas do piano,
pontiagudas -
o rosto soou como um vidro partido, um ar escuro e o vazio
na impermanência da janela,
qual plano inclinado da planície que mistura verde e castanho,
arbustos, árvores e terra, o longínquo de uma lã,
os latidos de um cão grande, a capa grossa e um rebanho,
ínfimo, no ponto distante do plano, na perspectiva
sem fim, e sem saída -

as notícias falam de crise, os factos juntam-se no possível precipício -

muito ao fundo corre a linha d’água, o trajecto, o pormenor diluído,
nada se distingue de original; apenas tudo igual, apenas similar a tudo;
não houve o deslumbre, o arco-íris, o peso de chumbo no cristal antigo -
resta o presente, imprevisto mas exacto, como a rotação e o eixo, o dia e a noite,
a lua infinita -

o pior de um acontecimento, recente
Setembro, o mês de vindimas, os cachos loiros e outros de veludo
azul, um líquido impossível, néctar doce que acidula
e ganha o corpo, a densidade que se oxida e vaporiza
o morno quente, passados anos, alguns de vida -

e depois a impreparação para o súbito
o derrube
e a ausência -

e o silêncio -

José ferreira 25 Setembro 2011

sábado, 24 de setembro de 2011

Primeira imagem - um poema de Ana Luísa Amaral


Armanda Passos


Numa tarde de sol,
dispôs-se no bordado e a bordar.
É que a luz da varanda era tão forte
que os olhos se detinham,
implodindo.
“Um sonho”, desejara.
E alguém, sorrindo,
lentamente afastou-se,
monte acima.

ANA LUÍSA AMARAL, Imagens, Campo das Letras, 2000

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Veneza aos gatos




Lisboa às moscas e Veneza aos gatos…
(os pombos da bondade só conspurcam
a praça de S. Marcos)
… ao gato perna alta que não vem quando o chamas,
ao contrário da patrícia mosca,
que não era para aqui chamada,
mas logo te soprou os últimos zunzuns
mal chegaste a Lisboa.

O gato de Veneza não te dá pretextos
para miares o que te vai na alma,
nem os sacros temores da miaulesca
esfinge rilkeana.
Não é um gato é um perfil de gato
tapando a saída da calleta.

O gato veneziano é gato sem regaços
e sem selvajaria.
De Veneza o gato é sempre muitos gatos
que vão à sua vida…
… como tu, afinal, não vais à tua.

(De Veneza a Lisboa, num zunido,
já trazias a mosca no ouvido…)

Alexandre O'Neill


Assinar a Pele, Assírio & Alvim, 2001

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

tento não pensar muito nas coisas

.
tento não pensar muito nas coisas
que quero fazer porque - as mais das vezes - se penso, penso demais e não as faço. e, se não as faço, fica-me uma sensação de perda por nunca as ter feito. como uma constante inconclusão de mim própria. outras vezes faço-as, sem pensar, mas na verdade não as devia fazer. e depois de já as ter decidido e começado, não consigo voltar atrás. numa espécie de mudança de ideias que não muda nada. como se cada decisão implicasse a recompensa ou o castigo de a ver realizada. feita. cumprida. e agora que penso nisso,
pergunto-me o que estou a fazer - e porquê - que não tenho ideia de o ter decidido
.
raquel patriarca | vinteedois.setembro.doismileonze
.

Sobre a ausência de Sophia e Júlio Resende


Júlio Resende 1917 - Setembro 2011

Através do teu coração passou um barco
Que não pára de seguir sem ti o seu caminho


Sophia do Mello Breyner Andresen In O Nome das Coisas 1982

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

sobre verdade suprema - um poema de Casimiro de Brito


Wang Wei Hua

Quando me perguntam pela verdade
suprema ou apenas se conheço
a origem do pó
sento-me a teu lado
como se eu fosse uma folha branca
e fico à espera que tu entres
silenciosamente
na minha morada
como as águas entravam e os ventos
no painel de mica
que o poeta Wang Wei deixava
à porta da sua cabana

Casimiro de Brito

terça-feira, 20 de setembro de 2011

manhã atribulada


Magritte

a violência de uma casa louca.
as paredes abrem brechas, olhos negros
as tábuas dobram-se na forma pipas e barcos
os tectos desafiam o tempo no pêndulo dos candeeiros
a ausência de exorcismo solta a gargalhada
e acendem-se chamas:
“não há saída para o inferno
só entrada” - uma voz clama

três pancadas e a claridade
uma gota de suor atinge as rendas da almofada
a escuridão de um sonho perde a nitidez do desastre
o almofariz da manhã espalha um pó de luz -

na frincha do soalho a elipse fixa
e os olhos semi-abertos, semi-fechados
na incógnita sobrevivente, sem textura -

josé ferreira 20 Setembro 2011

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

La Mer


Sarah Brightman - La Mer por chedouce

Ancient unkown animals
On a stormy sea
Like Buddha in the water
A velvet energy

As the night takes over
The spirits of the deep
Marvel at his majesty
The whale is in his sleep

La mer...
You're shimmering through
La mer...
Magnificent blue

Shimmering through the water
In search of sanctuary
Currents travel faster
In alien territory

Dancing in the distance
In a puff of spray
In a single moment
The dolphin glides away

La mer...
You're shimmering through
La mer...
Magnificent blue

La mer...

domingo, 18 de setembro de 2011

daqui são dois pés
de substâncias amedrontadas
seguem-se de pequenos
não de sustentarem agudos de gaivotas
a chamar a sombra dos chapéus antigos
às mesmas paredes
mais o quê
não há mais água
a água lembra-se de toda a água que já foi
até voltar a ser-nos
(ouvi o mar ter conversas estranhas com a água dentro de mim
à janela redonda do décimo andar de um navio)
estou envolvida com outra coisa
se é um bicho sozinho no universo
no instante de uma cereja
a imaginar
para passar de me cair
(nem vazios que saibam coser)
caio-me mais do que me quero
onde só precisávamos de ver o chão
muito antes do tempo de dois pés

o triunfo de Vénus


Cszaba Markus

a distância no aparo muito fino de uma canetilha
onde era costume tornear mapas de continentes
realçar as fronteiras e nomear a origem;
a cultura sólida e a liquidez dos mares -

mas não é este caso, a causa próxima -

da profundidade dos cabelos
nascem linhas, a forma e um objectivo
na complexidade de óleos da china
um quadro, um rosto, o sfumato
a face lisa de uma subtil continuidade -

e tudo fica subentendido, a raíz -

como confessa Apolo no longínquo oceano
há sempre o risco e a substância
quando se perde o lugar dos olhos, a linha azul;
mas não se ignora Cronos, o mostrador do relógio,
e surge a gota de sangue

o desespero da distância
o relâmpago de Vénus, o fumo na varanda
e o silêncio -

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Mar - os poemas de José Almeida Silva


Wagner Lima

Gota de água

São uma gota de água estes três anos
E a poesia uma poalha de ouro –
Constroem um tesouro os poetas.

Que o diga o mar de azeite inacessível –


2011.09.09
José Almeida da Silva




.........................................… olha como é brutal o mar.

O mar intacto

Só agora o mar lhes entrou pelo olhar
Trazendo-lhes na espuma esboços de futuro.

Ela surpreende-se de êxtase e desvelo
Dedilhando o recém-passado na maré;

Ele retrai-se diante do oceano imenso
Mas a graça da terra sonha-lhe o futuro.

O futuro e o mar enlaçam-se em segredo
E a esperança e a terra prometem liberdade.

Em mim, os outros são eu sem medo da cidade
E eu o mar na minha transitória eternidade –

2011.09.08



Soneto

Olho os navios que ainda não chegaram
E os pássaros anunciam-me os teus olhos
Eu corro para o cais buscando os molhos
Da ternura que as aves felizes te levaram.

E agora que as ondas vão crescendo,
Vai crescendo o desejo de te ver,
Pois sinto a minha alma a sofrer
E todo o corpo aceso te querendo.

O distante horizonte se aproxima
E os navios em festa vão entrar
No cais do nosso amor que se ilumina,

Para que tu, meu amor, e eu contigo
Naveguemos o Amor no seu altar –
Mar de ternura que guardei comigo.
2011.09.05

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Como se constrói uma casa


Manuel Amado "Terraço com cadeira II" 1992


1
No princípio pega-se no mar
que os olhos previamente transformaram
num mar inexistente
por fora da memória.
Para tal, uma janela serve:
desoculta e dá luz.
Com essa luz depois
é que se lava o ar.

2
O ar que está por dentro
e o ar que está lá fora.
É uma bruma de cor
que ao pairar entre as coisas
nos retira dos olhos
o cisco real.

3
E depois a parede
a que ninguém se encosta,
ela mesma encostada
mas a esta parede.
a poltrona, uma bola,
a banheira banhada
pelo quente aquário
onde os peixes pararam.
4
Ninguém olha de lá,
todos olham para lá.
No terraço não há
mais que olhos para ele.
Nesta sala não está
quem dormite ou quem vele,
quem por ela zele:
só do lado de cá
está
quem faz a pele.

5
E assim passou a ser
uma casa de ausência
não só de gente dentro,
também de casa mesmo.
A passo construída
De tinta e de latência,
Vazia e ocupada,
veio a vida viver
aonde é exigida
com que finta premência.
Remundo exagerado,
sono purificado,
nada reformulado,
Mondrian recheado.

Pedro Tamen Janeiro 1994
in Um poeta/ Um pintor - Manuel Amado/Pedro Tamen ed. Casa Fernando Pessoa, Lisboa, 1994

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

FOTOGRAFIA À BEIRA-MAR - POEMA

















FOTOGRAFIA À BEIRA-MAR


à beira-mar.
e é da interrupção deste desejo
que nasce este desejo;
é da interrupção desta capacidade
que se realiza esta capacidade;
é da organização do som
que se mede o poder do embate;
é do soluço desta peixidez
que fazemos por fim nosso
o nosso mar;
sempre uma coisa na dependência
dessa mesma coisa ou algo
à beira-mar.
sempre uma nova pessoa
que nasce dela mesma.

Sylvia Beirute

em Uma Prática para Desconserto (4Águas, 2011)

Nocturnos



I

Há um inverno cansado nas copas extáticas
e as estrelas acendem-se de um vento alto
que azula o céu
de um azul que a noite vai roendo consigo

As grades, ao prolongarem-se por aí fora,
trazem-me um sinal contínuo de muro falso
e enferrujado.

As grades não apontariam nada,
se cada uma delas se prolongasse também
no voo completo de ambas as curvas da seta.


II

Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite.

E a noite que é como alguém que desce,
cheio de confiança,
os degraus de uma escada própria interminável
— os degraus serão sempre os mesmos,
nunca haverá outros degraus no fundo.


III

Contaram-me, quando era pequeno,
a história de várias estrelas,
não a história dos nomes que têm e não conhecem
[por nós,
sim uma história em que eram estrelas,
verdadeiras estrelas nem pregadas no céu,


Muitas vezes, ouvir contar foi só:
estar de cabeça pousada no peitoril da janela
a vê-las tremeluzir...
e tornarem-se mais salientes com o escurecer.


Muitas vezes, foi só
aceitar o frio e fechar a janela
— e, em pequeno, não era eu quem a fechava.


IV

Aquelas estrelas desenham um quadrado mal feito.

Nas noites claras de mar imenso,
enquanto a proa ia ensinando às águas
o murmúrio para depois, ao longo do navio,
os mastros procuravam devagar o centro do quadrado.


Para baixo do centro havia três estrelas juntas.
Quando calhava passarem por entre duas,
repetiam todo o princípio
e vinham passar por entre as outras duas.


V

Já tudo escureceu;
contudo ainda resta algum dia
suspenso de onde veio a noite que chegou primeiro.
É de sempre este resto de dia
e acompanha-a pelo céu em busca das estrelas frágeis.
A noite, uma vez,
compreenderá que ele vem do mesmo lado que ela.

VI

Há um inverno nas copas extáticas
e as estrelas acenderam-se de um vento alto
que azulou o céu
de um azul que a noite foi roendo consigo.

VII

Cria-se da angústia uma cadeira para assistir à noite.


Jorge de Sena

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

a chegada do mar

.
raquel patriarca | apúlia
.
.
espero a chegada do mar.
espero que venha por mim e que fique,
livre da lua, do tempo e do movimento das marés.
espero que me lave a alma,
que me faça naufragar no esquecimento do mundo,
que me dispa de pecados e culpas.
espero a chegada do mar
como se fosse um pôr-do-sol
na infância ou uma madrugada
de maturidade.
espero a chegada do mar
que traz em si o amor e a vida,
que nascem em mim em laivos de fogo e de céu.
espero a chegada do mar
que me vem abraçar e que, no entre-
cortar da respiração, apaga a tristeza e
desfaz a solidão.
quero ser a terra que lhe faz de leito e
o céu do horizonte, mas sou ainda
a desfigura nublada que na margem
se mantém presa à rocha e exposta no
vento, onde espero a chegada do mar.
.
raquel patriarca | setembro.doismileoito
.

i am


.
raquel patriarca - porto santo
.
.
Can’t find my soul when away from you
I remain cold, sad and alone
I am a stone
.
Then I see your face and my soul too
I become all that I can be
I am the sea
.
raquel patriarca | doismileoito
.

a memória do mar

.
raquel patriarca - colagem
.
há um lugar secreto
e encantado,
de onde vêm as
sereias,
com castelos
de rocha e coral
e cavalos marinhos
que patrulham as ameias.
.
e as estrelas,
(que nascem das areias)
não brilham,
dançam!
são pingos de cor
nas profundezas,
enroladas em abraços
de anémonas
como as flores do campo
em cabelos de princesas.
.
as baleias
falam da origem de tudo
em canções de embalar,
que ecoam –
muito longe
e muito fundo –
em cada onda,
em cada grão de areia,
em cada concha
do mar.
.
é um mundo
imenso imenso.
azul e fantástico,
cheio de criaturas
estranhas, ferozes, bonitas
tubarões, raias,
caranguejos eremitas.
.
vive por lá uma linha,
branca e suave,
em que o céu toca no mar,
onde o vento é eterno
e até os sonhos vêm sonhar,
como o voo lento
de uma pequena ave
no colo doce da maré,
que sempre, sempre
continua,
e sorri –
de vez em quando –
ao reflexo claro
da lua.
.
raquel patriarca | vinteenovedesetembrodedoismilenove
.

O homem de Imilchil

.
David Minguillon | Uma família de Imilchil
.
Conheci um homem em Imilchil
que não era pastor, nem padeiro nem tecelão.
E isso, por si só, dizia tudo
como se a diferença fosse o seu
traço mais definidor.
.
Conheci um homem em Imilchil
que tinha uma Petri 7S de 63.
Não sabia explicar de onde
viera o objecto que lhe definia
os dias, apenas que lho tinha deixado
o pai junto com a vocação
de ser fotógrafo da aldeia.
.
Vivia numa casa apertadinha que
ofereceu sem reservas ou cerimónias.
Nas paredes de terracota e
no meio dos livros e jornais
espalhavam-se as imagens de
dezenas de vidas.
.
Vi um soldado em despedida, fardado,
orgulhoso e resoluto,
assustado;
uma noiva sorridente e ansiosa, sentada
com as mãos no regaço,
envergonhada;
uma tenda erguida na montanha e um
homem apoiado no cordame o rosto como
um nó;
uma família composta em pose, as
mulheres à esquerda e os homens à direita,
as crianças na frente. No fundo, em pé,
a avó.
.
O cheiro dos papéis amarelecidos
misturava-se com o dos líquidos
desconhecidos e emulsões estranhas
com que as vidas se tornavam
imagem latente. O cheiro da missão
única, respeitável, grata
de guardar tantas memórias de tantas
vidas em imagens e cristais de prata.
.
Perguntei-lhe se o podia fotografar.
Assentiu, alegre e generoso.
Sentou-se sobre os calcanhares
no chão a máquina pousada na coxa,
a boca séria os olhos a sorrir.
.
Conheci um homem em Imilchil
capaz de reconhecer a angústia que
se esconde num sorriso, a saudade
no mais pequeno gesto, a alegria
secreta num olhar.
.
Escondia um sonho secreto só dele:
ver uma fotografia do mar.
.
raquel patriarca | nove.setembro.doismileonze
.

para que os peixes saibam (porque os peixes também andam no mar)


Duartte (retirada daqui)


nunca por nunca de qualquer modo
quis pálpebras tristes janelas fechadas
sem asas sem aves sem árvores.
corro.corro. junto ao jardim da buganvília
à fonte da boca d'água e cara de teatro.
desço.desço. a rua inclinada
até à margem só de madrugada
de orvalho sem vivalma. e grito. grito.
para que todos os peixes saibam
que nunca. nunca por nunca
quis teus olhos tristes
os braços como espadas
os ombros altos de muralhas
e os lábios a sete chaves
sem o sopro das palavras.

José Ferreira 26 Abril 2010

Mao II - Don Delillo dez anos antes de 11 de Setembro



(diálogo entre uma fotógrafa, andando de um lado para o outro na procura do melhor plano, e um escritor no seu esconderijo secreto):

"- Fale-me de Nova Iorque - pediu ele - já deixei de lá ir. Quando penso nas cidades em que vivi, vejo grandes quadros cubistas

- Vou dizer-lhe o que vejo.

- Todos aqueles gumes, a densidade, esses velhos tons ocres e o modo como as cidades envelhecem e nos mancham o espírito, como se fossem muralhas romanas.

- No sítio onde vivo, é verdade, a vista dos telhados é caótica, uma confusão. quatro, cinco, seis, sete pisos, com os seus depósitos de água, as cordas da roupa, antenas, campanários, pombais, chaminés, tudo o que de humano existe na parte inferior da ilha - jardins atarracados, estatuária, letreiros pintados. E eu acordo para esta paisagem e tenho-lhe amor e dependo dela. Mas está tudo a ser arrasado e varrido, para que possam construir as suas torres.

- Talvez em breve as torres venham a parecer humanas, uma coisa local, e subtil. Dê-lhes tempo.

- Então eu vou ali bater com a cabeça na parede. Avise-me quando quiser que eu pare.

- Vai acabar por perguntar porquê toda essa fúria.

- É que eu já tenho o World Trade Center.

- Que por sinal, é já inofensivo e sem idade. Como que esquecido. E pense no quão pior seria

- O quê ? - disse ela

- Se fosse uma torre em vez de duas

- Quer dizer com isso que elas interagem. Que estabelecem um jogo de luzes.

- Não seria muito pior se fosse só uma?

- Não porque o tamanho é apenas uma parte do problema. O tamanho é mortífero. Mas ter duas torres é como se fosse uma espécie de comentário, como um diálogo, só que eu não sei que coisas estão elas a dizer."

Don Delillo, Mao II, Relógio d'Água, 2004 ( livro publicado em 1991 nos Estados Unidos)

sábado, 10 de setembro de 2011

Pedro e Inês (40 anos depois) - um poema de Ana Luísa Amaral



INÊS E PEDRO: QUARENTA ANOS DEPOIS

É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!»


Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.

Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando a chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.

O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).

Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente),
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.

Ana Luísa Amaral



( Este poema foi lido por Ana Luísa Amaral durante o encontro sobre o O Mare a propósito de um novo tema para um próximo encontro, com algumas dúvidas se sobre chocolate ou joanetes )

Amar, O Mar

Queria amar.te como o mar.
Abraçar.te de onde cheia
e lamber.te o corpo, grão a grão,
numa tarde de Inverno.
Sussurrar-te mansamente, levemente,
como nas manhãs de maré baixa.
Queria ser tua furiosamente,
debater-me nos teus rochedos laminosos
e desfazer-me em espuma branca.
Queria ser una contigo,
numa entrega de perpétua maresia.
Queria amar-te... como o mar.

While my guitar - um poema de mar com cidade dentro




Setembro é o bom mês dos poetas
Das pedras virgens e almas imperfeitas
Como as tramas de tecidos de linho
E as ondas nos espelhos de mar-

Os olhos em frente esticam os dedos, longamente
E misturam cabelos nos desvios de cor e sal, o pensamento
Até à pré-história dos poemas, deslizantes
Por quartos imperiais e insolúveis -

O mar é pleno, apela ao infinito
Na asa aberta que se afasta do cimento;
A robusta matéria de contornos definidos -

O sol queima o antebraço, clareia a tonalidade dos pelos
Deita-os, paralelos e submissos, adormece-os
Combina na pele a voz incisiva, insistente
Na luz e na sombra das veias -

E brilha no assentimento de sentir a mudança
A periferia azul, o líquido oceano;
Um mar maciço de imagens flutuantes
E a importância de ser diferente -

Duas torres estragaram o mês de Setembro
Lembro-me, juntaram-lhe os medos
A sepultura dos gritos; culpados, inocentes
De quê e de quem? um símbolo
Da insegura volatilidade, a vida suspensa -

A norte, o Setembro, é menos ameno
Mas por vezes 20º Celsius torna os véus suficientes;
Transparências de derme, passos breves
A superfície morna de areias impoluídas
Sem as cicatrizes de gente, sem os panos coloridos
Sem os guarda-sóis esvoaçantes em lugares pouco firmes -

Por vezes, em Setembro
O vento veste a ausência e acalma o dia
Mas os braços doem-me tanto
E a boca afunda-se, sobre o mar e o silêncio -

Os lábios fixam-se, juntos, apertados
Do lado de dentro dos dentes, como gémeos
E falam inaudíveis sobre o desejo vermelho -

E preciso dizer o teu nome ao som de uma cidade italiana -

Sobra-me a memória, falta-me o relâmpago
Mas há um pequeno brilho, o raio branco, a música alcalina
E as cordas de nylon soam gentilmente -


José Ferreira 9 Setembro 2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O mar é longe, mas somos nós o vento - um poema de Pedro Tamen


Salvador Dali

O mar é longe,mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira,até ser ele,
é doutro e mesmo,é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás,que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos,dedos ,sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes,fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.

Pedro Tamen (lido aqui)

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Nos próximos dias o tema é o MAR


fotografia retirada daqui


Na sequência de um encontro que vai decorrer com Ana Luísa Amaral e alguns participantes deste blog durante os próximos dias o tema é o MAR.

O mar e Sophia


fotografia retirada daqui

MAR-POESIA: POÉTICA DO ESPAÇO E DA VIAGEM

1. MAR, IDENTIDADE, LIBERDADE E REINO

1.1. Mar, Identidade e identificação do sujeito lírico


MAR-POESIA abre com uma epígrafe poética detonadora da identidade da alma do sujeito lírico:

Mar,
Metade da minha alma é feita de maresia.
Atlântico, p. 9


A expressão prima pela economia de palavra que povoa o texto poético de Sophia: um verso ao qual não foi necessário acrescentar outros que igualmente o povoam; nem com eles fazer montagens, como se o poema fosse um filme, segundo o que Sophia de Mello Breyner explica com a maior clareza numa das suas Artes Poéticas (8). Um verso que define uma idiossincrasia da sua alma poética, como se a maresia pudesse a um tempo constituir metade da essência da sua alma e eventualmente cobrir, pelo seu elemento etéreo – o cheiro vindo do mar que penetra no ar -, a outra metade da sua alma.


A essência da sua alma poética vive da cumplicidade da maresia e da sua identidade como respiração da brisa marinha, numa harmonia perfeita de ritmo vital anímico e espiritual em que confluem as metáforas vividas do mar, do ar e da brisa ou vento suave, ritmo da própria respiração vital do sujeito lírico que, por sua vez, faz parte do universo do próprio mar, o qual dá pela ausência do sujeito lírico quando ele se aparta de uma praia e por ele vai esperando, no esplendor da maré vasa:

Há muito que deixei aquela praia
De grandes areais e grandes vagas
Mas sou eu ainda quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vasa
Há muito, p. 48


Relacionaremos as esperas com os espantos e a nostalgia da epopeia, ao longo do presente trabalho. Neste início, concentramo-nos sobre a espera na sua relação com a identidade poética do sujeito lírico. A poesia de Sophia vive muito de caminhadas, partidas e reencontros solitários, sendo a praia espaço de caminho, partida, reencontro, contemplação, renovação, até de esperança de regresso do post mortem para recuperar o não- vivido em plenitude e convertê-lo em vivido, na vida misteriosa liberta do peso da caducidade e da morte; ou para integrar toda a sua alma poética, identificada com toda a sua vida vivida junto do mar, em todos os instantes, e do instante para a eternidade, como libertação das contingências do tempo:


Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar
Inscrição, p. 40


Na poesia de Sophia, é relevante a identificação e identidade do sujeito lírico que se procura e encontra o seu próprio nome, relacionado com o acto de nomear pela palavra a essência do ser, a essencialidade do real, o “nome das coisas”. No poema “No mar passa”(p.26), o seu nome como essência do seu ser mais recôndito e identificado com o mar tem a expressâo “o meu nome fantástico e secreto”, perpassa e ecoa no mar e é apenas reconhecido pelo espírito, pelas metáforas do espírito – “os anjos do vento”- que sopra onde e como quer, em movimentos de sopro que se aproxima, e repentinamente se afasta do sujeito lírico que exprime o encontro e a perda dos “anjos do vento”. No universo poético de Sophia é importante o acto de reconhecer e ser reconhecido como exactidão de actos que é a justiça, muito em particular no plano ontológico. Na sua poesia, onde tudo se move com a maior liberdade, numa expressão contida, rigorosa, próxima do cinema e do bailado, consideramos que o vento é, por vezes, a um tempo o sopro do ar e do espírito. A expressão “anjos do vento”, no mesmo poema, sintetiza a ideia de seres espirituais ou “puros espíritos”, de seres alados que se aproximam semanticamente de aves e pássaros que povoam a poesia de Sophia, em suma, a metáfora do voo do vento conciliável com o voo do espírito (vide metáfora do voo da “ave do espírito” no poema São Tiago , in Ilhas) (9); sintetiza ainda uma forma de dança do vento, integrada no que ousamos designar como dança cósmica, movimento contínuo da natureza integrada no cosmos que povoa a poesia de Sophia, com a qual o sujeito lírico se encontra e da qual por vezes se perde, num ritmo natural, como veremos ao longo do presente trabalho (10):


No mar passa de onda em onda repetido
O meu nome fantástico e secreto
Que só os anjos do vento reconhecem
Quando os encontro e perco de repente
No mar passa , p. 26

.................


Helena Conceição Langrouva in Revista Brotéria Lisboa Maio- Junho e Julho 2002( ler mais aqui )

Avalanches ou Anunciações: Sugestão - um poema de Ana Luísa Amaral


Paula Rego

Logo pela manhã, em avalanche, entras-me por aí.
Solenes, como reis, chegam contigo gatos, papagaios,
algum astro pulsante à beira-mar e valsa, uma palavra
verde ou de outra cor. Se chegasses na hora do calor,

correndo pela estrada nacional, e em velocidade tal,
que conseguires parar junto à falésia: fantasia maior –
não serias mais bela alegoria. E em alegria, vejo-te a cair,
o risco de erosão a confirmar-se, uma pedra minúscula

a bastar, para que o meu sossego assim se pulverize.
Podia, se quisesse, ter desenhado ali, a meio do ar, de ti
(em queda livre): arbusto de resgate…Ou uma equipa
inteira de resgate: roldanas, capacetes, moderno material,

e lanternas com luz, último grito. Se o desejasse, podia,
se quisesse – E em fio equilibrado para lá de normal,
hesitar-me: alegria? A morte por ditongo iluminado,
ou o grito ao meu lado, sobre mim, comigo? Faço

do corpo em verso o mais puro colchão, e suave,
e resistente, chamo o resto da gente que me habita
e deitamo-nos rente ao final mais final desta falésia.
Convoco: aqueles astros, os gatos que trouxeste atrás

de ti, solenes, elegantes como valsa. Torno-me em pó
contigo cá em baixo, ou não me torno nada e só a ti
te faço estilhaçar, a ilha azul explodindo de mil cores,
em tela de cinema. Agora podes vir, que o tema em perigo:

igual à dura terra que nos abençoa. E as penas tão
brilhantes são motivo maior de pára-quedas. Vivem
a sustentar essa avalanche toda da manhã. Feita de
gelo e luz, e o calor morno dessa anunciação. Então,
Faça-se em mim.

Ana Luísa Amaral (lido aqui )

Quintas de Leitura com Ana Luísa Amaral

.
Quintas de Leiturapoeta convidada 

Ana Luísa Amaral
apresentação
Nuno Carinhas
leituras
Constança Carvalho Homem|Teresa Coutinho|Nuno Lamares|Ana Luísa Amaral
música
Teia (voz)|André Cardoso (guitarra)|Sérgio Carolino (tuba)
imagem
Manuela Pimentel

29.Setembro.2011
Teatro do Campo Alegre


Paula Rego: a Caçadora Furtiva


Quadro da exposição na Fundação EDP junto à Casa da Música no Porto

Tive muito medo e fiquei com uma certa apreensão! Mas para encontrar o nosso próprio caminho é necessário encontrar a nossa porta, como Alice. Ao tomarmos demasiadamente de uma mistura ficamos grandes demais, depois tomamos demasiado de outra e ficamos pequenos demais. Temos de encontrar a nossa própria entrada para as coisas ...


Paula Rego, Histórias da National Gallery, Fundação Calouste Gulbenkian, 1992

terça-feira, 6 de setembro de 2011

a propósito de um aniversário





Viajavas antigamente nos círculos de um vinil
e não o sabia, tanto tempo de intervalo -

As agulhas eram diamantes do tipo best friend
e as palavras eléctricas acendiam chamas de sílex
fragmentando as noites, aguçando os dias;
ironias, os ruídos e silêncios -


Escrevia sem lua porque o quarto não tinha céu
fechado sobre uma clarabóia onde a roupa estendida
e um eco de vizinhos, por baixo e mais acima
mas talvez sonhasse uma janela e as estrelas -

O gira-discos de napa branca rodando rodando
rodando automático de um e de outro lado
repetindo a luz de um sol sem dó, repetindo -

E não sabia decifrar ainda a força do palco, o braço esticado
a febre saindo nas garras de bagas brilhantes
iluminando a testa no suor das melodias -

O disco de capa branca nunca teve a morte em duas pernas
e permanece numa ópera diferente, gritando a plenos pulmões
que se soubermos agarrar as cordas que nos seguram ao chão
podemos encontrar anjos e subir as paredes das nuvens
e ter um sangue vermelho infinito, indefinidamente
como aqueles que se libertam dos cravos nas mãos
e de punhos fechados seguram o tempo -

Quando Freddie escreveu a canção pensou num corpo feminino
uma pele acetinada, um olhar escondido no travo de cabelos
provavelmente na súbita elevação de um sorriso
ou em braços estendidos -

A música, a rainha, the music’s Queen
como e quando e através de qual circunstância
será impossível de determinar mas surge como a semente dos versos
e dos poetas resguardando os segredos e criando, sucessivamente
novos vendavais e indícios de paraísos
arrepios, arrepios -

Como agora escutando o mesmo gira-disco
a mesma agulha sobre os círculos
e o diamante robusto, rodando rodando
e supondo a musa
no seu refúgio de distância
escutando a música -

josé ferreira 6 Setembro 2011

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

uma história demasiado sensível




uma história demasiado sensível
invulgar surpreendente mas não sei se digo
hesito entre um momento de espanto
e o segredo, a permanência circular da história
que oscila nas linhas finas da mente
dentro de quartos inpovoados, silenciosos, indecisos
onde livros e pós misturam rostos e cabelos
mãos e seios, lábios conseguidos e milhares de desejos -

uma história que não se supõe possível - uma irrealidade
uma música de Paganini, violino, violinos
uma madrugada de princípio de Outono, húmida
a névoa translúcida, a dedução imprecisa das formas -

mesmo nas cidades que se encontram sempre iluminadas
e vivem em diversas intensidades: noite madrugada luz
sempre me disseram que nas horas mais mortas
tivesse mil cuidados, os olhos abertos, na frente e nas costas
e delinear as sombras, tentar entendê-las
à distância necessária, como amigas
ou de sinal contrário como luta ou fuga -

hesito, não sei se digo, hesito
e depois nem sei se será suficiente na mudança
os teus olhos estão fixos na obsessão de uma borbulha
na palma por onde correm linhas de quiromancia, a vida -
hesito na minha inocência e hesitas na mais uma oportunidade
ou nas recorrentes palavras afogadas, sem sílabas -

hesitas
impaciente, preocupada como as flores e os frutos
perante as intempéries fora de época
hesitas na conclusão e circulas centrípeta
em vários centros e motivos que possam esclarecer
o inìcio, o princípio, o clarear activo de um enredo
o grave e o agudo, o normal e o sustenido, o meio tom
a tempestade de ruídos -

e há razão no teu sentir, passaram três anos -
muito tempo, em três anos cresce a barriga
as crianças apertam os dedos adultos, cedem ao choro
ao riso, gatinham o chão, sopram bolas de sabão
e gritam sequências: números cores letras -
há razão no teu sentir -

hesito, não sei se digo, hesito -

uma história surpreendente como as de Aladino
e um tapete voador por desertos amarelos
e meias luas de mesquitas em histórias de orientes:
final de verão, madrugada, bateu a porta
saiu na primeira luz da neblina;
dirigiu-se ao rio, uma rua inclinada, seis horas
corria um frio, os passos ouviam-se, um eco contínuo
levava um pólo azul e umas calças de bombazine
apertadas na cintura devido a excessos
e justas nas barrigas das pernas, usava sapatilhas.

o pólo era de manga comprida
parou em frente de uma porta magenta de trinco ruivo
e patilha antiga na cor de ferrugem.
uma nuvem branca escondia a paragem de autocarro
a cor baça de janelas de alumínio, os vidros aramados de uma tabacaria.
se olhasse apenas a porta magenta no seu ar deslocado
poderia recuar a um castelo medieval, uma ponte levadiça
malhas e espadas, sentinelas nas ameias, templários e gentios -

a tinta era descontínua e rareava a espaços
sem perder a substância da diferença;
uma cor alta a terminar num arco redondo -

estás pálida, que estúpido, queres umas águas ?
agora as de Vidago são de plástico e abertura fácil.
que estúpido, não queres saber da história, do seu sentido
se tem candelabros ou néons de boutique, cristais ou plásticos -

hesitas, usas os dedos que são teus nas duas mãos
e rodas um anel largo de pedra polida
na cor negra de uma antiga tulipa
em todas as direcções, como se fosse uma bandeira difícil
um perigo, uma defesa ténue de seara entre sombra e brilho
mas se os olhos se prendem nesse volteio
repito, obssessivo, precisas soltar o dique
deixar cair essas palavras do alto dessa montanha
deixá-las cair, perder altura, naturais e sinceras
e então afundo-me no fumo que pressinto
brasas perdendo fogo, a fogueira exinta;
calo-me com a minha história de nevoeiros
cavaleiros e moinhos, uma outra altura -

coloca a tua mão direita voltada para cima
e deixa que sinta a tua pele
e não me leias a sina
qualquer que seja o sentido, não feches os lábios
fala comigo -

josé ferreira 4 Setembro 2011




domingo, 4 de setembro de 2011

Biografia ( curtíssima ) - um poema de Ana Luísa Amaral


Pablo Picasso 1936

Ah, quando eu escrevia
de beijos que não tinha
e cebolas em quase perfeição!

Os beijos que eu não tinha:
subentendidos, debaixo
das cebolas

(mas hoje penso
que se não fossem
os beijos que eu não tinha,
não havia poema)

Depois, quando os já tinha,
de vez em quando
cumpria uma cebola:

pérola rara, diamante
em sangue e riso,
desentendido de razão

Agora, sem contar:
beijo ou cebolas?

O que eu não tenho
(ou tudo): diário
surdo e cego:

vestidos por tirar,
camadas por cumprir:

e mais:
imperfeição


Ana Luísa Amaral

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Não digas nada - um poema de Maria do Rosário Pedreira


fotografia retirada daqui

Não digas nada – a tua boca já me pertenceu
e agora tenho ciúmes das palavras. O que
disseres será um beijo pousado nos lábios de
outra mulher, dor e mais dor, traição maior
para quem acreditou que o teu amor era para
a morte. Não fales – tenho também ciúmes
da tua voz; ouvir-te é ficar só uma vez mais.

Maria do Rosário Pedreira (lido aqui)

Bach e o filme de um homem calvo



Li as tuas palavras antigas
E caíram-me bem como o som de Bach
Num carrilhão de cinquenta sinos;
Um filme francês, há dias -

Mas não interrogues as estrelas
Conto-te, sem pressas, uma história pequena:

Um homem calvo
Queria rumar ao sul e encontrar praias azuis.
Usaria um método infalível -

Falhou o plano, em vez do Sol, o frio do Norte
Uma vila pequena, gente de aldeia, um susto grande
Restava a conformidade obrigada, a penitência
E o degredo, num lugar selvagem, primário
Até o reaprender da linguagem -

Mas a música grande nas almas que julgava pequenas
Fizeram crescer mãos e braços sobre o homem calvo
Uma concha de afectos, e o mundo mudou -

O Norte não era tão frio que congelasse os pés
Nem tão empedernido que estalasse a alma
E enquanto na alta torre da igreja medieval
O cobre dos sinos discursava
O homem calvo largou a mensagem
Na janela mais alta, estreita e longínqua
em serenata à lua, e em inverso
de cima para baixo a uma mulher na rua
de olhos brilhantes e mãos lancinantes, impacientes -

Tudo contrariou a previsão do início
Completando assim o sentido primeiro do poema:
O bem que fizeram as palavras antigas e a melodia;
O som de Bach -

Que segundo consta nas pinturas das fotografias
Não era calvo e usava caracóis grandes

Por companhia -


José Ferreira 2 Setembro 2011

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Fragmentos XI - um pequeno ponto no nariz


Renoir 1876

ALTERAÇÃO. Aparecimento breve no campo do amor,
de uma contra imagem do objecto amado. Devido a
ínfimos acidentes ou leves traços, o sujeito vê a boa
Imagem subitamente alterar-se e transformar-se.


Seria o outro assim vulgar, ele, a quem eu devotadamente incensava a elegância e a originalidade? Ei-lo a fazer um gesto que descobre nele uma outra raça. Estou aturdido:oiço um contra-ritmo: qualquer coisa semelhante a uma síncope na bela frase do ser amado, o ruído de um rasgão no envelope liso da Imagem.
....................
Uma vez, falando de nós, disse-me o outro: "uma relação de qualidade"; esta palavra desagradou-me. Surgia repentinamente do exterior, vulgarizando a especialidade da relação numa fórmula conformista.
É muitas vezes pela linguagem que o outro se altera; diz uma palavra diferente e oiço sussurrar ameaçadoramente todo um outro mundo, que é o mundo do outro.
....................
...vejo-o, durante a conversa, agitar-se, multiplicar-se,querer fazer muito, dar-se ares de grande interesse aos olhos de um terceiro, como se estivesse tentado a seduzi-lo. Reparai bem em tal reunião: vereis este sujeito louco(discretamente,mundanamente)por esse outro, decidido a com ele estabelecer uma relação mais calorosa, mais interessada, mais aduladora: surpreendo o outro, por assim dizer, em flagrante delito de inflação de si próprio.
....................

O discurso do amor é, normalmente, um envelope liso colado à Imagem, uma luva macia que rodeia o ser amado
.// Quando a imagem se altera dilacera-se o envelope da devoção; um tremor modifica a minha própria linguagem.

Roland Barthes "Fragmentos de um discurso amoroso" Ed. 70 1981