domingo, 31 de julho de 2011
a história de Shell por Leonard Cohen (II)
Abriu-lhe os olhos e sorriu-lhe a sua curiosidade. Ele levantou-se e dirigiu-se a ela.
- Queres vir comigo?
- Está bem.
- É quase noite.
....
Deram as mãos e desceram a colina a correr. Folhas quebradiças desfaziam-se debaixo dos seus pés, e procuraram montículos delas para calcarem. Depois, ficaram a ver o trânsito a passar a grande velocidade pela rampa lá em baixo, as luzes incontáveis dos automóveis.
...
O ar estava límpido, as estrelas, grandes. Mantiveram-se juntos e herdaram tudo.
- Tenho de me ir embora.
- Passa a noite acordada comigo! Vamos ao mercado do peixe. Há grandes monstros esplêndidos embalados em gelo. Há tartarugas, vivas, para os restaurantes famosos. Vamos salvar uma, escrever-lhe mensagens na carapaça e devolvê-la ao mar, Shell, concha. Ou então vamos ao mercado de legumes e verduras. Eles têm sacas vermelhas de cebolas que mais parecem pérolas.
...
- Eu amanhã trabalho.
- O que não tem nada que ver para o caso.
- Mas é melhor ir andando.
(excerto de um livro de Leonard Cohen)
a história de Shell por Leonard Cohen
Fotografia de Bert Stern
Limitava-se a ser adorada. Por alguma razão curiosa, lembrou-se de um certo vestido que usara quando andava na escola e desejou vagamente estar a usá-lo ou saber onde estava. Ele tinha a cabeça inclinada, estava a sorrir. "Está pronto para passar a noite toda a olhar para mim", pensou ela. Sem falar, sem perguntar nada. Tentou imaginar quem seria ele.
....
Apercebeu-se que, anos atrás, era exactamente assim que desejaria ser observada, com música, diante de uma janela, com a luz suavizada pela madeira antiga.
Em breve deixaria de conseguir distinguir as pedras do muro ou a vedação de ferro encostada aos arbustos. Os passeios eram de madrepérola e, apesar de ela não ser capaz de o ver, sabia que o sol estava a arrastar a escuridão à medida que se retirava por detrás das colinas de cristas rosadas de Nova Jérsia. Será que ele iria fitá-la para sempre?
Fechou os olhos, mas nem assim deixou de sentir os olhos dele. Tinha o poder de um elogio indefensável. Não dizia que ela era bonita, mas dizia-lhe para se deleitar na sua beleza, o que era mais compreensível e humano, e agradou-lhe contemplar o prazer que criava.
(excerto de um livro de Leonard Cohen)
sábado, 30 de julho de 2011
a mulher, freud o gato branco e um poema antigo
Jose Merello "Mujer azul"
recuperar um poema antigo e deitar-me sobre ele
como se falasse e tivesse mãos, dedos, cabelos longos;
um poema de mulher
a mulher
de olhos ternos, eternos -
em Abril corriam os rios pelos sinais das nuvens
a janela estava fechada e os vidros tracejados de gotas;
escrevi-o como se cada palavra fosse um pedaço de roupa
a cair, a desnudar o corpo, o teu, o meu, ao mesmo tempo
e à distância; serás sempre, disse-o. chovia -
reli-o na primeira hora de um final de Julho.
caiu-me no colo como Freud, o gato branco
de olho azul não na cor de safira mas mais claro
encolhido na curva quieta da cauda e ronronando
como um motor de barco abrindo as águas e olhando o rio -
caiu-me no colo como se fosse uma canção de gôndola
um sole mio num canal de Veneza; um remo longo
uma camisola de algodão, às riscas -
caiu-me no colo e pronto, o inevitável morno rodopio
de um crepúsculo laranja macio e persistente
que pode ser miragem, pode ser desvario
pode ser tudo porque sentido -
é curioso observar a ladeira do tempo
o escorregar nas folhas dos versos como se de um Outono
o ultrapassar dos frios polares conservando o fluir do pêndulo;
os batimentos de fogo
e mergulhar no acaso do poema antigo
para o sentir presente e futuro
como um rumo e um destino -
30 Julho 2011
sexta-feira, 29 de julho de 2011
de Oslo à Palestina - à distância de um click
Gerhard Richter
balas graves nos corais duros do oceano
- a culturalidade única
o uniforme vermelho de botões loiros
à distância de um click
como forca asfixia
como guilhotina separa a cabeça extermina
algures em Oslo - cronómetros frios.
talvez mais loucos de tridente
ousem o mesmo esquema - insanos assassinos
pedaços de vampiros no disfarce de gente
almoçando à mesa como almas sem defeitos
sorrindo e fazendo festas metálicas
nos cabelos arianos - baços inorgânicos
- ou amaciando um filamento explosivo
num círculo de fogo - um outro modo
e a mesma sina no Iraque e em Madrid
Londres Nova Iorque e Palestina -
José Ferreira 28 Julho 2011
quinta-feira, 28 de julho de 2011
XCII
XLI
quarta-feira, 27 de julho de 2011
as palavras assassinas
retirado daqui
procurar as palavras e assassiná-las
para que não sejam lidas.
não, não é de um parque a elegia
é do fundo da pele; dedos e cabelos
olhos como lanternas na escuridão da bússola
e de janelas e luas e estrelas, essas minúcias tão presentes
tão vulgares e repetidas que ninguém lê atentamente;
aspirinas brancas de algumas miligramas
platinas tão brilhantes que aperto com os dentes -
assassiná-las dizia e as palavras inundam-me a boca
e soltam-se sozinhas
por vezes escuras como fendas nas paredes
gritos a estilhaçar vidros -
sossego, sossego, um dia domingo
pousar a asa do rosto no teu ombro de penas
um segundo, silêncio
calar o mundo antigo
um segundo, silêncio -
José Ferreira 27 de Julho de 2011
terça-feira, 26 de julho de 2011
a fuga do espírito
Nicolleta Giuseppe (fotografia retirada daqui)
dis-moi, pourquoi mon esprit s'enfuit-il ainsi?
Schiller
sim as tábuas, um pouco abertas -
um espigueiro recortado sobre a rocha
apenas decorativo, castanho escuro -
cuidado! escorregas, segura-te -
ao fundo o correr do rio
uma mesa de pedra, granito
e silvas
e amoras
e uma brisa
aflito
aflito
nos teus olhos claros
na tua mão de linhas, macia
nos teus lábios compridos -
o espírito é uma ave lá em cima
é domingo -
José ferreira 26 de Julho 2011
domingo, 24 de julho de 2011
essas palavras presas de delírio
Andreas Heumann
essas palavras presas no delírio
essas cartas brancas vestidas de enigma
fluem de aroma em asas acesas, reflexos firmes;
espelhos que agarram, braços de absinto
a elevar as águas, a torná-las infinitas -
sobem as marés descem as tulipas
no frágil caule que se inclina
pela raiz forte de mil desejos;
dedos de algas, seios de marfim
lábios citrinos nos ombros de mármore
pêndulos perdidos no emaranhar dos fios
linhas soltas no tempo, lágrimas salinas
o fim inevitável e excessivo antes de acalmar os ritmos
os trovões ribombantes na pele dos tímpanos
os perigos cardíacos -
e agora inclinados, adormecidos
normais e vestidos
num abismo de céu -
José Ferreira 24 Julho 2011
Poésies de Schiller - Amélie
Il était le plus beau des jeunes gens, beau comme
un esprit enchanteur du Walhala. Son régard céleste
avait la douceur du soleil de mai, et l'azur du miroir
des mers.
Ses baisers...ô sensation divine! comme deux
rayons de flamme se réunissent, comme les sons
d'une harpe s'accordent dans une merveilleuse har-
monie;
De même, dans ses baisers, l'esprit courait au-
devant de l'esprit et se confondait avec lui; les lé-
vres, les joues palpitaient, brulaient, l'âme se mariait
à l'âme; la terre et le ciel disparaissaient autour des
deux amants.
Schiller "Poésies" traduites par M.X.Marmier
Paris
sábado, 23 de julho de 2011
a natureza revolucionária da felicidade
sexta-feira, 22 de julho de 2011
tábuas longas e tectos de estuque
William A. Bouguereau (1825-1905)
escrevo-te na casa grande de tectos de estuque e tábuas longas
brilha uma luz que elimina a varanda e lança raios antes amarelos agora mel
flui uma cor patine tão única tão antiga -
inútil a lareira e o tempo assume a temperatura alta
época pouco firme dando lugar ao arrepio; a suspeita o ciúme
o impenetrável espaço do círculo rodopiando rodopiando centrípeto -
nas palavras que o vento assina sopram assobios
veementes magoados como se merecidos
lembram as tempestades no pacífico -
todos os mares têm os seus dias ferozes e macios
imagino a laranja dividida o sumo perdido
os trópicos sem oposto a inutilidade do equador
o sol sem a lua o fim do crepúsculo;
seria sem graça a borboleta que de um ao outro lado
modifica o planeta -
a arte, a literatura, as cenas de um teatro são faúlhas
mas não são falsas nem corruptas
não são lâminas nem pedras de judas
reflectem almas e pensamentos nem sempre puros -
afundo-me na carícia -
José Ferreira 22 Julho 2011
quinta-feira, 21 de julho de 2011
De um lado, o amor intuitivo da carícia
Fotografia de David Dawson no estúdio de Lucian Freud (neto do inventor da psicanálise falecido ontem, 21 de Julho de 2011)
De um lado, o amor intuitivo
da carícia. Do outro,
toda esta vida cheia, esta força que transborda.
De um lado, a madrugada,
que desperta no teu ventre.
Do outro a noite que
através de nós germina
nas plantas, na voz,
na veemência das plantas,
na veemência da voz,
na ternura que contagia o erotismo
com a sua veemência, o seu peso
de gritos e de camélias distintos.
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Caminhei ao longo
de uma praia
de margens irregulares
e de pássaros lisos. Ansiava
que hoje pudesses tocar
nesta rede que palpita,
se abre e se fecha.
Poderás para sempre correr
ao longo desta areia,
debruada, como pedaços de tecido,
insustentável?
Poderás estender-te
a este sol, surpreendida
por esferas de nuvens
e de luz?
Gérard de Cortanze "O Movimento das Coisas" Campo das Letras, 2002
a vertigem dos dedos
Andreas Heumann
inclinado sobre o lado direito, pousou o rosto
nas nervuras abertas das linhas de uma só mão.
adormeceu sem receio dos ciprestes.
o lado esquerdo, liberto, bateu, uma e duas vezes
pulsante, movimentando a velocidade vermelha do sangue
e sonhou como sempre -
era água, era noite, era a forma líquida do sonho, um mar gigante -
vieram ventos ciclónicos e ergueram as gotas criando estátuas no ar
reunindo o concílio branco das espumas, assustadas, no centro do mar -
e vieram os tornados, plenipotentes, cones uivantes
sugando da base ao vértice, as nuvens indefesas do céu -
e ouviu-se a voz mais forte dos deuses, no escurecer dos relâmpagos
escondendo os golfinhos nas grutas mais profundas, junto ao lavagantes
perante a dilatação medonha dos tímpanos, as descargas de luz
e as chuvas que flagelavam -
de repente o silêncio, era ainda a noite, e abriu os olhos claros -
as ondas repetiam marcas na praia e o sal brilhava em reflexos de amianto
os dedos estavam macios, o rosto estava morno, não tinha vincos
era fluido como um barco, e do outro lado
outros dedos
subindo e descendo as margens
na vertigem emaranhada dos cabelos -
José Ferreira 20 Julho 2011
quarta-feira, 20 de julho de 2011
só uma onda que ri
só uma onda aos ritmos
podia ser água
e a certeza com que se espalha,
o resto
(palavras em poços
que reflectem
circunferências na superfície)
tende a magoar
quando rodas sobre ti
a velocidade não serve de nada
o vento é só teu
os extremos a tua curvatura
e o sopro do poço vem devagar
deixar duas dimensões à solta de não saber
não deslizar pelas lâminas circulares
entre uma e outra ir saltando
sem violino
ao ritmo de ecos
se o cérebro é maior que o mundo
que o segundo não caiba no primeiro
não se cria energia quando tremo
pela rotação de uma palavra
rir contigo
nos teus modos de ondulação
montar um touro azul e entrar pelo poço ao vento
que não se afaste assim a matéria com medo do escuro
(às vezes despeço-me dos bichos
com um dedo que não é mão)
quero dar um beijo a um átomo
sei que se amam quando se rodeiam
deitar-me com um planeta
contra todos os contractos
que me trouxeram a esta escala sem lugar
também tenho medo do escuro
por mim seguia na água
até ao lugar comum
esse espaço inocente
que se abre entre as sobrancelhas dos bichos
onde se come a energia exacta para comer
a boca não sabe a época
mas ouvimos o fundo dos poços
há uma exacta inclinação das variáveis
para lhes espreitar
e ela ri-se com
a rotação de todos os polegares
na inclinação exacta de nos amar
hoje não tenho versos
e não acho particularmente graça a isso de achar que "O poeta é um fingidor",
não faço dessas palavras as minhas.
Pelos tempos que correm,
não sei como se esquecem os políticos de Platão.
Ele que no Político diz:
"Se as artes chegassem a desaparecer, tornar-se-ia absolutamente impossível viver a existência, já tão penosa agora.".
Le regard
Le regard
des âges a tous
les yeux du
soleil...
Le soleil
a tous les
regards des
âges...
Tous les
âges ont tout
le soleil des
yeux...
L'âge du
soleil est
eu tous les
yeux...
Henry Chopin 1984-1986 (lido na exposição da Biblioteca de Serralves)
terça-feira, 19 de julho de 2011
palavras sem muros
Lucian Freud 1950
A flor e a abelha
o voo nocturno, a lua certa e serena
pelo canto sibilado de Atena;
mel de segredos, verdadeiro e clandestino -
um jardim de Sophia, um pequeno lago
as flores animadas, a tulipa, a flor de Lys
o aroma inebriante das pétalas seguras
pelas pálpebras da noite, irisadas
de rosas ondulantes, mármores de sul;
horizontes insepultos
lábios despertos, palavras sem muros -
José ferreira 18 Julho 2011
segunda-feira, 18 de julho de 2011
Poema - Maria Teresa Horta
Malevitch
Deixo que venha
se aproxime ao de leve
pé ante pé até ao meu ouvido
Enquanto no peito o coração
estremece
e se apressa no coração enfebrecido
Primeiro a floresta em seguida
o bosque
mais do que neve no tecido
Do poema que cresce e o papel absorve
verso a verso primeiro
em cada desabrigo
Toca então a torpeza e agacha-se
sagaz
um lobo faminto e recolhido
Ele trepa de manso e logo tão voraz
que da luz é noz
e depois ruído
Toma ágil o caminho
e em seguida o atalho
corre em alcateia ou fugindo sozinho
Na calada da noite desloca-se e traz
consigo o luar
com vestido de arminho
Sinto-o quando chega no arrepio
da pele, na vertigem selada
do pulso recolhido
À medida que escrevo
e o entorno no sonho
o dispo sem pressa e o deito comigo
Maria Teresa Horta "Poemas Leya" 2009
domingo, 17 de julho de 2011
a carta, um conto ou as palavras lançadas ao mar
imagem retirada da internet
não conseguiu caminhar na areia mas foi ver o mar.
na mesa branca pousaram o café quente e negro
ao qual disse: obrigado.
no imediato a chávena de asa de porcelana
inclinou-se por sobre os lábios e tornou-se branca,
na totalidade, como a mesa, a cadeira
e uma gaivota que passava planando em direcção à onda,
desafiando a gravidade.
jazia esquecido o romance de um escritor conhecido,
ressonava no sono pesado; não teve coragem
tornou-se silencioso, e lentamente colocou-o no canto da mesa
que era branca como a cadeira, a gaivota
e uma folha que entretanto colocara ao centro,
vazia e alinhada.
deixou fluir as palavras pelo meio dos dedos
em transe, como quem recebe uma descarga;
os olhos muito abertos e dinamite no tronco
lançando faíscas, imperceptíveis na generalidade
de todos os outros que cruzavam os braços
escutavam as frases, decifravam as vagas
ou liam apenas notícias dos jornais.
a folha perdeu o anonimato e aqui e ali
sofreu a mancha de um traço,
por fim tornou-se pesada e completa;
o alívio de não mais ser branca
como a mesa, a cadeira, a gaivota
e as espumas fragmentadas que subiam acima das rochas.
colocou-a cuidadosamente à frente dos lábios
e perante o espanto de alguns que observavam,
soprou com força as palavras
para que o mar as levasse, mesmo assim
impermeáveis e sem garrafa.
dobrou a folha densa em quatro e com muito cuidado
sem acordar o livro que ressonava de forma estranha
levantando aqui e ali a capa, duas ou três páginas
colocou-a de uma só vez, junto ao prefácio.
um euro e vinte, disse o empregado;
bom dia, muito obrigado.
de livro aconchegado na almofada do braço,
oitocentas páginas,
subiu as escadas e desapareceu com a carta,
em direcção à cidade -
as mesmas palavras erguiam as velas como naus
e seguiam marítimas os caminhos do mar -
José Ferreira 17 Julho 2011
sábado, 16 de julho de 2011
um poema de Cesariny
sexta-feira, 15 de julho de 2011
diálogo à lua
um sentimento vago e flutuante, dizes,
conhecido como os lavagantes
que andam no fundo do mar;
e no entanto, não o vejo assim -
começou persistente nos acordes de uma melodia longínqua,
impermeável à neblina das manhãs cinzas.
não o vejo assim -
na longitude dos dias,
como no corte largo e duro da cortiça, mostra-se a essência clara,
o diáfano da árvore, o fruto do sangue que cresce da terra,
película a película, pelos caminhos finos das raízes -
e o sentimento habita a guarida do espírito,
tecido autêntico de prata, ouro e platina,
e predomina, na moldura que enclausura
por sobre as águas lancinantes,
o início,
a noite e a luz branca,
impregnada de altitude -
José Ferreira 15 de Julho de 2011
quarta-feira, 13 de julho de 2011
Nós todos e cada um de nós
Nota: o texto que se apresenta de José de Almada Negreiros reproduz-se na íntegra como foi publicado em Lisboa no ano de 1924
- Sabem quantas pessoas tem havido desde o principio do mundo até hoje?
- Duas. Desde o principio do mundo até hoje não houve mais do que duas pessoas: uma chama-se humanidade e a outra individuo. Um a é toda a gente e a outra é uma pessoa só.
Um dia perguntaram a Democrito como tinha chegado a saber tantas coisas.
Respondeu: Perguntei tudo a toda a gente.
Bastantes seculos mais tarde Goethe confessou por sua propria bocca que "se lhe tirassem tudo quanto pertencia aos outros, ficava com muito pouco ou nada".
Por aqui se vê que cada um é o resultado de toda a gente; o que de maneira nenhuma quererá dizer que seja o bastante ter cada qual conhecido toda a gente para que resulte immediatamente um Democrito ou um Goethe! Precisamente o difficil não é chegar aos Grandes, mas a si proprio!...Ser o proprio é uma arte onde existe toda a gente e em que raros assignaram a obra-prima.
O que está fora de duvida é que cada um deve ser como toda a gente, mas de maneira que a humanidade tenha effectivamente um bello representante em cada um de Nós.
"Pierrot e Arlequim", personagens de Theatro. Ensaios e dialogo seguidos de commentarios por José ALMADA NEGREIROS com um autoretrato dois figurinos um desenho allusivo e o motivo de capa
Portugalia Editora 78, rua do Carmo, 75 Lisbôa Nov. XXIV
XLVVIII
De um filme de Godard
Dois amantes felizes fazem um só pão,
uma só gota de lua sob a erva,
deixam andando duas sombras que se juntam,
deixam um único sol vazio numa cama.
De todas as verdades escolheram o dia:
não se ataram com fios, mas com um aroma,
e não despedaçaram a paz nem as palavras.
A alegria é uma torre transparente.
O ar, o vinho, vão com os dois amantes,
a noite dá-lhe as suas pétalas felizes,
têm direito aos cravos que apareçam.
Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.
Pablo Neruda " Antologia Breve" Dom Quixote 1977
terça-feira, 12 de julho de 2011
depois passa -
“It’s four in the morning
I’m writing to you now just to see if you are better”
Leonard Cohen
não me peças palavras vestidas de penumbra
a subtileza escura de um jogo de espelhos
adensa-se a noite, estou triste como uma folha solta
no pó do jardim, enrolo-me nas teias presas
um adesivo sem cura, uma mancha de tabaco -
as persianas da janela escurecem a cidade, fecham o quarto
abrem o rádio, fecham o rádio
estou denso no meio da alma e guardo as palavras;
foi um terramoto, sabes -
dá-me um instante, alguns miligramas de silêncio
depois passa -
dá-me o sossego de um refúgio nos olhos fechados
em que polpa dos dedos não percorre o contorno dos lábios
um piano leve de Schubert, nas mãos, a pele do teclado
como um bálsamo que descansa a lava dos sonhos, fortes
ternos, doces, sem névoas nem moinhos moendo as velas -
adormece-me o escuro, estou cheio de medo
como a figueira abandonada e plena de frutos maduros
por onde passam os pássaros e dão bicadas -
inseguro
desculpa, não fiques preocupada
depois passa -
José Ferreira 12 de Julho 2011
segunda-feira, 11 de julho de 2011
Uma carta no livro de Philip Roth
Eliseu Visconti
"Sim lembrava-se dela e da sua história e de ela lhe ter pedido que matasse o marido, como se fosse um ganster de cinema e não um simples doente num hospital psiquiátrico que, apesar de corpulento, era tão incapaz como ela de pôr termo ao seu próprio sofrimento com uma arma. Abundam os filmes em que as pessoas se matam a torto e a direito, mas a razão pela qual se fazem todos esses filmes é que 99,9% são incapazes de o fazer."
A carta:
"Talvez você não saiba, mas o facto de ter ouvido a minha história com atenção contribuiu para que me aguentasse. Não que tenha sido fácil. Não que o seja agora.Não que alguma vez venha a sê-lo. O monstro com quem fui casada causou danos irreparáveis na minha família. O desastre foi maior do que eu sabia quando fui hospitalizada. Vinham-se passando coisas terríveis desde há muito tempo sem que eu soubesse de nada. Coisas trágicas que envolviam a minha filhinha. Lembro-me de lhe ter perguntado se não queria matá-lo por mim. Disse-lhe que pagava. Pensei que você podia fazê-lo porque era muito grande e forte. Você foi compreensivo e não me chamou de louca quando eu lhe disse aquilo, deixou-se ficar sentado a ouvir a minha loucura como se eu estivesse no meu perfeito juízo. Estou-lhe grata por isso. Mas há uma parte de mim que nunca voltará a ser mentalmente sã. Não pode ser. Estupidamente condenei à morte a pessoa errada."
Philip Roth "Humilhação" 2011
De um poema de Pablo Neruda - O homem invisível
...e olho as estrelas
deito-me na erva, passa
um insecto cor de violino
ponho o braço
num pequeno seio
ou sob a cintura
da doce mulher que amo,
e olho o veludo
duro
da noite que treme
com as suas constelações congeladas,
então
sinto que sobe à minha alma
a onda dos mistérios,
a infância,
o choro às escondidas,
a adolescência triste,
e dá-me o sono,
e adormeço
como uma macieira,
fico a dormir um instante
com as estrelas ou sem as estrelas,
ou com a amada ou sem ela,
e quando me levanto
foi-se a noite,
e a rua despertou antes de mim...
em Poesia do séc XX Pablo Neruda Trad. Fernando Assis Pacheco "Antologia Breve" Dom Quixote, Lisboa 1977
sábado, 9 de julho de 2011
pela noite que se adensa
pela noite que se adensa e me reentra dentro, penso
como seria diferente
se soubesse voar, nocturno, acima das luzes
aos milhares
contá-las
uma a uma, como segundos que se gastam
descendo a encosta esquálida
de olhos no mar, até à reentrância azul
- foz natural, recepção oceânica -
onde estás
rodeada de círculos, por vezes laminar
no bico das arestas, no gume molhado das faces
quando centrípeto, divago
de centímetros cinza no caminho lasso
- período fraco de metamorfose -
como ilha no espaço.
abres e abres-me
a existência imaginária
desordenada
a viagem, na vertigem branca
a lua, que se alimenta
nos largos lábios de sal;
nas margens emplumadas
nas flores de prata;
oferenda submersa e vasta
na lisa lousa das palavras -
José Ferreira 9 Julho 2011
sexta-feira, 8 de julho de 2011
Um poema de Eluard a Pablo Picasso- Palavras Pintadas
Pablo Picasso
Para tudo compreender
Tudo
A árvore adorada dos cipós e lagartos
Para compreender o fogo
Para compreender o cego
Para reunir a asa e orvalho
Coração e nuvem dia e noite
Para abolir
A careta do zero
Que amanhã rolará sobre o ouro
Para talhar
As pequenas maneira
Dos gigantes que se alimentam de si mesmos
Para ver todos os olhos reflectidos
Por todos os olhos
Paul Eluard "Algumas das palavras" Antologia organizada por António Ramos Rosa, Dom Quixote, 1977
quinta-feira, 7 de julho de 2011
Partes de um poema de Keats - Ode a um Rouxinol
Édouard Boubat
......
Como eu queria partir para longe, voar para ti
não sobre o carro de Baco e os seus leopardos,
mas com as asas invisíveis da poesia
embora, vagaroso, o pensamento ainda hesite e se demore.
Assim apareço, subitamente, ao teu lado! A noite está calma
e, como uma rainha, a lua talvez permaneça no seu trono
cercada por todas as suas fadas, as estrelas;
mas aqui, onde fiquei, nenhuma luz pode brilhar
a não ser a que chega pelo céu com a brisa
através das sombras verdes e dos sinuosos caminhos
cobertos pelo musgo.
Não posso reconhecer as flores debaixo dos meus pés,
nem que suave incenso flutua sobre os ramos,
mas, pela noite perfumada, adivinho cada aroma
que este mês propício veio entregar aos bosques,
à relva, aos frutos das árvores silvestres,
ao espinheiro branco e à rosa brava dos prados,
às últimas violetas escondidas por entre as folhas
e à filha primogénita de Maio, a rosa almiscarada
e entreaberta, cheia de um vinho orvalhado,
asilo, nas tardes de Verão, dos insectos rumorosos.
.....
Não nasceste para morrer, tu, ave imortal!
Nenhuma geração impaciente pode apagar o teu vestígio,
e o canto que escuto nesta noite fugitiva
também foi ouvido, outrora, por reis e aldeãos;
talvez esta seja a mesma harmonia que atravessou
o espírito triste de Ruth, quando recordava o seu lar
e chorava diante das searas dum país estrangeiro;
a mesma que veio encantar tantas vezes as janelas
mágicas que se abriram sobre a espuma
dum mar ameaçador, em lendárias terras esquecidas.
.....
Jonh Keats "Poesia Romântica Inglesa" (Byron, Shelley, Keats) Trad. FFernando Guimarães, Relógio D'água, 1992
quarta-feira, 6 de julho de 2011
O silêncio de uns
Almada Negreiros
Não se classificam os versos alheios escritos no pó dos anos
Como pensamentos dos nossos olhos; curiosidade apenas
O deslumbre de diferentes formas de ordenar as letras.
Não se reduzem a cinzas as chamas luminosas de platina
Mesmo que a noite se pinte no mais escuro e renove a lua.
Não se esquece nunca as mitologias, os ventos diáfanos
As pinturas coloridas que atrasam os dilúvios
E revelam na cor de prata, o novo mundo -
O silêncio de uns, pode ser ruído -
José Ferreira 6 Julho 2011
terça-feira, 5 de julho de 2011
Um poema de Edgar Allan Poe - Soneto-Silêncio
Almada Negreiros
Há certas qualidades...tais compósitos
Com uma dupla vida, a que assiste
Uma entidade gémea que consiste
Em luz e em matéria, sombra e sólido.
Cindido é o Silêncio: mar e cais,
Corpo e Alma. Um vive solitário
Em campo raso, e faz-se temerário
Mercê de humanos ecos, rituais
E indulgências...seu nome "Nunca mais".
Tal Silêncio tem corpo: não temais!
Pois por si só não pode fazer mal;
Mas se vos lança o Fado inexorável,
De encontro à sua sombra (elfo inefável
Que assola os ermos onde outrem jamais
Pisou)...vos guarde Deus então a alma!
segunda-feira, 4 de julho de 2011
Fragmento XI - Quando o meu dedo por inadvertência
Por inadvertência, o dedo de Werther toca no dedo de Carlota; os pés sob a mesa, encontram-se. Werther poderia abstrair-se do sentido destes acasos; poderia concentrar-se corporalmente nestas fracas zonas de contacto e gozar este pedaço de dedo ou de pé inerte de modo fetichista,sem se inquietar com a resposta. Mas: Werther não é perverso, é um apaixonado: sempre e em toda a parte, Werther dá sentido a um nada e é o sentido que o faz estremecer: está no ardor do sentido. Todo o contacto, para o apaixonado, levanta a questão de resposta: pediu-se à pele que responda.
Roland Barthes " Fragmentos de um discurso amoroso" ed. 70
intervalos de palavras e lábios fechados
Na manhã embuçada de branco calam-se os passos certos,
de meio metro, junto ao mar;
falam os búzios grandes -
Na curta distância do azul , o manto húmido da neblina;
um limite ao ruído das águas, o oceano cíclico
onde ondas imaginárias se enrolam, urgentes,
e se estendem molhadas nos desertos resistentes -
No areal não é o tempo de barracas, apenas um guarda-sol, deitado,
listas brancas, listas fixas e quatro pés que se cruzam
na percepção permitida da sombrinha, vista de cima
e em suposição de outros formatos, abraços, lábios
intervalos de palavras e olhos abertos -
duas pombas pousadas não usam as asas e assinam as areias
contornam as rochas como soldados nos domínios de vigilância
mas o local tem marcas de uma outra época, sem semelhança
quando o sol brilhava e os dias eram de Agosto;
brasas acesas, um forno de poemas, palavras bravias
palavras doces, marcas de dentes no pescoço
filamentos de cabelos caídos, por entre os dedos -
nas malhas deste novo tempo, este dia
há milhares de minutos perdidos
quando os medos nos prendem os sentidos
e é bem verdade que nas páginas de filosofia
há um excesso de incerteza e a inconstância
na divagação estéril sobre antigos pensamentos
Sócrates, Schopenauer, Nietzsche;
a tentativa inóspita e absoluta do conhecimento
e o esquecimento do simples;
mesmo na poesia, na essência que se pretende pura
não se explica o voo das abelhas:
se andam doentes e não polinizam as flores;
um perigo para o planeta -
e as flores são únicas e breves
nas pétalas, no pólen, indizíveis, inconhecíveis na totalidade
como a pele das mulheres quando exigem os remos dos lábios
na travessia arrojada de um silêncio de margens -
José ferreira 3 de Julho de 2011
domingo, 3 de julho de 2011
Os Cavalos de Danaan
"A primeira obra que Ellen lhe desvendou seria uma tela a óleo, de grande formato, representando "Os Cavalos de Danaan". Era um tropel violento de fogosos animais, composto por chamas que se entrelaçavam, providos de arreios de ouro e ferraduras de prata, e com um diamante incrustado na fronte. Montavam-nos raparigas de cabelos loiros, e mantos ao vento, brandindo cada uma a sua lança, e galopando em direcção a um abismo entre duas escarpas de espinhos e pedregulhos.....
Decorridos longos minutos porém, subitamente desinteressada da apresentação da sua arte, a qual ia arrumando sem esmero particular, Ellen pediria ao nosso poeta que lhe falasse em português. Tomou-a nos braços, e foi-lhe segredando ao ouvido esta lengalenga, emergida de um passado que não conseguia fixar no tempo. "Pedro primeiro monarca/do mar de cá e de lá..."
Mário Cláudio " Tiago Veiga - Uma Biografia" D. Quixote 2011
sexta-feira, 1 de julho de 2011
Metade do Mundo
David Hamilton
Todas as noites ela vinha ter comigo
Eu cozinhava para ela, servia-lhe chá
Ela tinha trinta e tal naquela altura
conseguira fazer algum dinheiro, vivera com homens
Deitávamo-nos para dar e receber
debaixo do mosquiteiro branco
E uma vez que nenhuma contagem começara
vivíamos mil anos num só
As velas ardiam, a lua descia
a colina polida, a cidade leitosa
transparente, sem peso, luminosa,
destapando-nos aos dois
naquele chão fundamental,
onde o amor é fortuito, desatado, desencarcerado
e do mundo perfeito se acha metade
Leonard Cohen " O Livro do Desejo" Quasi 2008
Fragmento X - A espera
Matthias Schriefl - © by: ACT / Gerhard Richter
"...o acto I; está cheio de suposições: e se tivesse havido um mal-entendido quanto à hora ou lugar? Tento recordar-me do momento em que se combinou o encontro, dos pormenores que foram acordados. Que fazer (angústia de acção)? Mudar de café? Telefonar? E se o outro chegar durante estas ausências? Não me vendo, pode partir de novo, etc. O acto II é o da cólera; dirijo violentas censuras ao ausente: " Apesar de tudo, ele(ela) bem teria podido..." "Ele (ela) bem sabe..." Ah! se ela (ele) ali estivesse, para poder censurá-lo de ali não estar! No acto III, atinjo (obtenho?) a angústia pura: a do abandono; acabo de passar, num segundo, da ausência à morte; o outro está como morto: explosão de luto: estou interiormente lívido. Assim é a peça; pode ser encurtada pela chegada do outro; se chega durante o acto II, temos uma "cena"; se chega durante o acto III, é o reconhecimento, a acção de graças: respiro profundamente, qual Pelléas a sair do subterrâneo, reencontrando a vida, o perfume das rosas.
( A angústia da espera não é continuamente violenta; tem os seus momentos mornos; espero e tudo o que rodeia a minha espera está salpicado de irrealidade: no café, vejo os outros que entram, cavaqueiam, gracejam, lêem tranquilamente: esses não esperam)
A espera é um encantamento: recebi a ordem de não me mexer."
Roland Barthes " Fragmentos de um discurso amoroso " Ed. 70