sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Há mais de meia hora


Robert Doisneau 1936



Há mais de meia hora
Que estou sentado à secretária
Com o único intuito
De olhar para ela.
(Estes versos estão fora do meu ritmo.
Eu também estou fora do meu ritmo.)
Tinteiro grande à frente.
Canetas com aparos novos à frente.
Mais para cá papel muito limpo.
Ao lado esquerdo um volume da "Enciclopédia Britânica".
Ao lado direito —
Ah, ao lado direito
A faca de papel com que ontem
Não tive paciência para abrir completamente
O livro que me interessava e não lerei.

Quem pudesse sintonizar tudo isto!

Álvaro de Campos, in "Poemas"

3 comentários:

José Almeida da Silva disse...

Que belo poema, este de Álvaro de Campos!

Este imobilismo do sujeito poético e esta imensa dor de pensar são avisos à navegação. Mas o poema é a forma dinâmica de os contornar. Por mais que o desencanto se instale, é necessário pensar para o desinstalar.
«Quem pudesse sintonizar tudo isto!».
Bom Ano! Excelente poesia!

Abraço a todos.

josé ferreira disse...

Caro amigo a descoberta deste poema que também gostei muito teve lugar no primeiro dia de 2010. Realmente o verso final permanece dinâmico como atenção e esperança infinita ou como tão bem diz "por mais que o desencanto se instale, é necessário pensar para o desinstalar".

Bom ano e grande abraço

Joana Espain disse...

A mim parece-me que o mundo é mesmo assim sintonizado em excesso de encantamento. Diria que é por excesso e não ausência que chega o encanto a alguém que o retém meia hora em suspensão assim em canto.