domingo, 14 de dezembro de 2008

O poema morreu e não é notícia

O poema morreu e não é notícia.
Mas, porque quis a história que o poema morresse hoje,
mesmo sem ser notícia, fomos sentar-nos os dois muito quietos,
os corações lado a lado, o olhar a direito.

Tu falaste primeiro: Morto o poema,
é preciso contar ao mundo o caso dos versos agora órfãos.

Vieste depressa, há coisas que ainda dormem. Vês? Deixámos um
longo segundo para trás. O pé no travão, o travão a parar o tempo, o
tempo do som - o do outro que sem ser som vibra a desfazer
silêncios - o corpo já quieto, o fim da saia ainda
em movimento.

Sentámo-nos os dois tão quietos. Os corações lado a lado em
memória de um poema morto.

Não devias ter vindo tão cedo - disse-te. Principalmente num
encontro destes, em vulgar banco de jardim.
Mais um pouco, ter-me-ías acordado. E há questões mais pertinentes:
Morto o poema, em que língua vou falar
o sítio das coisas?

Minês Castanheira (Porto, 1983-) in Inter-cidades (2008)

4 comentários:

A. Roma disse...

Elza, vivo ao morto gostei muito deste poema. Curiossíssimo! Não conhecia a autora.
Mas veio muito a propósito, ontem ouvi um rumor de um poema que estava morto. Este tipo de rumores, mesmo não sendo notícia escontram meios autónomos de se espalhar.
Eu acho melhor guardar segredo, não quero informar o triste acontecimento a ninguem :)

Joana Espain disse...

Os meus sentimentos pela morte de um poema de que todos sentimos imediatamente falta já no primeiro contacto. É com grande consternação que constatamos que cada vez mais poemas morrem mesmo até antes de nascerem. Em memória dos belos poemas que não sobreviveram.

M. disse...

As sequelas do poema morto fazem-se já sentir. Só se fala disso. Hoje de manhã uma neblina espessa escondia os barcos dentro do rio como dentro de um saco. Não fosse a imagem do rio ou dos barcos despertar devaneios poéticos, que são agora inexistentes. No entanto, há ainda quem não creia na morte do poema, porque o corpo nunca foi encontrado. Os que acreditam nisso, acreditam ainda que o poema voltou precisamente hoje, de dentro da neblina, como o S. Sebastião que nos é devido há tanto tempo. Outra corrente de opinião afirma que o corpo não aparece porque o poema preferiu doa-lo ao IML para estudos póstumos. Eu diria que o poema volta às 4ªs feiras no tal lugar com a tal gente que se reune a falar dele!

josé ferreira disse...

Morreu este poema e o ar preenche-se de saudade. mas se este tal poema é morto também mortos estão tantos poetas dos quais falamos as mesmas palavras que há muito disseram de maneira tão viva - tão sentida. nas palavras da poetisa e nos três colegas poetas que me precederam deixo a pequenina rèstea grande de luz deste verso:
"...em que língua vou falar do sítio das coisas?". E mais não digo porque as palavras dos anteriores já me iluminam com novas poesias...ressuscitadas!