segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Carlos, indo e vindo de Julieta.

Estendido no sofá, cansado, escondo-me por detrás do jornal, enquanto te observo secretamente por entre o virar de uma página e outra. És minha, desde aquele dia em que trocámos juras de amor, e, no entanto, pareces tão distante. É quando mais te quero, mais te desejo, e não te posso ter. Não estás disponível e ditas as horas e os momentos em que me podes acolher, por fim, dentro de ti. Da tua alma, se é que ainda o consigo fazer. Do teu corpo, que ainda aprecio e desejo. Disfarço o saborear de um cigarro, e observo-te, enquanto vagueias. Perdes-te numa nuvem de fumo, temperada, na cozinha. Preparas com amor de mãe essa merenda para quem agora afagas os caracóis. Divides pilhas de roupa em montes imaginários que só tu sabes catalogar e tudo à tua volta parece brilhar e organizar-se. Aprecio-te o contorno do peito quando te inclinas para apanhar um brinquedo esquecido e cresce em mim a dor de não te ter. Mas ainda não tenho. Agora vens tu. Despes o vestido e, cada vez mais inquieto, vejo-te passar o creme pelo corpo delicado. Estremeço. Mas não te posso tocar. Ainda não. Estou há horas a desejar unir-me a ti, sentir que és só minha e continuo à espera. Neste momento, sou totalmente dependente de ti, e tu sabe-lo. Sabes que te desejo mais do que tudo, que não sou livre, que não aguento mais porque quero ter-te, agora, já. E eis que chega o momento em que reparas em mim e avanças, morna, como se tudo em ti estivesse programado, e eu aqui a morrer de desejo há tantas horas. Perco-me em ti. Como das outras vezes. E agora respiro fundo. Tenho o corpo saciado. Aninhas-te em mim e pareces outra. Vulnerável, meiga, sem regras nem ordem, minha. Só minha. Mas é agora que, enquanto tentas adormecer encolhida nos meus braços, já me sinto liberto de ti. Tenho o corpo tranquilo e a alma a fervilhar. Deixo-te adormecida, delicada e já tão apaixonada por mim, sob a alvura dos lençóis, e corro a espreitar a janela e as mil luzes da noite que se acendem lá fora. Afinal, desencontrámo-nos. Sinto-me como que numa prisão. Agora que és minha, já não te quero ter. Já não te desejo mais. Terei algum dia coragem de desatar este nó que demos juntos numa vida sem sentido? Num impulso incontrolável, visto-me, agarro o casaco e desço. Não sei mais quem sou eu, quem és tu, quem somos nós. Apanho o vento frio no rosto que me gela e já não penso em ti. Só quero perder-me na noite escura.

Carlos, indo e vindo de Julieta.

3 comentários:

Nuno Brito disse...

texto que reflecte sobre o desejo e a perca dele - gostei muito é um bom exercício de reflexão

raquel patriarca disse...

bonito. concordo com o nuno, passamos da ternura ao desencanto e é perturbante.
R

Ana Luísa Amaral disse...

a meu ver, texto muito, muito bem conseguido! saliento a originalidade do título. responde totalmente ao que era esperado do exercício.