segunda-feira, 24 de março de 2014

Um poema de Natércia Freire

imagem daqui

Vem, como dantes!
Livra-me do peso
Das palavras que exigem
Seu objecto.

Da música, ordenando
Um som concreto.

Dos sentimentos coesos
Com a morada.

Desmancha
Com teus dedos
De um cortante cristal
De ágeis segredos
A ligação do corpo
Com os seus medos
De morrer sem memória,
Solitário.

Com tua treva e luz
Tumultuosos
Desfaz e faz
Os sonhos e as cousas
Do Tempo
Eterno em seu itinerário.

Mesmo na solidão
De ruas longas
Quando os vivos e os mortos
São só sombras
E eu sou apenas
Rectas de um degrau…

Tu podes
Como um deus
Combalido e amargurado
Ao direito negado
Abrir no Espaço
Um som de sementeiras

Erguer no Espaço
Os aquedutos de oiro,
Esconder amigos falsos
Como um grande tesoiro.

E propor, como aos sinos,
Uma infinda ousadia
De invisíveis destinos,
Esses, que eu espero e vivo
E respiro, mortal.

Natércia Freire in Obra poética, vol. II lido aqui

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Correntes d'Escritas 2014


 Isabel Pires de Lima, Ana Luísa Amaral e Golgona Anghel
Revista em homenagem a Maria Teresa Horta
 
José Almeida da Silva
 Manuel Jorge Marmelo prémio Correntes d'Escritas 2014





Não é para nos gabar, ou se calhar é, mas O nosso MAR que PARECE AZEITE esteve presente nas Correntes d'Escritas, que decorreu na Póvoa de Varzim - esse maravilhoso buraco do mundo - entre os dias 19 e 22 de Fevereiro.
Antes de mais, estivemos presentes na pessoa da nossa mentora, a poetisa Ana Luísa Amaral que, apesar da enorme constipação que levou consigo, fez duas magníficas intervenções. A primeira sobre Maria Teresa Horta, homenageada nesta edição das Correntes, e a segunda, na Mesa 4 com o tema “De correntes e cont(r)a-correntes se faz a Poesia”.
Foi por esta altura que ouvi a Ana Luísa dizer o nosso nome, depois de afirmar que a poesia se move em espaços que não podem ser controlados nem confinados, que escapam sempre à lógica habitual da linguagem e da vida biográfica, e que a poesia é verdade, no sentido de estar aberta para o ser, (e estou a citar mais ou menos livremente que é difícil tomar notas quando a cabeça só está importada em escutar e perder-se no que escuta), foi por essa altura, contava eu, que a Ana Luísa falou em e nós. Por sermos elos de uma corrente de pessoas presas umas às outras, sem razão nem lógica a não ser por essa outra corrente que é a poesia.
A correnteza dO MAR que PARECE AZEITE já arrasta muita gente e agradece a todos e, sobretudo, à Ansa Luísa que, sem razão nem lógica, nos reuniu e mantem juntos.

Raquel Patriarca
vinteequatro.fevereiro.doismilecatorze

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Foi no mar que aprendi - um poema de Sophia





Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela
Ao olhar sem fim o sucessivo
Inchar e desabar da vaga
A bela curva luzidia do seu dorso
O longo espraiar das mãos de espuma

Por isso nos museus da Grécia antiga
Olhando estátuas frisos e colunas
Sempre me aclaro mais leve e mais viva
E respiro melhor como na praia


Sophia de Mello Breyner Andresen, O Búzio de Cós e outros poemas, Lisboa, Caminho, 1998.
lido aqui

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

É por ti que escrevo - um poema de António Ramos Rosa

PicassoFrancoiseGilot
Pablo Picasso (imagem daqui)
É por ti que escrevo que não és musa nem deusa 
mas a mulher do meu horizonte 
na imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia 
Por ti desejo o sossego oval 
em que possas identificar-te na limpidez de um centro 
em que a felicidade se revele como um jardim branco 
onde reconheças a dália da tua identidade azul 
É porque amo a cálida formosura do teu torso 
a latitude pura da tua fronte 
o teu olhar de água iluminada 
o teu sorriso solar 
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo 
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis 
para a oferenda do meu sangue inquieto 
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol 
que quer resplandecer em largas planícies 
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso 

António Ramos Rosa, in 'O Teu Rosto' (lido aqui)

domingo, 22 de dezembro de 2013

História Antiga



Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.

Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga


terça-feira, 26 de novembro de 2013

You are welcome to elsinore - Mário Cesariny (9 Agosto 1923 - 26 Novembro 2006)

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte      violar-nos     tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

                 Mário Cesariny, in Pena Capital

  (Lisboa, 9 de Agosto de 1923 - 26 de Novembro de 2006)

terça-feira, 19 de novembro de 2013

existem dois mil livros

Shakespeare and Company Bookstore, Paris, France.
imagem daqui

chegou  a saudade dos violinos com a quebra de luz na janela.
o escuro invade a sala, o computador e a cadeira ocupada;
uma penumbra que se abre -
onde andas borboleta de mil folhas?
onde andas estrela cintilante de tantos dias e tantas noites?
porque parou a luz agora, neste instante?
arrefecem os pés com o inverno à solta, o frio não voa

e existem dois mil livros que nos chamam pelos nomes  -

josé ferreira    19 novembro 2011

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Não posso adiar o amor - Um poema de António Ramos Rosa

. 
imagem daqui

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa,  Matéria de Amor, Presença, 1985

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O Meu Soneto - um poema de Florbela Espanca

imagem daqui

Em atitudes e em ritmos fleumáticos,
Erguendo as mãos em gestos recolhidos,
Todos brocados fúlgidos, hieráticos,
Em ti andam bailando os meus sentidos...

E os meus olhos serenos, enigmáticos
Meninos que na estrada andam perdidos,
Dolorosos, tristíssimos, extáticos,
São letras de poemas nunca lidos...

As magnólias abertas dos meus dedos
São mistérios, são filtros, são enredos
Que pecados d´amor trazem de rastros...

E a minha boca, a rútila manhã,
Na Via Láctea, lírica, pagã,
A rir desfolha as pétalas dos astros!..

Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas" lido aqui

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

o mar como a poesia

imagem daqui


sabes,
acordei com o som de ondas enroladas num colar branco
e um aroma verde de limos e algas,  a maresia –

o mar tem destas coisas, toca-nos pelo olhar e pelo som
pela imensidão
pela linha definida que junta o azul
pelo segredo que se esconde na viagem dos peixes
pela quilha que avança, no movimento dos barcos
 e no voo planado de gaivotas pelo ar –

o mar tem destas coisas, sublima, da terra ao céu
como em Turner
entre o naufrágio e o sublime, ou determina 
o dia seguinte
entre o crepúsculo laranja que despede o dia
 e o silêncio das estrelas que nos olham de cima  –

o mar tem destas coisas, liga
está para além da rotação dos astros
da cultura dos livros
o mar é o espelho de Olimpo mesmo que não exista –

 no descer  das pálpebras, escutam-se os búzios, e imagina-se–

o mar tem destas coisas, como a poesia
uma emergência que não se domina, uma realidade e uma sina –

sabes,
acordei com o ombro quieto e o teu rosto paralelo
mas não despertes, peço-te
queria colocar-te um colar branco de espuma
soletrar-te o mar e entregar-te o brilho  de uma pérola original –
a tua mão é uma concha aberta aos primeiros raios de sol.
permanece -

lá fora, as ondas continuam enroladas –

josé ferreira 27 de agosto 2013

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Soneto de Vinicius para Neruda e e um samba para Vinicius


Soneto de homenagem a Pablo Neruda

Quantos caminhos não fizemos juntos
Neruda, meu irmão, meu companheiro...
Mas este encontro súbito, entre muitos
Não foi ele o mais belo e verdadeiro?

Canto maior, canto menor - dois cantos
Fazem-se agora ouvir sob o Cruzeiro
E em seu recesso as cóleras e os prantos
Do homem chileno e do homem brasileiro

E o seu amor - o amor que hoje encontramos...
Por isso, ao se tocarem nossos ramos
celebro-te ainda além, Cantor Geral

Porque como eu, bicho pesado, voas
mas mais e melhor do céu entoas
teu furioso material!

Vinicius de Moraes ( 1960 )

sexta-feira, 26 de julho de 2013

"Em seu entender o poeta..." por David Mourão


imagem daqui

                   XLI

Em seu entender, o poeta nunca
aprende; nem ensina. Limita-se
a apreender; e a ficar apreensivo
ou a superar a apreensão

David Mourão Ferreira, Jogo de Espelhos, Presença