quarta-feira, 25 de abril de 2012
Liberdade
Quando a liberdade se transforma em voz
Surge um poema ou um segredo
Quando a liberdade se transmuta em gesto
Apaga o medo
Quando a liberdade sopra um pensamento
Nasce uma canção ou momento.
Trago versos de embalar a passear
Para serem livres como a chuva
Trago livros gastos de encantar
Para contarem histórias às janelas.
Quando a liberdade faz magia
Tira da cartola tantos sonhos
Cria ilusões e mil sorrisos
Que alimentam vidas tão concretas
Trago a liberdade nos meus braços
Entrego-ta inteira e recomeças.
terça-feira, 24 de abril de 2012
a carta que te escrevo ( VIII )
escrevo-te esta carta para que a guardes
dentro de um cofre de paredes invisíveis
para que mais ninguém a saiba viva e sempre perto de ti
para que seja como uma alma feminina, sensível
para que a possas tocar sem receio e lembrar.
vou-te contar, começa assim:
hoje li palavras de uma peça antiga, de romantismo em desuso
porque manda o mundo que sejamos duros como peças de
computador
e micros nos sentimentos, para olharmos o amor como volátil e solúvel
como um ar de montanha, um nevoeiro ou um tropel imediato
que devemos aceitar como passageiro, um intervalo de nuvens
e depois aceitar de forma fácil como um papel amarrotado
na pressa telúrica e animal –
porque não há intensidades e forças que nos cresçam nos pés
e que durem para sempre?
porque não há olhos siderados e braços sempre encostados
porque não se acredita nas possibilidades da fogueira
de um interminável fogo, nos olhos transparentes como água
e que durem para sempre?
porque não se acredita no amor e na proximidade das cartas?
porque não há sempre as noites sossegadas num círculo único
como as libélulas que desenham corações inteiros –
não que seja o nosso caso, o nosso pensar. falámos da
magnólia
da íris, dos aromas inconfessáveis de jasmins e jacintos d’água
e são coisas de cristal, coisas de coisas que não se podem
partir
coisas que não se
esquecem mais –
queria adormecer por cima do teu ombro
com os braços à roda do teu corpo, da coluna das costas
como se fôssemos uma única
tábua
à deriva e sem medo, na imensidão do mar –
haveriam de chegar manhãs com a curiosidade das gaivotas
e noites forradas de estrelas
a lua seria uma página escrita, uma lista amovível e interminável
das palavras que diríamos, iluminadas, insaciáveis –
sempre que me transformo em tinta fluida
corro como um rio de letras sobre a folha branca, passam as
horas, todas as horas
e poderia crescer-me a barba antes de que me canse e encolha
os dedos
e pouse a caneta como um barco vazio e esgotado, adornado e
preso
na âncora pesada, perto da praia, perto do cais, no ninho das tuas asas –
quando te escrevo é como se suspendesse o tempo e nada mais
á volta
é construir-te em todas as tuas formas; a curva do pescoço,
o sorriso no movimento dos olhos,
as mão sobre o meu rosto num triângulo perigoso
que me leve os lábios, que me leve os lábios
infiltrados no teu
gosto –
quando te escrevo construo-te perfeitamente e sofro
e caiem-me lágrimas vermelhas, um crepúsculo medonho
na noite que se estende
antes do sono, antes do sonho –
são altas horas e ouço
músicas de jazz, um vício de swing
uma dança de corpos –
passam filmes em grandes rodas, películas Kodak e Eastman,
câmaras claras –
desculpa-me. inflama-se a
noite. abraço-te na sombra
e embalo-te nos ombros como se houvesse ondas
e sinto o teu cheiro, a pele transpira um pouco, e depois
cala-se.
a tua respiração avança como uma neblina.
sinto o teu sossego, sinto que estás tranquila.
as ondas tornam-se miúdas e transformam-se num espelho
parado
uma estrada branca. a tua boca está fechada e a minha
caminha
numa voz interminável, como o ar que respiras –
escrevo-te esta carta sem data e sem número
para que não termine, para que sossegue todos os teus segundos
para que seja uma cítara de um romantismo antigo
para que te diga que não és de ninguém e és única e que te
admiro
para que te diga que podes ser lava de vulcão ou um tecido
de linho
que podes ser humana, fada, sereia ou ninfa
em todos os meus poemas, porque existes e te aceito de todas
as formas
na forma como me transformas numa marionete de belos
sentidos
e porque o teu rosto é bonito e sou escravo
escravo dos teus olhos, escravo do teu sorriso –
sei que respiras, uma e duas, uma e duas e três vezes
com os pulmões a crescerem e a pousarem em lugares de desejo
e transpiro um pouco, agora mesmo que estás longe,
adormecida –
desejo-te uma música de jazz, uma big band e uma voz de Diana.
um Stan Getz numa música de samba, swing and low
e que sempre que o ruído aconteça coloques as duas mãos em concha
por debaixo das faces na pele do rosto
para que se liberte uma pérola de sono, a que te envio
nesta carta de palavras mansas e nesta carta de palavras de
fogo
nesta carta que te escrevo
para que de novo sossegues, para que de novo adormeças -
recebe a infinidade da minha carícia, de mão inteira, de dedos grandes
adormeço com os olhos nas estrelas -
beijo-te muito -
segunda-feira, 23 de abril de 2012
Não sei como dizer-te
Henri Matisse
Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima,
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes caem no meio do tempo,
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.
Herberto Helder
domingo, 22 de abril de 2012
a carta que te escrevo ( VII )
escrevo-te esta carta para que a guardes
palavras de poema e setas de versos, acesos
sensíveis e de olhos abertos pelas costas da manhã
vou-te contar, começa assim:
se me olhasses neste preciso momento seria uma folha singular
de linhas ainda desertas e palavras por encontrar –
se me olhasses neste preciso momento seria uma caneta na mão
uma mão à espera das letras que se acumulam nos braços
e que antes de escrever, pousa um pouco, para pensar devagar
para escolher o deslize certo da tinta que te possa tocar no ombro
na face, à volta do rosto, nos cantos dos lábios -
e um grande desejo
que te possa adormecer numa concha de mar e num açúcar de sonhos
com um pequeno fragmento de raiz de gengibre
que queime um pouco e se transforme, num remédio bom –
escrevo-te esta carta para que a guardes
quando as palavras se abrem de uma forma cada vez mais clara
querendo habitar , sempre, nesse lado esquerdo, sempre, nesse lado esquerdo
sempre de dias amarelos, de pólen sobre as asas
junto de jardins, junto de flores, junto de outros lugares –
sabes que às vezes deixo de ver a mão, a caneta , a linha vazia e branca
e vejo círculos
círculos, uma girândola ininterrupta, girando com muita força
na circunferência dos olhos, e doem-me muito as luzes
luzes de sonhos, luzes iluminadas nos nossos nomes
na ausência imerecida de não caminharmos juntos –
círculos, círculos, e vivemos dentro dos sonhos reflectidos
na surpresa
como se corrêssemos á volta de um tronco, e de repente um parasse
e invertesse o sentido para nos tomar nos braços –
a surpresa
e surpreende, surpreende e sabe bem, imensamente, esse momento
ainda de batimento acelerado mas de sossego -
o sossego, a paragem, o ter o corpo encostado
o momento aconselhado para ouvir os pássaros e esquecer
esquecer a desordem dos espaços, das praças
a sólida frontaria de edifícios de cartão, roídos e em ruínas
no superficial de não serem essenciais, nem de importância acrescida
para esse abraço sossegado
por debaixo das árvores –
sossego, um sossego de búzio e de mar –
muitos falam das cidades derretidas nas palavras fortes
em rios de carmim a descer montanhas e a invadir os pneus dos carros
de um apocalipse mortal e bonecos de metal que pensam com parafusos
em circuitos nano e em óleos fundamentais, um quadro sem o belo
de universos ainda mais desregulados
na ordem do cronómetro que tão certo marca o tempo e escreve
escreve acertadamente
horas de escrever e horas de acordar –
não são esses os dias de que te falo nesta carta
nem nunca me ouvirás delirar pelos buracos negros, pelos dias apagados
não são esses os desertos que procuro encontrar
o meu desejo é a onda, sim , a onda e as ondas do mar
uma febre de paisagens quando o crepúsculo arde
as nuvens na frente dos olhos com os céus parados
e escutá-las
na semelhança de por vezes serem brancas e por vezes verterem águas
mas sem nunca esquecer o belo
o ombro, um cuidado, um carinho de almofada
e a onda, e as ondas do mar –
elevo por vezes as palavras nesta espuma branca que abarca o areal
e não quero falar alto, não te quero acordar
nem quero que alteres o sono
um sono smooth de jazz, de jazz, um embalo, sim, um embalo
uma canção de embalar
para que também os meus olhos se fechem
devagar
na lentidão de versos soltos, devagar
na percepção de os dizermos juntos
para adormecer, para acordar
devagar
para adormecer, para acordar
devagar –
estou quente, muito quente, cheio de febre de lugares, com os olhos trémulos de pressa
uma pressa de adormecer
vejo na girândola uma gôndola
uma gôndola parada numa estrada de cais, aguarda
vejo claramente Veneza
parámos dentro de um bar...
escrevo-te esta carta, a nº 7, para que a guardes
para que atravesse o tempo
como um grande silêncio num fim dum poema
quando as palavras nos enchem tanto que não temos mais espaço
e calamos, e calamos tanto
e devíamos falar, mas sonhamos –
sinto uma maré vaza dentro dos meus olhos
e uma fuga para dentro, sinto-me adormecer
afasto os últimos arbustos para te ver chegar –
adormece,sempre, adormece em sossego
envio-te os meus braços vestidos de vento morno
um sopro de versos doces
e milhares de anjos que protejam o teu sono –
e beijo-te
beijo-te muito, boa noite –
palavras de poema e setas de versos, acesos
sensíveis e de olhos abertos pelas costas da manhã
vou-te contar, começa assim:
se me olhasses neste preciso momento seria uma folha singular
de linhas ainda desertas e palavras por encontrar –
se me olhasses neste preciso momento seria uma caneta na mão
uma mão à espera das letras que se acumulam nos braços
e que antes de escrever, pousa um pouco, para pensar devagar
para escolher o deslize certo da tinta que te possa tocar no ombro
na face, à volta do rosto, nos cantos dos lábios -
e um grande desejo
que te possa adormecer numa concha de mar e num açúcar de sonhos
com um pequeno fragmento de raiz de gengibre
que queime um pouco e se transforme, num remédio bom –
escrevo-te esta carta para que a guardes
quando as palavras se abrem de uma forma cada vez mais clara
querendo habitar , sempre, nesse lado esquerdo, sempre, nesse lado esquerdo
sempre de dias amarelos, de pólen sobre as asas
junto de jardins, junto de flores, junto de outros lugares –
sabes que às vezes deixo de ver a mão, a caneta , a linha vazia e branca
e vejo círculos
círculos, uma girândola ininterrupta, girando com muita força
na circunferência dos olhos, e doem-me muito as luzes
luzes de sonhos, luzes iluminadas nos nossos nomes
na ausência imerecida de não caminharmos juntos –
círculos, círculos, e vivemos dentro dos sonhos reflectidos
na surpresa
como se corrêssemos á volta de um tronco, e de repente um parasse
e invertesse o sentido para nos tomar nos braços –
a surpresa
e surpreende, surpreende e sabe bem, imensamente, esse momento
ainda de batimento acelerado mas de sossego -
o sossego, a paragem, o ter o corpo encostado
o momento aconselhado para ouvir os pássaros e esquecer
esquecer a desordem dos espaços, das praças
a sólida frontaria de edifícios de cartão, roídos e em ruínas
no superficial de não serem essenciais, nem de importância acrescida
para esse abraço sossegado
por debaixo das árvores –
sossego, um sossego de búzio e de mar –
muitos falam das cidades derretidas nas palavras fortes
em rios de carmim a descer montanhas e a invadir os pneus dos carros
de um apocalipse mortal e bonecos de metal que pensam com parafusos
em circuitos nano e em óleos fundamentais, um quadro sem o belo
de universos ainda mais desregulados
na ordem do cronómetro que tão certo marca o tempo e escreve
escreve acertadamente
horas de escrever e horas de acordar –
não são esses os dias de que te falo nesta carta
nem nunca me ouvirás delirar pelos buracos negros, pelos dias apagados
não são esses os desertos que procuro encontrar
o meu desejo é a onda, sim , a onda e as ondas do mar
uma febre de paisagens quando o crepúsculo arde
as nuvens na frente dos olhos com os céus parados
e escutá-las
na semelhança de por vezes serem brancas e por vezes verterem águas
mas sem nunca esquecer o belo
o ombro, um cuidado, um carinho de almofada
e a onda, e as ondas do mar –
elevo por vezes as palavras nesta espuma branca que abarca o areal
e não quero falar alto, não te quero acordar
nem quero que alteres o sono
um sono smooth de jazz, de jazz, um embalo, sim, um embalo
uma canção de embalar
para que também os meus olhos se fechem
devagar
na lentidão de versos soltos, devagar
na percepção de os dizermos juntos
para adormecer, para acordar
devagar
para adormecer, para acordar
devagar –
estou quente, muito quente, cheio de febre de lugares, com os olhos trémulos de pressa
uma pressa de adormecer
vejo na girândola uma gôndola
uma gôndola parada numa estrada de cais, aguarda
vejo claramente Veneza
parámos dentro de um bar...
escrevo-te esta carta, a nº 7, para que a guardes
para que atravesse o tempo
como um grande silêncio num fim dum poema
quando as palavras nos enchem tanto que não temos mais espaço
e calamos, e calamos tanto
e devíamos falar, mas sonhamos –
sinto uma maré vaza dentro dos meus olhos
e uma fuga para dentro, sinto-me adormecer
afasto os últimos arbustos para te ver chegar –
adormece,sempre, adormece em sossego
envio-te os meus braços vestidos de vento morno
um sopro de versos doces
e milhares de anjos que protejam o teu sono –
e beijo-te
beijo-te muito, boa noite –
sábado, 21 de abril de 2012
Estás preocupado com o Planeta!!! Vota!!! "Blanket made of blue"
A letra é da autoria de Ana Luísa Amaral segue o link e vota!!! http://videos.sapo.pt/0Gryzqh8ZhThaBaZ1bz0
sexta-feira, 20 de abril de 2012
o poema de Villa-Lobos e o meu poema sobre a mesma melodia
Bachianas Brasileiras No. 5
Heitor Villa Lobos
(Letra de poema cantado na ária que poucos conhecem e se torna quase imperceptível pelo som agudo da melodia. No vídeo surgem as palavras no andamento da voz bem como a cópia original da partitura, a data de apresentação, 1939, e a dedicatória a sua mulher de nome Arminda (Mindinha))
Tarde uma nuvem rósea lenta e transparente.
Sobre o espaço, sonhadora e bela!
Surge no infinito a lua docemente,
Enfeitando a tarde, qual meiga donzela
Que se apresta e a linda sonhadoramente,
Em anseios d'alma para ficar bela
Grita ao céu e a terra toda a Natureza!
Cala a passarada aos seus tristes queixumes
E reflete o mar toda a Sua riqueza...
Suave a luz da lua desperta agora
A cruel saudade que ri e chora!
Tarde uma nuvem rósea lenta e transparente
Sobre o espaço, sonhadora e bela!
Ruth Valadares Correa
Bachianas Melodias

José Ferreira
as bachianas melodias penetram o tecto vazio
as amplas raízes, de voz feminina -
as bachianas, de Villa-Lobos, nº 5
desfibrando terminologias
lianas finas, sentidos forasteiros
palpitando o socorro das clareiras
na vasta selva savânica
onde o dia escoa ao som de ruídos
que são mudos na noite das bachianas -
prudente juntar lenhas, pedaços de chama
na luz intermitente que afaste as feras
a fogueira num batimento pré-histórico
de lascas e chuvas de faíscas;
brasas,
uma luz emergente altiva de pirilampos
na luz escura de uma orquestra anómala de grilos;
esses músicos vadios em traje de gala
desconexos e perdidos num mar de arbustos
escondidos e apagados, gris-gris em silêncio,
sem existência
no som mágico de sopranos, os sustenidos, a voz feminina -
as bachianas, de Villa-Lobos, nº 5
sons de dança curvilínea
hipnose oscilante de sorrisos
vestido sem manchas de hienas
quietas, atentas
na clareza aguda das melodias -
as bachianas, de Villa-Lobos, nº 5
demovendo os olhos cansados, cercados de linhas roxas
nos braços nus de uma tempestade interna, soberana e límpida -
as bachianas melodias
o sossego encantado, um regaço de abandono
o busto da harpa dourada
crescendo nas cordas de celos
e de violinos, a voz feminina -
as bachianas, a nº 5, a que te dedico
suspenso nas asas da música
um sonho de iridium e platina, a química
e um voo oblíquo de pássaros
insustentáveis e dirigidos
na mistura azul, o desbravar de infinitos
o reconstruir de tecidos
como lençóis de linho, magoados de tantos anos
de linhas e linhas;
fios débeis, fios gastos, fios finos, fios belos
a voz feminina -
josé ferreira
(um poema revisto, inicialmente escrito em 2009)
quinta-feira, 19 de abril de 2012
a carta que te escrevo ( VI )

Escrevo-te esta carta para que a guardes
sem pressa, para que a mantenhas na mão e que a recomeces
como um umbrella, uma pequena protecção
um afecto, neste dia em que a chuva foi farta e o céu não acontece.
vou-te contar, começa assim:
a noite correu como um carro avariado no meio de uma auto-estrada
ninguém parou. As forças caíram-me dos braços e não surgiram os versos.
quando acordei tinham partido todos os autocarros, andei e andei.
três horas de sono e havia uma música de tambor em cima da cabeça
uma festa popular, uma batuta engasgada, uma nota só, pom, pom, pom –
mas bem sabes da minha natureza, a impossibilidade de uma zanga
um sorriso na adversidade, ensinado pelo tempo e pela existência de um sol.
refugiei-me numa tarde de quatro passos, desencontrados e em gargalhadas
brincando com as folhas bem dispostas, dando voltas num lampião –
lembras-te daquele senhor de boina verde, improvável como um meteorito de Londres
falava sozinho com os seus botões e tomava notas apressadas numa sebenta
com todas as letras em diagonal; uma distância rítmica de 30 cm e um certo balanço
o levantar da cabeça como se os prédios ou as nuvens ou o céu , fossem livros abertos
e as paredes páginas impressas de iluminações –
a distracção foi o tal attimo que te prendeu dentro dos meus braços
e foi assim porque queríamos, porque o senhor da boina verde, se existiu
foi para que existisse do mesmo modo a dança das tuas mãos
as ruas menos pálidas e aquele fogo parado a consumir-nos olhos
a juntar, uma, duas, três, três vezes os lábios –
mas escrevo-te, e ao escrever é como se pousasse de novo um gato nos meus ombros
subisse escadas como um papagaio e no fim esperasse pelo colo ou o sol, um raio de sol –
os teus cabelos, lembrei-me agora, como os tens hoje?
e a roupa, uma gabardine, um carapuço privilegiado na sombra do teu rosto?
e os sapatos, baixos, naquela forma delicada que descobre o pé ou antes uma meia-bota
acima do tornozelo, larga, ou mesmo uma sapatilha das que afastam a água
e confortam o pé, preparando uma corrida, um esconderijo de uma porta
quando a chuva aperta e em mil gotas se desfaz por todas as ruas desertas –
os parágrafos longos de letras e as ideias a escorrerem como uma torneira aberta
quando penso no teu colo a adormecer-me estes nervos aqui dentro
que me consomem, e com as mãos tapando-me as orelhas e os medos
na ternura de tornar quietos estes cabelos estremunhados pelas marcas da almofada –
és uma fada, bem sabes, uma fada única de milagres, nesta era do vazio, da desordem
da falta de oásis –
és uma fada, não cesses nunca a sedução, aquele lugar escrito no alto do inverno
sobrevivente, deslizante e forte como um vulcão, no alto do inverno
do descontentamento, da chuva que permanece mas não vence, não –
desculpa-me, fada, fada grande, fada boa e fada certa para ser mágica.
canso-te de novo, egoísta como um ovo, quando o que queria era ser-te onda
uma wave de som afagando o teu cabelo; colocar e tirar e colocar de novo
uma dália, uma dália branca, e pôr e retirar e guardar, e num jogo
de novo voar sobre o teu olhar para colocar de novo, a dália
a dália branca, para tirar e pôr de novo –
não estou ao teu lado e escrevo-te, mas vejo-te sorrir
e quando a roda dos teus olhos ganham uma ruga feliz, fico de cristal
tão sensível como um néctar de muitos anos, único,
feliz para as tempestades para os raios e para todos os males.
vejo-te sorrir –
descansa pois com os teus anjos fundamentais e sonha muito
sonha com uma seda de hermés ou um camisa longa de algodão
ou com a troca de uma t-shirt minha que te cubra e descubra
um pouco abaixo do umbigo num jogo de sedução
um storytelling, uma narrativa sussurrada ,sem sonos, de mãos nas mãos –
e não paro, desculpa, shhhh…, shhh…, para mim, para que descanses
e para que os teus olhos em Rem se movimentem com dream-on
a sonhar com um campo e flores e amoras e árvores de bolotas
com carapuças castanhas, ou mesmo romãs, que são vermelhas –
sonha muito, movimenta os olhos dentro das pálpebras como se fosse uma massagem
vou fazer o mesmo e quem sabe encontramo-nos no lado esquerdo, a mesma margem
ao mesmo tempo, no suspiro certo –
dorme, descansa, beijo-te muito –
quarta-feira, 18 de abril de 2012
Se ... - um poema de Ana Luísa Amaral

IV
Se tudo fosse só êxtase súbito,
o papel intocável e intacto,
como o meu espaço e tu entrando devagar,
as portas que te abri
abrindo para a luz
Se tudo fosse só papel de prendas,
laços e colorido,
a festa do meu espaço
- e de ti no meu espaço -
as coisas consonantes
Ana Luísa Amaral "Entre dois rios e outras noites", Campo de Letras, 2007
terça-feira, 17 de abril de 2012
Poesia
Com palavras no olhar
O poema lava o rosto
Contempla-se ao espelho
Vê rimas imperfeitas
Rugas pequenas de vida
Os olhos brilham de versos
Face ao reflexo de si
O poema interroga-se, procura
Dança no seu ritmo
Suspira nos silêncios
O poema está cansado
Todo ele é sono e sonho
Fala alto, decide cantar
O poema ri
Ri-se da sua dor
Olha a sua forma em mutação
Abraça o tempo que pára
E ecoa nos livros do tempo
Como uma eterna canção.
O poema lava o rosto
Contempla-se ao espelho
Vê rimas imperfeitas
Rugas pequenas de vida
Os olhos brilham de versos
Face ao reflexo de si
O poema interroga-se, procura
Dança no seu ritmo
Suspira nos silêncios
O poema está cansado
Todo ele é sono e sonho
Fala alto, decide cantar
O poema ri
Ri-se da sua dor
Olha a sua forma em mutação
Abraça o tempo que pára
E ecoa nos livros do tempo
Como uma eterna canção.
a carta que te escrevo (V)

escrevo-te esta carta para que a guardes
agora mesmo, que a respires no momento
como a essência de um aroma, um aroma azul
de lábios lentos percorrendo a testa.
vou contar-te, começa assim:
reparaste no vento invasor pelas primeiras horas do dia?
saí descalço, com o impulso de uma alma célere.
encontrei olhos desconhecidos e ruídos de carros,
solavancos nos passeios da avenida como se fossem margens
e rios secos invadidos de barcos estranhos
na chiadeira das borrachas –
o sol brilhava e desta forma abundavam os óculos escuros.
saí descalço, com a alma à mostra na melancolia do rosto
e o vento invasor a percorrer-me os bolsos
a descobrir as palavras amarrotadas, os poemas por dizer –
um dia gostaste de um que falava do algodão doce de uma feira de aldeia
uma outra vez de uma mota parada na porta de uma porta que se abre
uma noite gostaste de um sonho de ser peixe num meio de um aquário
uma outra de um rio silencioso, nocturno, de ouvidos de água,
para que todos os peixes saibam –
um dia falámos de livros por ler e escrever num cimo de um monte
olhando clareiras e gatos de cauda oscilante no ronronar de ralos de searas
um dia falámos de olhos na frente dos olhos sem nos tocarmos,
uma outra encostámos os rostos como se fôssemos duas luas que se encontravam,
com os lábios órfãos acendendo a noite, uma noite nos jardins do Palácio
subindo às árvores, imitando os pássaros –
um dia sonhámos nos olhares cruzados e os pés recuavam
naquela forma impossível de se encontrarem;
intermezzo, intervalo, um picollo espaço, um attimo
é assim que nos vejo no meio das palavras
suspensos no medo das verdades. linhas, linhas, somos linhas
linhas muito finas escorregando sobre o peso de chumbos
escorregando do alto dos rochedos para se esconderem no fundo mar –
poderão as algas unir-nos? reencontrar-nos? levar-nos ainda vestidos
para um deserto de uma praia, num universo de braços
para que as roupas se percam, náufragas, sem a preocupação do útil
e do sem sentido, em alguns minutos de eternidade?
ou então para sempre, depois dos primeiros passos
porque duvido dos sonetos da separação, há músicas que nos abrem
teclas de pianos que batem nas cordas
incessantes, como as cartas e os versos que te escrevo –
desculpa, sei que te cansas, que te aborreces destas lavas rápidas
demasiado líquidas, que vês improváveis, sem marcas sólidas, sem pés de estrada –
a noite seria de olhos sempre abertos se te soubesse triste -
se te cansas
deixa cair as pálpebras com estas palavras vulgares de alguém que te ama
– e é uma palavra tão pesada,
uma brasa e uma chama, a palavra que se junta numa outra palavra,
de tudo ou nada, esta de quem ama –
se te cansas
diz-me, sem qualquer receio, como um sussurro de ar que passa por um limoeiro: calaaa-te…
deixaaa-me dooormir … com o meu anjo da guaaarda….
escrevo-te esta carta para que a guardes
mas se o desejas, rasga-a em mil pedaços, em bocados de farinha, um pó que colapse
serei um silêncio parado sobre a tua alma,
inconhecível como uma lira suave, uma canção de embalar
um rosto de mãe se assim quiseres
para que adormeças sob o brilho de diademas
no maior dos sossegos
e em paz –
segunda-feira, 16 de abril de 2012
Metade do Mundo - um poema de Leonard Cohen
Todas as noites ela vinha ter comigo
Eu cozinhava para ela, servia-lhe chá
Ela tinha trinta e tal naquela altura
conseguira fazer algum dinheiro, vivera com homens
Deitávamo-nos para dar e receber
debaixo do mosquiteiro branco
E uma vez que nenhuma contagem começara
vivíamos mil anos num só
As velas ardiam, a lua descia
a colina polida, a cidade leitosa
transparente, sem peso, luminosa,
destapando-nos aos dois
naquele chão fundamental,
onde o amor é fortuito, desatado, desencarcerado
e do mundo perfeito se acha metade.
Leonard Cohen "O Livro do Desejo"
domingo, 15 de abril de 2012
o barco de vela vermelha

procurei um poema que pousasse certo na hora longa
na noite aberta que roda lenta como um relógio de pêndulo
num tica-tac de batimento por dentro do corpo –
não surgiu um espelho de letras e as costas cansadas ligaram-se nos dedos
uma frase, uma frase de um filme : “tenho para ti uma surpresa
sempre quiseste um barco de vela vermelha” –
era um barco pequeno de princípio de séc. como as fotografias de Doisneau
mas a cor naquelas velas altas
corria as águas e dirigia-se para o mar.
no interior do barco, dois vultos num espaço desenhado, exacto
deitados frente a frente e de lado. Os olhos supunham-se ligados
na hipnose e no silêncio, sem pressa, não diziam nada
davam braços, ela de vestido de rendas ele de camisa branca.
a câmara de plano picado seguia a cena
a cena de um barco de vela vermelha que vogava–
tenho as ideias pesadas e há palavras que guardo, uma ideia
uma ideia minha, de uma medida sem contraditório
por vezes um vislumbre, uma brisa e sinais
sinais no interior das estrelas e nas madrugadas quando se afastam
como um novelo nas almofadas das patas dos gatos, que se desenrola –
há palavras pesadas que caem por dentro
tão por dentro que por vezes julgo que caem num poço fundo, tão fundo de uma terra
e que tem iluminações de magma, a incandescência
um rebuliço de brasas –
apercebeste a hora do lince, dos sonhos e das quimeras
o debater da cegonha que tem um bico grande
o peso do elefante, a suavidade das passadas felinas –
cada um entende à luz do seu segredo as mãos nos cabelos
no rosto, no corpo, no meio de uma praça
na cinta e no ombro no meio de uma dança
um segredo que não tem chave e vive num cofre
um cofre que ninguém abre
como a explicação de ser aquele o dia da gravidade na maçã de Eva
ou o poder da impulsão em Arquimedes –
as madeiras de verniz brilhante sulcam as águas
os corpos permanecem deitados
em frente e de lado
a brisa e o vento embalam –
ouve-se a frase
“tenho para ti uma surpresa
sempre quiseste ter um barco de vela vermelha”
o barco segue com suavidade
a brisa e o vento embalam –
estou cansado como um girassol, branco como uma magnólia
os ombros são um guindaste no limite da noite
não adormeço mas doem-me os olhos –
a bicicleta deve ter um cadeado
deve estar presa a uma coluna na garagem
e chove, chove um pouco, dez graus de temperatura
não quero música
penso no barco –
sábado, 14 de abril de 2012
le velo du Printemps

Robert Doisneau "le velo du Printemps", 1948
a fotografia de um par, de tonalidades e não de cor
completa-se no olhar
escreve-se de símbolos na presença da velo
e lembra a mais antiga e mais conhecida de Doisneau –
seria muito opressivo se fosse directo e sem delicadeza, falar-te dela
a objectiva sobre o beijo no fim da guerra
falo antes da bicicleta e de um lugar muito diferente
nem sequer Paris, nem sequer o jardim das Tulherias
nem sequer Versalhes e uma Fête de Nuit com trajes de época –
o lugar pouco interessa; as pedras, as casas sem graça
um muro de argamassa, o presumível zinco de uma chapa –
apenas o sorriso marca, a mão apoiada na terra
o modelo de linhas e quadrados
o paralelismo de duas almas –
nos termos de um especialista, a fotografia
une características de gelatina e prata
uma probabilidade de morangos e de brilhos brancos
de espelhos e de mil palavras –
surpreende acreditarmos tanto na consequência e na continuidade
a transição de um primeiro passo –
naquele sorriso que marca
a falta de gesto e o encontro dos braços
é uma onda atrasada
na mão fechada
na vasta possibilidade –
a velo um símbolo
sabe tudo mas não diz nada –
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Quando o infinito não tem tempo
Onde o tempo se esconde nascem ondas
Que tecem segredos e memórias lentas
Não há pessoas na dobra dos poemas
Apenas luzes escondidas à espreita
Como amantes nos dilemas doces do amor.
Um outro espaço de saudade
(há nas horas a pressa da vida)
Nos poemas o tempo baloiça
Colhe flores e escreve cartas
(há um outro tempo na beleza)
o tempo da luz original
a aura acesa na escura folha branca
(há falta de tempo e de espaço na vida)
(nos poemas não).
Há luz transparente
Feita de sonhos e risos de crianças
Brilhante na escuridão do olhar
À espera do desdobrar dos versos em danças
Num leve berço de embalar.
Que tecem segredos e memórias lentas
Não há pessoas na dobra dos poemas
Apenas luzes escondidas à espreita
Como amantes nos dilemas doces do amor.
Um outro espaço de saudade
(há nas horas a pressa da vida)
Nos poemas o tempo baloiça
Colhe flores e escreve cartas
(há um outro tempo na beleza)
o tempo da luz original
a aura acesa na escura folha branca
(há falta de tempo e de espaço na vida)
(nos poemas não).
Há luz transparente
Feita de sonhos e risos de crianças
Brilhante na escuridão do olhar
À espera do desdobrar dos versos em danças
Num leve berço de embalar.
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