quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

tesouro intangível

estava uma aranha na parede
junto à esquina do postigo,
quem vem a descer as escadas do sobrado.
uma aranha enorme.
acto contínuo tirei o sapato e
esborrachei-a.

o bicho estava grávido
e um enxame de miniaturas de cabecinhas
com patas a mais
desceu a parede até ao soalho -
vagarosamente.
segui-o com o olhar
que se me foi encharcando de lágrimas
com sabor a pó e a culpa.

tu vieste saber de mim.
deste-me colo para eu chorar a vergonha
e perdoaste-me no fim.
raquel patriarca
vinte.julho.doismiledez




terça-feira, 18 de janeiro de 2011

ando descalça
não me lembro de o dizer
quase ninguém olha para
baixo, para cima
veriam não existir pretensão
sei nada

se apenas olhasse para espelho
as perguntas se perderiam
fugiria a surpresa
não dançaria

e ando

são muitos os poemas que começam por Sabes


Edward Weston




são muitos os poemas que começam por Sabes
num diálogo de inexistência, transcendentes de reflexividade
como se ali em frente ou caminhando, lado a lado.
são muitos os poemas que começam por Sabes
como letras desenhadas numa carta, um diálogo imperfeito
pois o corpo, o rosto, a linguagem dos lábios, uma mão suave
um recontar de linhas, uma sede de palmas
abertas, fechadas, sobre os dedos, por vezes apertadas
tão apertadas, como se únicas, ligadas.

são muitos os poemas que começam por Sabes
sem resposta, falando das árvores, sobre as folhas
o verde das folhas, sobre as raízes nos lugares de plâncton
sobre as raízes nos lugares de tudo, nos céus de nada
são muitos, sobre as aves de braços espetados como setas
uma de cada lado, setas de ponta quebrada
altas, sobre um mar oceânico, sem barcos, sem âncoras
livres, tão livres quanto as palavras.

são muitos os poemas que começam por Sabes
querendo adivinhar se usas um lenço azul, uma trança de lado
um Ipod, um moleskine, um diário personalizado
registando esse desviar de ponteiros, o seguir em frente
um tempo sem muito tempo para o importante, o quotidiano
como um marco do correio, recebendo, as minhas
as tuas, as minhas, as tuas cartas.

são muitos os poemas que começam por Sabes
nas ruas, nas salas, nos silêncios do quarto, um ruído abstracto
dentro, um terramoto sem escala, um aperto, último instante
em que coloco a folha, observo-a, a finalidade, a sua dança
a sua música, breve ou larga, um sopro, doce, aliciante
um rio, tocando as margens, perceptíveis como as borboletas
silenciosas, ar e águas, sem barragens.

são muitos os poemas que começam por Sabes
e não sei, não sei se os agarras, nem como os guardas
mas prometo, prometo, escrever sempre, sempre, difíceis, fáceis
na metáfora, de múltiplas formas, rimas, externas, internas
multiplicadas de mil lados, como os dias
as horas, a mudança branca e escura dos modos, noites
de noites, onde planam as ausências e os mistérios
um manto brilhante de estrelas, uma seda acesa
células de uma pele imensa onde circula o sangue
e as marcas dos versos nos lábios dos poemas -


Sabes -


José Ferreira 18 Jan 2010

sábado, 15 de janeiro de 2011

Lugares Comuns


André Kertész 1928

Entrei em Londres
num café manhoso (não é só entre nós
que há cafés manhosos, os ingleses também,
e eles até tiveram mais coisas, agora
é só a Escócia e parte da Irlanda e aquelas
ilhotazitas, mais adiante)


Entrei em Londres
num café manhoso, pior ainda que um nosso bar
de praia (isto é só para quem não sabe
fazer uma pequena ideia do que eles por lá têm), era
mesmo muito manhoso,
não é que fosse mal intencionado, era manhoso
na nossa gíria, muito cheio de tapumes e de cozinha
suja. Muito rasca.

Claro que os meus preconceitos todos
de mulher me vieram ao de cima, porque o café
só tinha homens a comer bacon e ovos e tomate
(se fosse em Portugal era sandes de queijo),
mas pensei: Estou em Londres, estou
sozinha, quero lá saber dos homens, os ingleses
até nem se metem como os nossos,
e por aí fora...

E lá entrei no café manhoso, de árvore
de plástico ao canto.
Foi só depois de entrar que vi uma mulher
sentada a ler uma coisa qualquer. E senti-me
mais forte, não sei porquê, mas senti-me mais forte.
Era uma tribo de vinte e três homens e ela sozinha e
depois eu

Lá pedi o café, que não era nada mau
para café manhoso como aquele e o homem
que me serviu disse: There you are, love.
Apeteceu-me responder: I’m not your bloody love ou
Go to hell ou qualquer coisa assim, mas depois
pensei: Já lhes está tão entranhado
nas culturas e a intenção não era má, e também
vou-me embora daqui a pouco, tenho avião
quero lá saber

E paguei o café, que não era nada mau,
e fiquei um bocado assim a olhar à minha volta
a ver a tribo toda a comer ovos e presunto
e depois vi as horas e pensei que o táxi
estava a chegar e eu tinha que sair.
E quando me ia levantar, a mulher sorriu
Como quem diz: That’s it

e olhou assim à sua volta para o presunto
e os ovos e os homens todos a comer
e eu senti-me mais forte, não sei porquê,
mas senti-me mais forte
e pensei que afinal não interessa Londres ou nós,
que em toda a parte
as mesmas coisas são

Ana Luísa Amaral,"Inversos", Dom Quixote 2010

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

nada sei


Edward Weston

nada sei sobre os segredos do teu mar
qual o tamanho das ondas que consideras perfeitas
mas admiro essa certeza nas palavras
um olhar magnífico no despontar das rosas

o belo e a poesia de mistérios -

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Coisas de luz antigas


Henri Rousseau" Mulher passeando numa floresta exótica" 1905


Aquele namorado que tinha
um nome bom: há quanto tempo foi?
A vida resvalante como gelo
e aquele namorado de nome bom
e férias, ficou perdido em luz,
mais de vinte anos.

Deu-me uma vez a mão
um beijo resvalante à hora de deitar
e na pensão. Mas tinha um nome bom.
falava de cinema e calçava de azul
e um bigode curtinho,
que escorregou aceso como gelo
no centro da pensão.

Rasguei as cartas dele
há quinze anos, em dia de gavetas
e de luz, e nem fotografia me ficou
de desarrumação. Mas tinha um nome bom,
falava de cinema e calçava de azul
e resvalou-me quente como gelo
à hora de deitar:

um namorado sem falar
de amor

(que a timidez maior
e o quarto dos meus pais
nessa pensão
no mesmo corredor)

Ana Luísa Amaral "Inversos" Ed. Dom Quixote 2010

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A Magnólia


Miguel Bagur 1989

A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária,e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.


Luiza Neto Jorge "O seu a seu tempo" Assírio & Alvim 2001

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Tento empurrar-te de cima do poema

Encontra mais artistas como Clara Ghimel em Música do Myspace


Clara Ghimel "Coisas de Partir" disco "Entremares"


Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.

Ana Luísa Amaral in "Coisas de Partir"

domingo, 9 de janeiro de 2011

Às vezes as coisas dentro de nós


Frida Kahlo "Autoretrato com colar de espinhos e colibri" 1940

(dedicado a Maria de Lourdes Pintasilgo)

O que nos chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante, ao ver
o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
o que não tem tamanho, mas está agora
engrandecido dentro do novo olhar.


Fiamma Hasse Pais Brandão "As Fábulas"

sábado, 8 de janeiro de 2011

O meu olhar é nítido como um girassol


Steve Mcurry


II

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar ...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...



Alberto Caeiro In O Guardador de Rebanhos

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

acreditar nas mitologias


Dante Rosseti " Vénus" 1868


não deveria dizer da forma mais crua
mas é verdade
como ter acordado, abandonado o pijama
e mergulhado na água morna.
é verdade como o barulho constante, líquido
a escorrer a pele molhada, a acumular um pouco
no sólido esmalte branco que contorna os pés
e a descer na indeterminação do ralo.
é verdade, é verdade
que quando se atenta no mais da dor, alegria ou amor
a insatisfação de um horizonte médio não completa
é como habitar um copo de água insípida
um sal perdido -

as lanças, as lanças, mais à frente, mais à frente
os trajectos constantes de fragmentos e mudanças
mudar sempre, mudar sempre
encontrar mais e mais caminho

e acreditar nas mitologias -

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

reticências


Amadeo Modigliani " Mulher de olhos azuis" 1900


reticências, as reticências, em intervalos por dizer.
repetidas nevralgias, desconstruções pequenas
nebulosidades de subsistência, círculos de possibilidades
em três mil salas, três mil salas -

outsiders sem horas, desviantes, desviados
nas cidades absorvidas sem remédio.
cura impossível e abstracta
com a proximidade do céu
ali tão longe, ali tão perto -

fechar os olhos e delirar, delirares, delirarmos
ardentes, ardentes num mar de símbolos
em três mil salas, três mil salas -

dentro da cabeça um fogo de artifício
e os teus olhos em círculos
de três mil chamas, três mil chamas
três mil chamas de paraísos -

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Emily


Annie Leibovitz

Fame is a bee
It has a song -
It has a sting -
Ah, too, it has a wing.


A fama é uma abelha.
Tem uma canção -
Tem um ferrão -
Ah, tem asa, também.

Emily Dickinson "Cem poemas" Relógio D'Água 2010 (Trad. Ana Luísa Amaral)

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Amor


Clarence J. Laughlin

Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.

Amor tão cheio de Amor,
Que sensível és…
Sensível e violento, apaixonado.
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!

Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e se enfurece
e logo recai na branda impotência.

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes
tanto grito e pena perdida…
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?

Irene Lisboa

sábado, 1 de janeiro de 2011

um melhor ano


Fim de ano na Madeira (retirado da internet)


o pinheiro era largo e manso
ocupava de verde um quarto da sala.
foi há um ano.

a contribuição luminosa de uma estrela
recolocava o mistério da sombra
enquanto decorria, rápida, a última contagem;
os segundo caíam gastos.
foi há um ano.

invadiram os tectos as rolhas de cortiça
borbulharam pelos copos os bagos vaporosos
e nos maiores ruídos de alegria
todos desejaram e desejam
guardar o ano velho como um livro já impresso
no sítio certo, da sua biblioteca -

e todos acreditam, bem lá no íntimo
mesmo que nublados pelo pessimismo

um melhor ano está para vir -