domingo, 4 de março de 2012

Nesta cadeira pálida


Fotografia retirada do The Guardian

Nesta cadeira pálida, livros cheios de folhas e um ruído de vento na janela;
Punhos de força, invisíveis, baques surdos -

Descreves os maus momentos e as repetições incessantes;
A obsessão das árvores, da lua, dos pássaros
Mas não atormentes os silêncios, os momentos parados sobre as asas da alma
Não será essa a faca nem a espada que corta os enigmas
De um castelo de torres agudas de onde saem morcegos
E pousam corvos nas noites mais escuras.
Não apoquentes os sonhos que estão mortos
E ergue a voz apenas pelos mais delinquentes
Aqueles que hão-de ser vivos

Os de raízes frágeis para serem grandes –

josé ferreira 4 Março 2012

A clara noite de verão - um poema de Fernando Pessoa




A clara noite de verão


Com penugem nos sentidos
De leve pousa e afaga, e não
Dorme mais

Novos, nos ensiraram a emoção,
Crescidos, aprendemos a verdade

Resultou

Débeis de mais para buscar o verdadeiro,
Frios de mais para encaixar o sentimento.

Fernando Pessoa
In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005

sexta-feira, 2 de março de 2012

Afogo no teu ombro - um poema de David Mourão Ferreira


Gabriel Rosseti 1880

Afogo no teu ombro
tudo o que não te digo
o pânico do sonho
o resplendor do risco

É de ti que me escondo
Em ti é que me afirmo
Antes de já ser ontem
sentir que estamos vivos


David Mourão Ferreira In O corpo iluminado

quando se sente a lua como um espaço aberto


Zhu Yiyong


quando se sente a lua como um espaço aberto
dentro das costelas flutuantes
sente-se a impropriedade do tempo –

as árvores estão sossegadas no passeio claro da luz de néon
afirmam linhas profundas , perpendiculares e cruzadas
onde se reunem os nossos pensamentos
como uma valsa de fevereiro de um modo diferente
que adia a chegada de um ombro
que adia o desejo de calar o nevoeiro –

o sorriso que guardo e as emoções dos violinos abrem o incêndio.
é seguro que ardo, uma ardência intensa, junto de uma janela muda
junto com os pés congelados
junto com os corpos resguardados –

um homem pensa e uma mulher pensa –

as extremidades de um soalho não são raízes na indisciplina das células
a ciência não explica a química humana quando se desconstrói a matéria
a metafísica envolve-se de uma leveza de vento e rodeia as células pré-rafaelitas
nómadas gigantes de sensibilidades que atravessam as distâncias –

somos seres líquidos e tangíveis num mar de memórias rarefeitas –

os dias são sempre novos e são sempre grandes
um manto de paraíso escreve-se de asas
de olhos nos olhos dos pássaros –

é obrigatório seguir-lhes os passos
quando pisam o ar como se fossem leves as calçadas –
é obrigatório apertar as mãos e alargá-las
respirar o sonho pelo nascer da madrugada –

é obrigatório que sossegues que adormeças os olhos
há uma lua aberta e um quarto de ondas brancas
descansa suavemente
não magoes as raízes dos cabelos e pousa o rosto nas penas da almofada
- a leveza, os pássaros.

perde o peso das realidades, perde as lágrimas
não temas a pulsação vermelha do sangue e do oxigénio
sente os versos e os poemas, são longos como a eternidade –

descansa, os sonhos falam
as palavras vestidas de silêncio são pesadas -

não se sentam nas cadeiras não abrem os braços –



josé ferreira 29 fevereiro 2012

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

ao coração da terra desce o luar

Women In Art from Philip Scott Johnson on Vimeo.




ao coração da terra desce o luar
pressinto as quilhas dos navios romperem a cinza da manhã
(escrevo um diário
fumo
bebo
aborreço-me)
atravesso o relâmpago esquecido na veia óssea da noite
reconheço o sítio onde os corpos já não se encontram
(estou sentado numa cadeira de lona
olho o mar
é tudo o que sei fazer
olhar o mar e não pensar)
tocámo-nos apesar do que violentamente ficou dito

agora só vens no veludo manchado dos sonhos
pérola mastigada na queimadura da boca
ou quando arrumo as fotografias surges inesperadamente
do fundo da gaveta com o perfume áspero da madeira

anoitece...o ar está impregnado de iodo
um fio de luz define o rosto contra a parede
a cal retém o sussurrar antigo dos corpos
e quando a manhã se aproxima da janela
a memória seca ou dorme para sempre

(a boca
talvez fosse a boca de A. surgindo
sobre a folha de papel
respirando)

ainda continuei a escrever durante alguns dias
sem grande rigor é certo...uma aranha movia-se nos vidros
a melancolia trepava ao cimo das árvores
assustando os insectos da folhagem e os pássaros
esperei o sono com suas pálpebras vegetais e a paixão
apareceu naquele rosto orvalhado abrindo-se enfim
à constelação doutro rosto sujo de tinta e de palavras




Al Berto in O Medo

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

eu nunca guardei rebanhos - um poema de Alberto Caeiro




I



Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes,
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predilecta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Aberto Caeiro "O Guardador de Rebanhos" In Poesia , Assírio & Alvim, ed. Fernando Cabral Martins, Richard Zenith, 2001

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A morte de madrugada




Muerto cayó Federico.
Antonio Machad
o

Uma certa madrugada
Eu por um caminho andava
Não sei bem se estava bêbado
Ou se tinha a morte n'alma
Não sei também se o caminho
Me perdia ou encaminhava
Só sei que a sede queimava-me
A boca desidratada.
Era uma terra estrangeira
Que me recordava algo
Com sua argila cor de sangue
E seu ar desesperado.
Lembro que havia uma estrela
Morrendo no céu vazio
De uma outra coisa me lembro:
... Un horizonte de perros
Ladra muy lejos del río...

De repente reconheço:
Eram campos de Granada!
Estava em terras de Espanha
Em sua terra ensangüentada
Por que estranha providência
Não sei... não sabia nada...
Só sei da nuvem de pó
Caminhando sobre a estrada
E um duro passo de marcha
Que em meu sentido avançava.

Como uma mancha de sangue
Abria-se a madrugada
Enquanto a estrela morria
Numa tremura de lágrima
Sobre as colinas vermelhas
Os galhos também choravam
Aumentando a fria angústia
Que de mim transverberava.

Era um grupo de soldados
Que pela estrada marchava
Trazendo fuzis ao ombro
E impiedade na cara
Entre eles andava um moço
De face morena e cálida
Cabelos soltos ao vento
Camisa desabotoada.
Diante de um velho muro
O tenente gritou: Alto!
E à frente conduz o moço
De fisionomia pálida.
Sem ser visto me aproximo
Daquela cena macabra
Ao tempo em que o pelotão
Se dispunha horizontal.

Súbito um raio de sol
Ao moço ilumina a face
E eu à boca levo as mãos
Para evitar que gritasse.
Era ele, era Federico
O poeta meu muito amado
A um muro de pedra seca
Colado, como um fantasma.
Chamei-o: Garcia Lorca!
Mas já não ouvia nada
O horror da morte imatura
Sobre a expressão estampada...
Mas que me via, me via
Porque em seus olhos havia
Uma luz mal-disfarçada.
Com o peito de dor rompido
Me quedei, paralisado
Enquanto os soldados miram
A cabeça delicada.

Assim vi a Federico
Entre dois canos de arma
A fitar-me estranhamente
Como querendo falar-me.
Hoje sei que teve medo
Diante do inesperado
E foi maior seu martírio
Do que a tortura da carne.
Hoje sei que teve medo
Mas sei que não foi covarde
Pela curiosa maneira
Com que de longe me olhava
Como quem me diz: a morte
É sempre desagradável
Mas antes morrer ciente
Do que viver enganado.

Atiraram-lhe na cara
Os vendilhões de sua pátria
Nos seus olhos andaluzes
Em sua boca de palavras.
Muerto cayó Federico
Sobre a terra de Granada
La tierra del inocente
No la tierra del culpable.
Nos olhos que tinha abertos
Numa infinita mirada
Em meio a flores de sangue
A expressão se conservava
Como a segredar-me: - A morte
É simples, de madrugada...

A palavra - um poema de Miguel Torga




S. Martinho da Anta, 13 de Abril de 1965


Falo da natureza.
E nas minhas palavras vou sentindo
A dureza das pedras,
A frescura das fontes,
O perfume das flores.
Digo, e tenho na voz
O mistério das coisas nomeadas.
Nem preciso de as ver.
Tanto as olhei,
Interroguei,
Analisei
E referi, outrora,
Que nos próprios sinais com que as marquei
As reconheço, agora.



Miguel Torga Diário X

sábado, 25 de fevereiro de 2012

a luz de Turner


Turner

a luz de Turner persegue a sombra das montanhas
e ilumina as areias como um embrião de luz
um lugar de gineceu, um lugar feminino, terno
fios de filigranas sobre os últimos dias de inverno
do mês mais pequeno, Fevereiro;
raios amarelos
de um ouro que se esconde e tarda uma noite inteira –

o azul é ténue, o sol é subtil e apreende-se, fecha-se no quadro de Turner.

agora é noite cerrada. há algum silêncio.
debruço-me na suavidade branca do teu rosto e rejeito todas as palavras rudes
porque não fazem parte, da natureza, do estado de alma
da aura que me sopra das aguarelas pousadas sobre o centro, o nosso centro
e inclino-me como um casco de pêndulo
ora ao lado esquerdo ora numa mistura de cabelos
junto às orelhas, do outro lado
segredando alguns versos, versos que invento
repetindo as ondas, as ondas como sempre
e apertando um pouco mais a noite
na linha aberta dos ombros
e na direcção mais sossegada do sonho
de corpos calados e quatro mãos brancas –


josé ferreira 24 fevereiro 2012

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Because



According to Lennon, "Because" was inspired by Ludwig van Beethoven's "Moonlight Sonata". "Yoko was playing Beethoven's 'Moonlight Sonata' on the piano ... I said, 'Can you play those chords backwards?', and wrote 'Because' around them. The lyrics speak for themselves ... No imagery, no obscure references." (fonte Wikipedia )



Porque se levantou a lua na máxima temperatura da noite
e o pensamento te envolve em braços de veludo e coloca a mão sobre os cabelos
e porque a lua te desfaz as rugas de distância e te compõe as sobrancelhas
como um décor de cinema; a maquilhagem, suavemente, dedos deslizando
pelos olhos, pelo rosto, pela linha perfeita dos lábios
e porque a Serenade se estende num piano de Beethoven
ecoando nas cordas como uma voz humana
e porque a Moonlight é branca e iluminada
um redondo recortado convidando o desaparecimento das sombras
e porque a lua não pertence a ninguém
e pousa no céu para ser vista por ambos
e porque afinal a força da lua é tanta que há asas e estrelas
que me levantam
que te levantam
e nos escondem na cor mais branca da noite
o maior sonho –

josé ferreira 23 fevereiro 2012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Vozes - Ana Luísa Amaral

a mulher do chapéu vermelho


Edward Munch


vejo-te como a mulher de chapéu vermelho junto a um fiorde da Noruega
impenetrável nas cores frias sem degelo
um fechamento de ausência
querendo-o, denunciado pelo desejo –
não sou o senhor do tempo nem os ouvidos do vento
não sei qual o lugar azul do vestido, a luminosidade seguinte -
as ondas sempre se elevam e descem num ritmo que acontece
uma determinação mais profunda ou mais de cima
desde o magma à nuvem à chuva.
qual a desconstrução de um novelo de pistas, provas, sinais?
talvez permaneça o labirinto
ou talvez se abra uma concha –


josé ferreira 23 fevereiro 2012

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Correntes d'escritas 2012



MESA 5
Dia 24, sexta-feira, 22h00 (Auditório Municipal)
Tema: A escrita é um investimento inesgotável no prazer
Participantes: Afonso Cruz, Ana Luísa Amaral, Júlio Magalhães, Manuel Moya, Rui Zink e Valter Hugo Mãe

ver todo o programa aqui

if - a poem by e.e. cummings




If freckles were lovely, and day was night,
And measles were nice and a lie warn't a lie,
Life would be delight,--
But things couldn't go right
For in such a sad plight
I wouldn't be I.

If earth was heaven and now was hence,
And past was present, and false was true,
There might be some sense
But I'd be in suspense
For on such a pretense
You wouldn't be you.

If fear was plucky, and globes were square,
And dirt was cleanly and tears were glee
Things would seem fair,--
Yet they'd all despair,
For if here was there
We wouldn't be we.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

ophelia


Jonh Everett Millais Ophelia 1851

um dia procuro-te em todos os lugares
até encontrar os teus olhos brilhantes
shinning star.
pousarei sobre o calor da tua testa a minha mão fresca
para que feches os olhos um momento
e não sofras essa chama de tempo, essa labareda permanente –

levantarei todos os tapetes de relva
e mesmo nas profundezas mais escuras da terra
hei-de levar-te a luz e o sal da diferença
para que cresças como uma semente sem medo

e com uma mão no ombro –

josé ferreira 21 fevereiro 2012