quinta-feira, 27 de outubro de 2011
Sinfonia Fantástica, de Berlioz
Programas, poetas, sonhos de ópio,
pastores pipilando, e as guilhotinas,
e o sábat das bruxas ao som do Dies Irae,
comédia melancólica e sarcástica
de romantismo sentimental e crítico
desesperadamente triste de si mesmo,
na solidão do espírito perdido
num mundo burguês sem fantasia,
sem mais maravilhoso que o da infâmia,
sem mais espanto que o da hipocrisia.
Tudo isto com bem pouca reserva,
bastante vulgaridade, muito efeito fácil,
e um colorido por vezes novo rico
como os cristais e as pratas dos barões banqueiros.
Mas é música, violentamente
música. Agressivamente
música. Os ritmos
de cadência, colorido, timbres,
estilos, tons - é tudo música.
Da solidão romântica imensamente pública - mas solidão.
Da amargura romântica tremendamente amena - mas uma amargura.
Da raiva de não ser o mundo uma obra de arte,
um indivíduo, a glória, a liberdade.
Música pungente, irónica, raivosa,
ainda saudosa das doçuras clássicas
com deuses imortais (de pedra branca).
Se não sentimos isto, porque a grosseria
cresceu à escala cósmica, nenhuma culpa
acaso cabe a tais visões sonoras,
em que a tristeza sabe imaginar-se
tão puramente um canto de oboé,
com percussões pontuando o mundo a que assistimos,
ao som dos arcos e metais:
grandeza caricata deste inferno amável
(cheio de róseas profundezas - e assassinos).
Jorge de Sena
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
muito lhe dizia

fotografia retirada daqui
muito lhe dizia a chuva que ensopava os pés
e migrava até à alma: disseram que era mentira
assim um sol que não existia, mentira pura,
um poço tão fundo de que não se via o fim,
só de penumbra,
mentira -
a noite perdia portanto aquela lua.
agora lia nas letras do jornal as horas do pôr-do-sol
e no despertador metálico ligava uma campainha antiga,
e tapava os olhos,
e via tudo escuro, como se fosse a própria noite -
mentira, disseram, mentira pura -
antes de existir -
josé ferreira 25 Outubro 2011
terça-feira, 25 de outubro de 2011
Sem outro intuito
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava
Erik Satie para piano - um poema de Jorge de Sena
As notas vêm sós por harmonias
como de escalas que se cruzam
em sequências descontínuas de figuras
singelamente acorde surpreendido
de se encontrar num instante pensativo.
São como vagas vindo no perlado
tão diminutas, solitárias mas ligadas
de pura sucessão ocasional
que se rebusca em cálculos descaso
contrário ao hábito de estarem escritas,
ou juntas ou seguidas. Mas é como
se desde sempre este hesitante fluido
houvera de estar pronto a ser pensado
e a soar tranquilo em espaço diminuto
não por ser breve mas por ser silêncio
de uma memória em que a surpresa ecoa
lembranças perpassantes de quanto não foi,
não existiu, não foi vivido e entanto
pungente fere as águas espelhadas
onde de imagens passam vultos claros
em túnicas voando transparentes
e muito curtas sobre membros duros
que dançam devagar a dança juvenil
num salpicar de pés do tempo antigo.
Jorge de Sena
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
a carta que te escrevi enquanto dormias

Klimt
de quem a responsabilidade da tua altura
branca, nua
iludindo a escuridão nesse manto de estrelas,
enclausurando ternuras nos olhos adormecidos
nos cabelos largos, nos braços cruzados
de quem a responsabilidade
desta distância, deste silêncio, dentro do quarto
na frente da lua, soltando em pequenas chamas o ténue fumo
para que se confunda com as cores da bruma;
Setembro, Outubro -
de quem a responsabilidade
do desassossego cinzento, carregando no peito
a incompletude dos espelhos
no correr do rio de indícios únicos
de quem a responsabilidade de ser tão escuro
e na pequena mesa o copo estar quase todo de vidro
após o cair de migalhas, as pratas enroladas
e os dentes a falar sozinhos
de quem a responsabilidade de dormires
de não dormirmos, plenos de seiva e sem raízes
de quem a culpa desta sensação da falta de trevos
quando as noites se enchem de chuva e se tornam frias
na madrugada que caminha nos teus ombros
quando acordares
não te escondas nos bicos dos braços
enquanto lês os livros e os poemas
cessa de ser sempre a silhueta
no meio das sombras e mais sombras e mais sombras
não percas a luz dos dias
aceita a oferta das tulipas, dos gladíolos, dos cravos brancos
dos jacintos húmidos, das hortênsias, azuis e rosas ao mesmo tempo.
recusa o cronómetro contínuo, a rotina prevista, o dong do sino
e não te iludas nas mentiras, no pó dos anos
que muitos gritam aos ouvidos; evidências sem prova, insensíveis
de quem a responsabilidade das naves sem terras nem paraísos
em eternas galáxias de buracos fundos, sem âncoras, sem rumos
e o porquê das janelas abertas por onde entram os corvos, o piar nocturno
o voo rápido dos morcegos nas luzes cegas dos candeeiros
o porquê de ser Outono
e haver árvores despidas, e almas tristes
caídas sobre os paralelos luzidios, como gotas
gotas de superfície, na superfície
perdendo as formas, transformando-se em linhas
de olhos indomados pelo sono, no silêncio rectilíneo
como corpos taciturnos, sem lábios, sem mundos -
de quem a responsabilidade de não morarmos na mesma rua
no mesmo quarto, no mesmo lume
e não fecharmos os braços
crescendo em minutos morrendo em segundos -
José Ferreira 23 de Outubro de 2011
sábado, 22 de outubro de 2011
Tenho mil irmãs para amar sem palavras - José Luís Peixoto por Raquel Patriarca
Tenho mil irmãs para amar sem palavras.
Tenho aquela irmã que caminha encostada
às paredes e sem voz, tenho aquela irmã de
esperança, tenho aquela irmã que desfaz o
rosto quando chora. Tenho irmãs cobertas
pelo mármore de estátuas, reflectidas pela
água dos lagos. Tenho irmãs espalhadas por
jardins. Tenho mil irmãs que nasceram
antes de mim para que, quando eu nascesse,
tivesse uma cama de veludo. Agradeço com
amor a cada uma das minhas irmãs. São mil
e cada uma tem um rosto a envelhecer. As
minhas mil irmãs são mil mães que tenho.
Os olhos das minhas irmãs seguem-me com
bondade e, quando não me compreendem,
é porque eu próprio não me compreendo.
Tenho mil irmãs a esperar-me sempre, com
silêncio para ouvir-me e para proteger-me
no inverno. Tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola e tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola. Tenho irmãs como música, como
música. Tenho mil irmãs feitas de branco.
Eu sou o irmão de todas elas. Sou o guardião
permanente e incansável do seu sossego.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs."
José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis lido aqui
Exposição no espaço Anémona - Marta Emília

Seria pintura se não fosse recorte...
O Espaço Anémona traz à cidade do Porto uma das mais importantes artistas de arte contemporânea brasileira. Marta Emília tem modificado, ao longo de mais de uma década de trabalho, a produção artística no Brasil: num país em que o mundo associa arte contemporânea ao eixo Rio de Janeiro – São Paulo, a artista plástica leva as atenções para o Nordeste, região com a maior amálgama cultural do país, ao fazer de sua arte a miscelânea entre o que há de mais recente no design e as mais intrínsecas tradições culturais.
Muitas dessas tradições têm origem portuguesa, como os bordados e as rendas. Marta Emília “tece” seus quadros com papéis A4 pintados com tinta acrílica e recortados em formas geométricas minúsculas. O resultado são grandes painéis com um efeito metonímico excepcional: o que encanta não é somente o trabalhoso ofício de recorte e colagem, mas indubitavelmente a capacidade única dessa artista ao criar dimensões e espaços geométricos utilizando a disposição das cores no plano. É como colorir o movimento e fixá-lo no momento necessário para que cada parte construa a dimensão óptica que encanta o fruidor.
Marta Emília consegue apreender elementos locais e depois desenvolve uma linguagem própria que alcança dimensões universais. Esse é o maior valor do artista: quando ele cria instrumentos que permitem produzir obras de arte universalizadas, numa linguagem que dialoga com outros povos, sem olvidar das cores, das formas, da identidade cultural própria do artista.
Em exposição no Espaço Anémona - Trav. Cedofeita, 62 - Porto, até 28 de Outubro.
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
sobre um quadro de Matisse

Matisse "Conversation" 1908-1912 The Hermitage Museum
o jardim é um pomar de tulipas vermelhas.
um verde sensível veste o início do dia .
o azul é fonte -
conversamos
sobre as cinzas da noite e a luz repentina,
pousamos as vírgulas, percorremos os três pontos;
um mar de reticências, possibilidades infinitas
e a lista objectiva de um destino.
conversamos
sobre a falta de um robe preto na hora antecedente,
o teu olhar de esfinge, o sinal escondido
no ombro esquerdo -
conhecemos
todos os lugares do corpo.
as roupas são dispensáveis como o nevoeiro
quando manobram os barcos na foz do rio -
conversamos
portanto sobre o saber mais, o querer saber tudo
e não só a física imagem -
conversamos
sobre as paisagens da mente
a subtil igualdade de procurar o perfeito -
conversamos
e surge simples uma paz de incenso
na fotografia, no quadro, no poema, naquele pomar de tulipas
porque não fixou fixo o tempo naquela distância
que não durou e se encurtou
repentinamente -
José ferreira 20 Outubro 2011
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
talvez pudesse esquecer que a luz entrava pela janela

Wateau
talvez pudesse esquecer que a luz entrava pela janela como uma garganta surda
e talvez pudesse adormecer de novo para esquecer o dia.
o sol caminhava pelas falhas frias do seu corpo como uma lembrança
como um rosto, como uma mão de unhas não demasiado longas
que junto das orelhas, puxava os cabelos, sem pressa, em ritmos síncronos.
que fazer naquele pó de gritos?
que fazer naquelas dobras brancas?
a voz saiu-lhe espantosamente límpida
como a transparente água que oscilava
sem flóculos no invólucro de vidro,
onde
um peixe vermelho abria brânquias,
rodando, tonto de tantas voltas:
que fazer perante a ausência?
que fazer quando não abres a boca
e surges tão difusa, só de sombras?
José Ferreira 19 Outubro 2011
terça-feira, 18 de outubro de 2011
Poema de um funcionario cansado - António Ramos Rosa
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaçoSoletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só.
António Ramos Rosa
As palavras esperam o sono - um poema de António Ramos Rosa

As palavras esperam o sono
e a música do sangue sobre as pedras corre
a primeira treva surge
o primeiro não a primeira quebra
A terra em teus braços é grande
o teu centro desenvolve-se como um ouvido
a noite cresce uma estrela vive
uma respiração na sombra o calor das árvores
Há um olhar que entra pelas paredes da terra
sem lâmpadas cresce esta luz de sombra
começo a entender o silêncio sem tempo
a torre extática que se alarga
A plenitude animal é o interior de uma boca
um grande orvalho puro como um olhar
Deslizo no teu dorso sou a mão do teu seio
sou o teu lábio e a coxa da tua coxa
sou nos teus dedos toda a redondez do meu corpo
sou a sombra que conhece a luz que a submerge
A luz que sobe entre
as gargantas agrestes
deste cair na treva
abre as vertentes onde
a água cai sem tempo
António Ramos Rosa
(Publico este poema como homenagem ao poeta que admiro e que ontem completou 87 anos)
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã - as palavras de José Luís Peixoto

Jonh William Waterhouse
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o príncipio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.
José Luís Peixoto
sábado, 15 de outubro de 2011
podia ser em outubro

Paula Rego
podia ser uma daquelas noites que surpreende os outubros,
um mês que diz tanto -
podia ser uma luz que abrisse as persianas,
tornando-as invisíveis, sem ruído,
um quarto invadido -
podia ser a súbita sombra, rendas na cortina, um aroma,
braços e um corpo distendido,a surpresa dividida;
uma música, uma ave, um canto,
a génese do entendimento, em equilíbrio -
e podia ser uma dança, diferente de todas as outras danças,
a dança do enigma, entre o eclipse da lua,
a encosta abrupta, o mar vacilante,
e a proximidade mais forte da onda e da espuma,
sendo e chegando, partindo e voltando,
por sobre os ombros, por sobre os anos,
mesmo que na forma de um sonho, engolindo distâncias -
José Ferreira 15 de Outubro 2011
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
de cabelos molhados

Henri Matisse
de cabelos molhados e a frescura em cima dos ombros,
escrevo para levantar um rebuliço nas pontas do ar.
não há cavernas sempre fechadas e sempre abertas, e todos têm as suas,
escuras e escondidas ou vestidas de luz, dentro das suas vidas.
criaram-se as dicotomias e as tríades para levantarem poeiras,
no meio dos desertos, para revelarem oásis ou vazios difíceis,
de onde se conclui
que não há perfeições perfeitas nem diabólicos lugares que povoam os dias,
há misturas e dúvidas, trilhos pequenos e uma poluição de ruas,
e todas se complementam em surpresas imprevistas:
por vezes, no fim da tempestade, também surge o arco-íris.
porventura se falarmos da complexidade, das reacções químicas,
como os cogumelos drásticos de Hiroshima, cai um véu negro
que destrói os filamentos das células num veneno permanente.
o estado extremo da calamidade pode cair como uma aurora negra
ou uma nascente seca de um rio, na sede das encostas e das raízes;
um supremo desafio, uma transcendência dura que nos infiltra.
no entanto, essa é a essência do nascimento, o existir e o não existir
como súmula simples, e enquanto existimos, devemos usar
todos os argumentos: uma pele inquieta, os lábios abertos,
a fórmula reanimada até aí desconhecida, o cálice perseguido,
a revolução das ideias e dos sentidos,
o acreditar em paraísos -
escrevo portanto sem o pudor dos templos, sem as faces dos cubos
que apenas dobram esquinas e repetem rumos de formigas.
escrevo simplesmente de cabelos molhados e sem qualquer fúria
nas voltas de um ar contínuo,
um ar em rebuliço onde folhas rodopiam;
linhas de letras seguidas,
como a água morna de um chuveiro
ainda há pouco, caindo suavemente sobre o corpo,
e um sabonete branco
por entre espumas que deslizam -
José ferreira 13 Outubro 2011
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