quinta-feira, 13 de agosto de 2009

noite





Mas a noite ventosa, a noite límpida
que a lembrança somente aflorava, está longe,
é uma lembrança. Perdura uma calma de espanto,
feita também ela de folhas e de nada. Desse tempo
mais distante que as recordações apenas resta
um vago recordar.

As vezes volta à luz do dia,
na imóvel luz dos dias de Verão,
aquele espanto remoto.

Pela janela vazia
o menino olhava a noite nas colinas
frescas e negras, e espantava-se de as ver assim tão juntas:
vaga e límpida imobilidade. Entre a folhagem
que sussurrava na escuridão, apareciam as colinas
onde todas as coisas do dia, as ladeiras
e as árvores e os vinhedos, eram nítidas e mortas
e a vida era outra, de vento, de céu,
e de folhas e de coisa nenhuma.

Às vezes regressa
na imóvel calma do dia a recordação
daquele viver absorto, na luz assombrada.

Cesare Pavese, in 'Trabalhar Cansa'
Tradução de Carlos Leite

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Visita-me enquanto não envelheço




Modigliani "Jeanne Hébuterne com camisola amarela"


visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

Al Berto, in 'Salsugem'

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Imprecisos



(fotografia retirada da internet)

Sinto que tropeço nas iluminuras
os dourados reflexos dos intensos amarelos.
Ao trocar o olhar exterior pela minúcia
o encoberto universo dentro
espalho a tinta de um renovado escriba
de algodão à cintura cabelos no agreste vento
recolhendo nos textos antes do destino
os círculos voláteis de um castelo de cartas
onde se risca o ar de asas brancas
ou de frente nas estrelas os morcegos
- cabeças pequenas asas de medo;
à noite cobre-me
o cego aroma de veludos negros
- volúveis imprecisos e humanos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Demasiada Loucura é o Mais Divino Juízo


Patrick Hourihan "Fantastic Duet"

Demasiada Loucura é o mais divino Juízo -
Para um Olhar criterioso -
Demasiado Juízo - a mais severa Loucura -
É a Maioria que
Nisto, como em Tudo, prevalece -
Consente - e és são -
Objecta - és perigoso de imediato -
E acorrentado -

Emily Dickinson, in "Poemas e Cartas"
Tradução de Nuno Júdice

sábado, 8 de agosto de 2009

Amo-te no intenso tráfego


Salvador Dali "Leda atómica" 1949

Amo-te no intenso tráfego
Com toda a poluição no sangue.
Exponho-te a vontade
O lugar que só respira na tua boca
Ó verbo que amo como a pronúncia
Da mãe, do amigo, do poema
Em pensamento.
Com todas as ideias da minha cabeça ponho-me no silêncio
Dos teus lábios.
Molda-me a partir do céu da tua boca
Porque pressinto que posso ouvir-te
No firmamento.

Daniel Faria, in "Dos Líquidos"

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Mar de sentidos


Magritte " A condição humana" 1935


As águas do mar do norte gélidas de frias.
Manhã cedo de passeios nas beiras desse lugar;
passos em fio, marcas de sandálias que se alisam
no silêncio breve e branco das espumas
no ar descomposto das algas, na retenção
azul líquida de vasos, nos pés de bicicleta
em ritmos cardíacos, como ilhas
em movimentos de areia e águas, navios, navios...

Passeios de braços pousados e sombras no olhar
redondas nos sussurros do horizonte
cruzadas de palavras, audíveis, largas:

quem as diz? quem as traz fortes?

essas mãos dentro de mim, abrindo, abrindo...
o pó dos livros, as frases imperdíveis como ecos
sinais que se misturam de tantos, tantos modos
em rasgos longos, fumos, fumos, tantos fumos...
uma lava luminosa, quente, rosa-dos-ventos de rumos
que solta as lágrimas de púrpura, os sorrisos mais firmes
a essência mais límpida de um mar de sentidos.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

A forma justa


(Fotografia retirada da Internet)



Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"

D E S C O M P R E S S Ã O

Procuro compensar a azáfama,
o bulício brutal vivido
com o pandemónio do stress laboral;
o polegar firme
e a polpa do indicador,
premem minhas têmporas,
deixo que o índex se estenda
por toda a minha fronte,
cotovelo esquerdo sobre a mesa,
rodo o pescoço
sinto-o estalar e ranger,
provocando dor surda
por estiramento muscular;
sobrelevo os ombros
despertando dor aguda nos trapézios,
assim permaneço alguns segundos
aceitando dor crucial por intencional;
dentro em breve atingirei
tranquilo relaxamento funcional!

Olhos ainda cerrados, visão dourada,
mar azul em ilha deserta...
a cabeça ainda lateja em torpôr,
mas é silenciada a ansiedade,
vai-se esbatendo a intolerância;
deixo escorrer a fadiga,
regressa o possível discernimento,
e os neurónios mostram-se felizes
por gradualmente poderem retomar
a fisiologia primária em suas sinapses!

Olhos agora entreabertos,
tranquilo, e com alguma serenidade
introspectivamente assumo:
- terei por certo escapado ao infarto,
mas não ao absurdo stress profissional;
- como se pode assim louvar o trabalho ?!


(Antonio Luíz , 16-07-2009 - Poesia pragmática ).

5 POETRIX ( a propósito do Verão )

Condição sine qua non:

- amar na praia
sol e sofreguidão,
verão escaldante no coração.


Alternativa:

Esbracejo no mar,
pertenço-lhe por instinto
após escaldão.

Constatação:

Bátegas de água fresca
temperam gentilmente areia
solarenta.

Relaxamento arriscado:

Gente deambulante indefesa
em praias, sol a pique...
vida desprotegida.

Compensação:

Paixão na orla do mar,
abraços-protecção do sol
intempestivo.


(António Luíz , 28-07-2009 - Poesia pragmática )

terça-feira, 4 de agosto de 2009

A catedral engolida



Depois daquela poesia a seguir ao almoço
no hábito que não é o nosso
desceu o sono, o farto sentir do cansaço
o abrir de uma rosácea que pedia descanso.
Dessa forma se fecharam os olhos
na calma branca de uma parede incompleta;
lugar onde caiu o quadro colorido
de um prego inseguro e superficial.
Seguiu-se o ruído de mundos leves
entrando e saíndo uma brisa breve de ritmos
escutando o sentir interior das furnas
na forma de sombras de um teatro antigo.

Os véus opacos desvendavam segredos apenas
a pássaros pequenos que debicavam migalhas
acesas sobre a mesa.

Nas almofadas dois rostos em crescendo
sem qualquer indício de faúlha, a faísca
que de lua em sol subia os lábios felizes
(felinos os corpos que quase miam
no jeito encolhido de um beiral de Agosto).
Dormiam, tanto dormiam.


No primeiro acordar foi tão nítido o sonho:
uma catedral engolida de ondas
ao som de um piano no breve instante.
Sobrou suspenso, não deglutido um vitral
filtrando cores de um insensato arco-íris
nos dois rostos calmos como os fenos-
quando não há mais ventos- e o mesmo som, dentro
de uma pequena imensa jarra feita em cima da mesa
de fios finos de estrelícias
aromas de narcisos
nas puras águas de uma ilha
onde habitavam os poemas
e à volta
as almas de todos os rios.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

La Cathédrale Engloutie/ Debussy

La Cathédrale Engloutie




Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria
para satisfação dos meus parentes todos. Mesmo a Música,
eles achavam-na demais, imprópria de um rapaz
que era pretendido igual a todos eles:
alto ou baixo funcionário público,
civil ou militar. Eu lia muito, é certo. Lera
o Ponson du Terrail, o Campos Júnior, o Verne e o Salgari,
e o Eça e o Pascoaes. E lera também
nuns caderninhos que me eram permitidos
porque aperfeiçoavam o francês,
e a Livraria Larousse editava para crianças mais novas
do que eu era,
a história da catedral de Ys submersa nas águas.

Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi
uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos,
mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante
daquelas fendas ténues que na vida,
na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam.

Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos,
os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres
sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas.
Nas naves povoadas de limos e de anémonas, vi que perpassavam
almas penadas como as do Marão e que eu temia
em todos os estalidos e cantos escuros da casa.

Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas
só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou
mas sem palavras. Escrevi. Como o vaso da China,
pomposo e com dragões em relevo, que havia na sala,
e que uma criada ao espanejar partiu,
e dele saíram lixo e papéis velhos lá caídos,
as fissuras da vida abriram-se-me para sempre,
ainda que o sentido de muitas eu só entendesse mais tarde.

Submersa catedral inacessível! Como perdoarei
aquele momento em que do rádio vieste,
solene e vaga e grave, de sob as águas que
marinhas me seriam meu destino perdido?
É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo - esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam:
esse lixo do mundo e papéis velhos
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,
como a catedral se iria em acordes que ficam
na memória das coisas como um livro infantil
de lendas de outras terras que não são a minha.

Os acordes perpassam cristalinos sob um fundo surdo
que docemente ecoa. Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez poesia,
esta desgraça impotente de actuar no mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.

Ó catedral de sons e de água! Ó música
sombria e luminosa! Ó vácua solidão
tranquila! Ó agonia doce e calculada!

Ah como havia em ti, tão só prelúdio,
tamanho alvorecer, por sob ou sobre as águas,
de negros sóis e brancos céus nocturnos?
Eu hei-de perdoar-te? Eu hei-de ouvir-te ainda?
Mais uma vez eu te ouço, ou tu, perdão, me escutas?

domingo, 2 de agosto de 2009

Que farei no outono quando tudo arde




Que farei no outono quando ardem
as aves e as folhas e se chove
é sobre o corpo descoberto que arde
a água do outono

Que faremos do corpo e da vontade
de o submeter ao fogo do outono
quando o corpo se queima e quando o sono
sob o rumor da chuva se desfaz

Tudo desaparece sob o fogo
tudo se queima tudo prende a sua
secura ao fogo e cada corpo vai-se

prendendo ao fogo raso
pois só pode
arder imerso quando tudo arde

Gastão Cruz, in "As Aves"

sábado, 1 de agosto de 2009

Eu Platero


Matisse "A dança" 1910 , óleo sobre tela 260cmx390cm, Ermitage S. Petersburg


Sempre o mesmo "Platero". Crescem as orelhas
encostam-se os cabelos e cai o peso de chumbo
dos meus erros.
Aquieta-se a aurora, permanece a lua
a pulsação límpida das estrelas
que apesar de lenta sempre aumenta
a mesma cor intensa da cereja
a mesma luz e sombra do desejo.