segunda-feira, 31 de outubro de 2011
no dia seguinte ao dia dos teus anos
Miguel Ângelo
quando em outubro te abraço os braços que me estendes
guardo as lágrimas da génese como uma chuva de pérolas
e agradeço-te tudo quanto sinto desde o ser pequenino
vestir calções e enrolar-me nos teus ramos de árvore gigante -
fazes anos, nascemos no mesmo mês e em anos tão diferentes
e sinto mais os ossos agudos os ombros descaídos a doçura das rugas
quando em Outubro abres o sorriso e nos teus olhos de água
corre um rio -
um pai mais de cidades do que campo, na pressa de ser presente
quando as obrigações te afastavam o horizonte
de tantos dedos de vários tamanhos dos maiores aos mais pequenos -
chegavas pelo fim das tardes de Outono carregado de maçãs
golden, stark, bravo, impregnando de aromas os corredores
a alma que não consigo segurar
e ainda me salta, ao fim de tantos anos -
sentavas-te a meu lado na mesa grande da sala, nas tardes de domingo
e lentamente nos cadernos de duas linhas ensinavas caligrafia
os ós redondos de lacinho os tês pequenos de tracinho
os és elegantes grandes tão difíceis -
no dia seguinte ao dia dos teus anos quando te encontras longe
posso deixar correr nos olhos esta água miudinha, este sal precioso
e dizer-te o tanto quanto te quero, o quanto te agradeço
mesmo que não ouças e esteja frio e haja vento
mas junto de ti para sempre -
José ferreira 31 de Outubro de 2011
(este é um poema que dedico ao meu pai no dia seguinte ao dia dos seus anos)
convite - um poema de Egito Gonçalves
Matisse the dream 1940
Nesta fase em que só o amor me interessa
o amor de quem quer que seja
do que quer que seja
o amor de um pequeno objecto
o amor dos teus olhos
o amor da liberdade
o estar à janela amando o trajecto voado
das pombas na tarde calma
nesta fase em que o amor é a música de rádio
que atravessa os quintais
e a criança que corre para casa
com um pão debaixo do braço
nesta fase em que o amor é não ler os jornais
podes vir podes vir em qualquer caravela
ou numa nuvem ou a pé pelas ruas
- aqui está uma janela acolá voam as pombas -
podes vir e sentar-te a falar com as pálpebras
pôr a mão sob o rosto e encher-te de luz
porque o amor meu amor é este equilíbrio
esta serenidade de coração e árvores
Egito Gonçalves
domingo, 30 de outubro de 2011
A noite
Antonio Carneiro
Acaricia o horizonte da noite, busca o coração de azeviche que a aurora recobre de carne. Ele te porá nos olhos pensamentos inocentes, chamas, asas e verduras que o sol ainda não inventou.
Não é a noite que te falta, mas o seu poder.
LA NUIT
Caresse l'horizon de la nuit, cherche le coeur de jais que l'aube recouvre de chair. Il mettrait dans tes yeux des pensées innocentes, des flammes, des ailes et des verdures que le soleil n'inventa pas.
Ce n'est pas la nuit qui te manque, mais sa puissance.
Paul Eluard lido aqui
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Ecos - um poema de Ana Luísa Amaral traduzido por Maria Alonso
Em voz alta, ensaiei o teu nome:
a palavra partiu-se
Nem eco ínfimo neste quarto
quase oco de mobília
Quase um tempo de vida a dormir
a teu lado e o desapego é isto:
um eco ausente, uma ausência de nome
a repetir-se
Saber que nunca mais: reduzida
a um canto desta cama larga
o calor sufocante
Em vez: o meu pé esquerdo
cruzado em lado esquerdo
nesta cama
O teu nome num chão
nem de saudades
Ana Luísa Amaral. Se fosse um intervalo. Dom Quixote (2009)
Ecos
En voz alta, he ensayado tu nombre:
la palabra se ha roto
Ni eco ínfimo en esta habitación
casi hueca de muebles
Casi un tiempo de vida durmiendo
a tu lado y el desapego es esto:
un eco ausente, una ausencia de nombre
que se repite
Saber que nunca más: reducida
a un extremo de esta cama ancha
el calor sofocante
En cambio: mi pie izquierdo
cruzado en lado izquierdo
en esta cama
Tu nombre en un suelo
ni de añoranza
Poema de Ana Luísa Amaral traduzido por Maria Alonso Seisdedos no seu blog http://opoemaquehojepartilhariacomvoces.blogspot.com/
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
colecção de documentos das artes cénicas ... a sequela!
para os afortunados que anteontem desfrutaram do privilégio de assistir ‘in loco’ aos efeitos embaraçosos de um inesperado apagão, foi um prazer estar convosco e contamos com a vossa presença hoje, no mesmo local e à mesma hora, para partilhar da magnífica Colecção das Artes Cénicas. para aqueles a quem a terça-feira não permitiu uma visita ao Arquivo Distrital do Porto, ouçam a voz do destino e venham aproveitar esta segunda oportunidade de conhecer a colecção. uns e outros podem espreitar aqui o teaser disponível no youtube, e mais informações na página do evento ou do Arquivo Distrital do Porto no facebook.
.
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Sinfonia Fantástica, de Berlioz
Programas, poetas, sonhos de ópio,
pastores pipilando, e as guilhotinas,
e o sábat das bruxas ao som do Dies Irae,
comédia melancólica e sarcástica
de romantismo sentimental e crítico
desesperadamente triste de si mesmo,
na solidão do espírito perdido
num mundo burguês sem fantasia,
sem mais maravilhoso que o da infâmia,
sem mais espanto que o da hipocrisia.
Tudo isto com bem pouca reserva,
bastante vulgaridade, muito efeito fácil,
e um colorido por vezes novo rico
como os cristais e as pratas dos barões banqueiros.
Mas é música, violentamente
música. Agressivamente
música. Os ritmos
de cadência, colorido, timbres,
estilos, tons - é tudo música.
Da solidão romântica imensamente pública - mas solidão.
Da amargura romântica tremendamente amena - mas uma amargura.
Da raiva de não ser o mundo uma obra de arte,
um indivíduo, a glória, a liberdade.
Música pungente, irónica, raivosa,
ainda saudosa das doçuras clássicas
com deuses imortais (de pedra branca).
Se não sentimos isto, porque a grosseria
cresceu à escala cósmica, nenhuma culpa
acaso cabe a tais visões sonoras,
em que a tristeza sabe imaginar-se
tão puramente um canto de oboé,
com percussões pontuando o mundo a que assistimos,
ao som dos arcos e metais:
grandeza caricata deste inferno amável
(cheio de róseas profundezas - e assassinos).
Jorge de Sena
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
muito lhe dizia
fotografia retirada daqui
muito lhe dizia a chuva que ensopava os pés
e migrava até à alma: disseram que era mentira
assim um sol que não existia, mentira pura,
um poço tão fundo de que não se via o fim,
só de penumbra,
mentira -
a noite perdia portanto aquela lua.
agora lia nas letras do jornal as horas do pôr-do-sol
e no despertador metálico ligava uma campainha antiga,
e tapava os olhos,
e via tudo escuro, como se fosse a própria noite -
mentira, disseram, mentira pura -
antes de existir -
josé ferreira 25 Outubro 2011
terça-feira, 25 de outubro de 2011
Sem outro intuito
Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.
Luís Miguel Nava
Erik Satie para piano - um poema de Jorge de Sena
As notas vêm sós por harmonias
como de escalas que se cruzam
em sequências descontínuas de figuras
singelamente acorde surpreendido
de se encontrar num instante pensativo.
São como vagas vindo no perlado
tão diminutas, solitárias mas ligadas
de pura sucessão ocasional
que se rebusca em cálculos descaso
contrário ao hábito de estarem escritas,
ou juntas ou seguidas. Mas é como
se desde sempre este hesitante fluido
houvera de estar pronto a ser pensado
e a soar tranquilo em espaço diminuto
não por ser breve mas por ser silêncio
de uma memória em que a surpresa ecoa
lembranças perpassantes de quanto não foi,
não existiu, não foi vivido e entanto
pungente fere as águas espelhadas
onde de imagens passam vultos claros
em túnicas voando transparentes
e muito curtas sobre membros duros
que dançam devagar a dança juvenil
num salpicar de pés do tempo antigo.
Jorge de Sena
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
a carta que te escrevi enquanto dormias
Klimt
de quem a responsabilidade da tua altura
branca, nua
iludindo a escuridão nesse manto de estrelas,
enclausurando ternuras nos olhos adormecidos
nos cabelos largos, nos braços cruzados
de quem a responsabilidade
desta distância, deste silêncio, dentro do quarto
na frente da lua, soltando em pequenas chamas o ténue fumo
para que se confunda com as cores da bruma;
Setembro, Outubro -
de quem a responsabilidade
do desassossego cinzento, carregando no peito
a incompletude dos espelhos
no correr do rio de indícios únicos
de quem a responsabilidade de ser tão escuro
e na pequena mesa o copo estar quase todo de vidro
após o cair de migalhas, as pratas enroladas
e os dentes a falar sozinhos
de quem a responsabilidade de dormires
de não dormirmos, plenos de seiva e sem raízes
de quem a culpa desta sensação da falta de trevos
quando as noites se enchem de chuva e se tornam frias
na madrugada que caminha nos teus ombros
quando acordares
não te escondas nos bicos dos braços
enquanto lês os livros e os poemas
cessa de ser sempre a silhueta
no meio das sombras e mais sombras e mais sombras
não percas a luz dos dias
aceita a oferta das tulipas, dos gladíolos, dos cravos brancos
dos jacintos húmidos, das hortênsias, azuis e rosas ao mesmo tempo.
recusa o cronómetro contínuo, a rotina prevista, o dong do sino
e não te iludas nas mentiras, no pó dos anos
que muitos gritam aos ouvidos; evidências sem prova, insensíveis
de quem a responsabilidade das naves sem terras nem paraísos
em eternas galáxias de buracos fundos, sem âncoras, sem rumos
e o porquê das janelas abertas por onde entram os corvos, o piar nocturno
o voo rápido dos morcegos nas luzes cegas dos candeeiros
o porquê de ser Outono
e haver árvores despidas, e almas tristes
caídas sobre os paralelos luzidios, como gotas
gotas de superfície, na superfície
perdendo as formas, transformando-se em linhas
de olhos indomados pelo sono, no silêncio rectilíneo
como corpos taciturnos, sem lábios, sem mundos -
de quem a responsabilidade de não morarmos na mesma rua
no mesmo quarto, no mesmo lume
e não fecharmos os braços
crescendo em minutos morrendo em segundos -
José Ferreira 23 de Outubro de 2011
sábado, 22 de outubro de 2011
Tenho mil irmãs para amar sem palavras - José Luís Peixoto por Raquel Patriarca
Tenho mil irmãs para amar sem palavras.
Tenho aquela irmã que caminha encostada
às paredes e sem voz, tenho aquela irmã de
esperança, tenho aquela irmã que desfaz o
rosto quando chora. Tenho irmãs cobertas
pelo mármore de estátuas, reflectidas pela
água dos lagos. Tenho irmãs espalhadas por
jardins. Tenho mil irmãs que nasceram
antes de mim para que, quando eu nascesse,
tivesse uma cama de veludo. Agradeço com
amor a cada uma das minhas irmãs. São mil
e cada uma tem um rosto a envelhecer. As
minhas mil irmãs são mil mães que tenho.
Os olhos das minhas irmãs seguem-me com
bondade e, quando não me compreendem,
é porque eu próprio não me compreendo.
Tenho mil irmãs a esperar-me sempre, com
silêncio para ouvir-me e para proteger-me
no inverno. Tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola e tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola. Tenho irmãs como música, como
música. Tenho mil irmãs feitas de branco.
Eu sou o irmão de todas elas. Sou o guardião
permanente e incansável do seu sossego.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs."
José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis lido aqui
Exposição no espaço Anémona - Marta Emília
Seria pintura se não fosse recorte...
O Espaço Anémona traz à cidade do Porto uma das mais importantes artistas de arte contemporânea brasileira. Marta Emília tem modificado, ao longo de mais de uma década de trabalho, a produção artística no Brasil: num país em que o mundo associa arte contemporânea ao eixo Rio de Janeiro – São Paulo, a artista plástica leva as atenções para o Nordeste, região com a maior amálgama cultural do país, ao fazer de sua arte a miscelânea entre o que há de mais recente no design e as mais intrínsecas tradições culturais.
Muitas dessas tradições têm origem portuguesa, como os bordados e as rendas. Marta Emília “tece” seus quadros com papéis A4 pintados com tinta acrílica e recortados em formas geométricas minúsculas. O resultado são grandes painéis com um efeito metonímico excepcional: o que encanta não é somente o trabalhoso ofício de recorte e colagem, mas indubitavelmente a capacidade única dessa artista ao criar dimensões e espaços geométricos utilizando a disposição das cores no plano. É como colorir o movimento e fixá-lo no momento necessário para que cada parte construa a dimensão óptica que encanta o fruidor.
Marta Emília consegue apreender elementos locais e depois desenvolve uma linguagem própria que alcança dimensões universais. Esse é o maior valor do artista: quando ele cria instrumentos que permitem produzir obras de arte universalizadas, numa linguagem que dialoga com outros povos, sem olvidar das cores, das formas, da identidade cultural própria do artista.
Em exposição no Espaço Anémona - Trav. Cedofeita, 62 - Porto, até 28 de Outubro.
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
sobre um quadro de Matisse
Matisse "Conversation" 1908-1912 The Hermitage Museum
o jardim é um pomar de tulipas vermelhas.
um verde sensível veste o início do dia .
o azul é fonte -
conversamos
sobre as cinzas da noite e a luz repentina,
pousamos as vírgulas, percorremos os três pontos;
um mar de reticências, possibilidades infinitas
e a lista objectiva de um destino.
conversamos
sobre a falta de um robe preto na hora antecedente,
o teu olhar de esfinge, o sinal escondido
no ombro esquerdo -
conhecemos
todos os lugares do corpo.
as roupas são dispensáveis como o nevoeiro
quando manobram os barcos na foz do rio -
conversamos
portanto sobre o saber mais, o querer saber tudo
e não só a física imagem -
conversamos
sobre as paisagens da mente
a subtil igualdade de procurar o perfeito -
conversamos
e surge simples uma paz de incenso
na fotografia, no quadro, no poema, naquele pomar de tulipas
porque não fixou fixo o tempo naquela distância
que não durou e se encurtou
repentinamente -
José ferreira 20 Outubro 2011
quarta-feira, 19 de outubro de 2011
talvez pudesse esquecer que a luz entrava pela janela
Wateau
talvez pudesse esquecer que a luz entrava pela janela como uma garganta surda
e talvez pudesse adormecer de novo para esquecer o dia.
o sol caminhava pelas falhas frias do seu corpo como uma lembrança
como um rosto, como uma mão de unhas não demasiado longas
que junto das orelhas, puxava os cabelos, sem pressa, em ritmos síncronos.
que fazer naquele pó de gritos?
que fazer naquelas dobras brancas?
a voz saiu-lhe espantosamente límpida
como a transparente água que oscilava
sem flóculos no invólucro de vidro,
onde
um peixe vermelho abria brânquias,
rodando, tonto de tantas voltas:
que fazer perante a ausência?
que fazer quando não abres a boca
e surges tão difusa, só de sombras?
José Ferreira 19 Outubro 2011
terça-feira, 18 de outubro de 2011
Poema de um funcionario cansado - António Ramos Rosa
A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaçoSoletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida num quarto só.
António Ramos Rosa
As palavras esperam o sono - um poema de António Ramos Rosa
As palavras esperam o sono
e a música do sangue sobre as pedras corre
a primeira treva surge
o primeiro não a primeira quebra
A terra em teus braços é grande
o teu centro desenvolve-se como um ouvido
a noite cresce uma estrela vive
uma respiração na sombra o calor das árvores
Há um olhar que entra pelas paredes da terra
sem lâmpadas cresce esta luz de sombra
começo a entender o silêncio sem tempo
a torre extática que se alarga
A plenitude animal é o interior de uma boca
um grande orvalho puro como um olhar
Deslizo no teu dorso sou a mão do teu seio
sou o teu lábio e a coxa da tua coxa
sou nos teus dedos toda a redondez do meu corpo
sou a sombra que conhece a luz que a submerge
A luz que sobe entre
as gargantas agrestes
deste cair na treva
abre as vertentes onde
a água cai sem tempo
António Ramos Rosa
(Publico este poema como homenagem ao poeta que admiro e que ontem completou 87 anos)
segunda-feira, 17 de outubro de 2011
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã - as palavras de José Luís Peixoto
Jonh William Waterhouse
um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela. sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o príncipio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.
José Luís Peixoto
sábado, 15 de outubro de 2011
podia ser em outubro
Paula Rego
podia ser uma daquelas noites que surpreende os outubros,
um mês que diz tanto -
podia ser uma luz que abrisse as persianas,
tornando-as invisíveis, sem ruído,
um quarto invadido -
podia ser a súbita sombra, rendas na cortina, um aroma,
braços e um corpo distendido,a surpresa dividida;
uma música, uma ave, um canto,
a génese do entendimento, em equilíbrio -
e podia ser uma dança, diferente de todas as outras danças,
a dança do enigma, entre o eclipse da lua,
a encosta abrupta, o mar vacilante,
e a proximidade mais forte da onda e da espuma,
sendo e chegando, partindo e voltando,
por sobre os ombros, por sobre os anos,
mesmo que na forma de um sonho, engolindo distâncias -
José Ferreira 15 de Outubro 2011
sexta-feira, 14 de outubro de 2011
de cabelos molhados
Henri Matisse
de cabelos molhados e a frescura em cima dos ombros,
escrevo para levantar um rebuliço nas pontas do ar.
não há cavernas sempre fechadas e sempre abertas, e todos têm as suas,
escuras e escondidas ou vestidas de luz, dentro das suas vidas.
criaram-se as dicotomias e as tríades para levantarem poeiras,
no meio dos desertos, para revelarem oásis ou vazios difíceis,
de onde se conclui
que não há perfeições perfeitas nem diabólicos lugares que povoam os dias,
há misturas e dúvidas, trilhos pequenos e uma poluição de ruas,
e todas se complementam em surpresas imprevistas:
por vezes, no fim da tempestade, também surge o arco-íris.
porventura se falarmos da complexidade, das reacções químicas,
como os cogumelos drásticos de Hiroshima, cai um véu negro
que destrói os filamentos das células num veneno permanente.
o estado extremo da calamidade pode cair como uma aurora negra
ou uma nascente seca de um rio, na sede das encostas e das raízes;
um supremo desafio, uma transcendência dura que nos infiltra.
no entanto, essa é a essência do nascimento, o existir e o não existir
como súmula simples, e enquanto existimos, devemos usar
todos os argumentos: uma pele inquieta, os lábios abertos,
a fórmula reanimada até aí desconhecida, o cálice perseguido,
a revolução das ideias e dos sentidos,
o acreditar em paraísos -
escrevo portanto sem o pudor dos templos, sem as faces dos cubos
que apenas dobram esquinas e repetem rumos de formigas.
escrevo simplesmente de cabelos molhados e sem qualquer fúria
nas voltas de um ar contínuo,
um ar em rebuliço onde folhas rodopiam;
linhas de letras seguidas,
como a água morna de um chuveiro
ainda há pouco, caindo suavemente sobre o corpo,
e um sabonete branco
por entre espumas que deslizam -
José ferreira 13 Outubro 2011
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
Silogismos - um poema de Ana Luísa Amaral
Pablo Picasso
A minha filha perguntou-me
o que era para a vida inteira
e eu disse-lhe que era para sempre.
Naturalmente, menti,
mas também os conceitos de infinito
são diferentes: é que ela perguntou depois
o que era para sempre
e eu não podia falar-lhe em universos
paralelos, em conjunções e disjunções
de espaço e tempo,
nem sequer em morte.
A vida inteira é até morrer,
mas eu sabia ser inevitável a questão
seguinte: o que é morrer?
Por isso respondi que para sempre
era assim largo, abri muito os braços,
distraí-a com o jogo que ficara a meio.
(No fim do jogo todo,
disse-me que amanhã
queria estar comigo para a vida inteira)
Ana Luísa Amaral
(lido pela autora no programa Câmara Clara aqui)
terça-feira, 11 de outubro de 2011
lugares habitados de raízes
Gustav Klimt "árvore de vida"
ar iluminado na frente dos teus lábios
é contigo que falo, na proximidade das sedas -
estendo os olhos, alienado, nas linhas vermelhas
e embalo os braços por uma nave sem tempo
querendo o pormenor branco, o desvendar de segredos,
tão extremos, nas pontas agudas da pele, nos cabelos -
procuro a medida exacta, a forma dos dedos
nos outros dedos que tremem, um terramoto
de consequências inusuais mas de supremos habitáveis
porque elevados ao vestir do fogo, ao segurar das cinzas
e o recomeçar, um eterno retorno
à origem do teu rosto, um destino -
é contigo que falo ar sapiente de cores
no limiar de um interior fulminante
na proximidade de terras sem nome;
o descobrimento do mercúrio
a tabela do sonho, o novo elemento -
é contigo que falo ar medonho
porque no curto espaço
seguras o tempo, um íman de cada lado
e misturas o intervalo dos cimentos;
afastas a resistente sobrevivência de sons, ecos distantes,
tambores, címbalos
e colocas terras, montes, cidades, pequenas aldeias
alcatrões longos, planícies de longínquas azinheiras,
no prolongamento de um Cronos sem paciência,
no adiamento da soldadura das asas, fechadas
na almofada dos ombros, na epopeia dos lábios
contínuas prímulas e a repetição das noites -
haverá o dia do nascimento
quando dédalos verdes
fixarem as telas e as aguarelas inconstantes,
qual Penélope de longos cabelos na urdidura de um tapete -
haverá destinos mais maduros nas vinhas de todos os vinhos
e os bagos rolando sobre as ruas e os labirintos
porque são imensamente fortes, são mais fundos,
os lugares habitados das raízes
que engolem a terra
e aproximam horizontes -
José Ferreira 11 Outubro 2011
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
María Valencia Insignia
María Valencia Insignia. O corpo condecorado de sal. Não demorou muito. Não demora muito, normalmente. As certezas têm mil patas e asas. As certezas são insectos a sul de todas as eventualidades possíveis. As certezas matam um homem em menos de um hino, que é a partícula de tempo imediatamente inferior ao instante abissal. E a evidência viaja à velocidade da luz. E o sal deposita-se no fundo, tão insolúvel e estéril como o enigma do olhar e o rosto aflito, a pose pretensamente indelével, pouca ou nenhuma maquilhagem visível, não fossem os demónios às avessas e às cegas conferir ao número um tom difícil, negro e difícil, com as secreções todas em teu poder, María, com a facilidade com que encarnaste o complemento directo numa frase onde o sujeito era a vítima. E eu, casualmente, o vilão.
Amar é defender a tese da nudez antes mesmo de esta ser vista. Numa rua deserta, alguém apregoa o impossível. É cálculo divinatório cheio de probabilidades de falhar, mas sem nenhuma inveja ou medo do dia seguinte. É humano, como as fezes. Mas é também eco da distância e a soma mais bela que se conhece de insucessos astrofísicos. Por isso eu não respeitei o teu credo, María. E depois de termos arrumado os teus estorvos e os meus, fomos brincar para onde a culpa beija a mais anaeróbia mentira.
Nus, necessariamente nus, em Marienbad.
domingo, 9 de outubro de 2011
luminosidades
de um filme de Godard
nada te posso negar, nem o vento como brisa
quando o calor é forte e aquece,
nem o raio de sol quando a neve é fria
e resistente se derrete -
nada te posso negar nas lágrimas de sal,
nem o mar nem as ondas,
nem o meu corpo de ossos bambos,
de luminosidades pirilampo
pelo meio das sombras -
José Ferreira 8 de Outubro de 2011
sábado, 8 de outubro de 2011
Adrianne e Paris
branco de nevoeiro na meia-noite insegura,
e o silêncio tão quieto da rua -
porque não pára um carro antigo de portas de árvore
no par do número da casa
no ímpar das glândulas que batem?
uma ave abre as asas;
os telhados de Paris, os escritores,
os dedos líquidos dos pintores -
Adrianne e os gatos
pela hora dos cristais -
de olhos em claro, sob um céu de Van Gogh
se escreve a incredível história;
nas não formas
no não tempo -
e de trompete as pontes -
José Ferreira 7 Outubro 2011
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
quarta-feira, 5 de outubro de 2011
Compostela
Fui sozinha
Ao decalcar o céu, reconheci-me
estrela de ósseas pontas, despojada de luz
O meu corpo recusava a força
de ser fósforo, caía sem lume na vegetação
e só roçava o chão das eiras, sabendo-o fruste
Caminhei pela manhã, a cada dia
entumecendo a paz em redor do túmulo
(trazia-o junto ao peito, o pequeno
ossário de um pássaro no granito)
Ao passar pelos acampamentos invejava
às tendas a prontidão para a elipse,
sem violência resumia os movimentos
do corpo
Dormi em albergues e estábulos
onde um cavalo ou uma peregrina muito velha
tinham morrido
Aprendi a descansar no perecível feno,
junto ao íntimo esterco dos outros
Não sustive a respiração
Andreia C. Faria
Ao decalcar o céu, reconheci-me
estrela de ósseas pontas, despojada de luz
O meu corpo recusava a força
de ser fósforo, caía sem lume na vegetação
e só roçava o chão das eiras, sabendo-o fruste
Caminhei pela manhã, a cada dia
entumecendo a paz em redor do túmulo
(trazia-o junto ao peito, o pequeno
ossário de um pássaro no granito)
Ao passar pelos acampamentos invejava
às tendas a prontidão para a elipse,
sem violência resumia os movimentos
do corpo
Dormi em albergues e estábulos
onde um cavalo ou uma peregrina muito velha
tinham morrido
Aprendi a descansar no perecível feno,
junto ao íntimo esterco dos outros
Não sustive a respiração
Andreia C. Faria
terça-feira, 4 de outubro de 2011
a intensidade de um poema de Shakespeare
a intensidade nunca saiu do seu rosto;
não indigno, não perdido, não indefinido, um pouco gasto -
ontem como hoje sempre a viu e sempre a via
como a única mulher nas areias longas,
apertando os sentimentos como água salgada, soltando o branco
e a chegada,
à praia -
sempre sentiu os sons da janela, a chuva e as dilatações do vidro;
os seus ruídos, e os ruídos longínquos dentro de si;
como ela o conhecia… nas mãos de asa… sabendo as linhas… as curvas…
os lábios entreabertos no lado interior da carícia -
sempre sorriu e sempre sorria, interiormente, na permanência incontida;
aquela dança lenta de baixar os olhos, erguer os ombros, abrir os dedos,
encurtar de gestos a planície iluminada, pela lua, em mil cinzentos -
sabiam-se assim, no rodear do tempo,de areia muito fina,
única, macia,
que não é relativa nem complicada pela física;
e corriam pelas noites magníficas na identidade dos espíritos,
vestidos pela luz sibilante dos diferentes,
em vício e adrenalina:
na dependência de escutarem o poema de Shakespeare
sempre, qualquer que fosse a distância,
como uma música -
José Ferreira 3 Outubro 2011
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
Pequeno Canto do Amigo - um poema inédito de Ana Luísa Amaral
Ay luz, ay luz do céu antigo,
não me trazeis novas do meu amigo
que em vós morreu tão cedo?
Novas nenhumas,
minha amiga,
que a luz desta cantiga
é agora como o vosso amigo
Ay tempo, ay tempo tão parado,
que parastes ao ver o meu amigo,
que novas lhe haveis dado?
Novas nenhumas,
minha amiga,
que o tempo da cantiga
é agora como o vosso amigo
Ay mar, ay mar tão escuro e fundo,
que convosco ficou o meu amigo,
não me dais curtas novas desse mundo?
Novas nenhumas,
nenhumas, minha amiga,
que a luz, o tempo e o mar desta cantiga
são agora como o vosso amigo:
não têm som, nem cor, nem hora,
só paisagem de fora
como em quadro maior
é a moldura
Ay, canto, ay canto tão parado,
mesmo que o tempo e o mar
não iluminem nada,
deixai-me pelo menos
ficar do meu amigo
algo lembrado
Só se for, minha amiga,
um instante de luz:
que se abrande a cantiga
fiquem lentas as horas
e os sons
E como o tempo e a luz
lhe foram forma,
dele fique o cuidado
Ay canto em canto desolado,
é fraco mantimento esse cuidado,
pois é sem carne ou pele,
e eu queria o meu amigo
devolvido
Não me chega este canto,
cantando o seu cuidado
Bastava, em vez do canto,
o meu amigo, ele:
gentil e imperfeito
E a sua pele –
Ana Luísa Amaral
P.S. Este poema é dedicado ao seu grande e saudoso amigo Paulo Eduardo Carvalho, ver mais aqui
domingo, 2 de outubro de 2011
O Maestro sacode a batuta
O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe ...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
Fernando Pessoa
Última carta de Van Gogh a Léo
Van Gogh
nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar
o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe a mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada
por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol
Al Berto
in A Secreta Vida das Imagens (lido aqui)
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