sábado, 24 de julho de 2010

Sete Pecados de José Almeida da Silva


Hieronymous Bosch " A mesa dos sete pecados"



A exactidão do sal

Não sei falar de pecado. Sei
a angústia da norma – o prazer
do desvio doloroso.

Poetizar o pecado é reinventar
o fino fio da lâmina – consciência
da minha divina humanidade.

Por que chamar pecado ao humano
precipício da acção?

O excesso ilumina a exactidão do sal
que anima a vida.
2010.06.03
José Almeida da Silva



Pão sem fermento?

Por um pecado – não digo o nome –
Percorro quilómetros e desmarco
Compromissos da minha inadiável
Solidão. É a minha perseverança
No pecado – um prazer inexplicável.

Por uma virtude fico estático a imaginar
O futuro. Fica para amanhã o presente.
Também eu. Inexplicavelmente. É um
Doce o pecado, o lado de fora de mim,
Morando dentro, bem no fundo. De mim.

– O que seria o pão sem fermento?
2010.06.04
José Almeida da Silva




Pecado

Pensei nisso depois. Agir é tão diferente
de pensar. [Peca agora e pensa depois.
Assim se tece a teia.]

Pensar é afastar o que faz parte – nasce
assim o pecado. É assim a gramática do ser
gregário – o facto origina a norma e o desvio.

Mas enquanto o acto vai e volta, folga o prazer.
Ser humano é controverso – argila e sopro.

– A sombra é contra-luz.
2010.06.05
José Almeida da Silva




Desconcerto

O desconcerto da norma é sempre
Outro caminho por onde se caminha
Olhando o sol do bem e do prazer –
Manhã primaveril que veste o olhar
E traça o perfil da breve circunstância
Que liberta o ser do deserto da forma
E da elegância.

Não sei se é pecado mas sei que é
Humano.

– E alcança-se assim a divindade.
2010. 06.12
José Almeida da Silva








Sofrimento insuportável

A vida assim é um beco sem saída.
Sem luz e sem sentido é a morte
Arrastando os grilhões do que resta
Sem dó sem piedade sem respeito
Pela dignidade dos ainda fragmentos
De humanidade – Uma tragédia ignóbil
De amor – é assim o inútil sofrimento.

Amei-te a vida toda com um inexplicável
Medo de te perder. Não admira a minha
Estupefacção por desejar-te o fim. A ti,
O meu princípio. A vida [dizem-me] é
Um valor acima de todos os valores.
E sei disso muito bem. Respeito a vida.
Mas eu olhava-te amorosamente e não
Sabia como lidar com aquele sofrimento
Insuportável ao meu olhar, ao meu amor.

Tu sofrias tanto. A luta era tão desigual
Que eu não desejava senão a paragem
Do coração. Do sofrimento. O medo?
– Os insondáveis mistérios da alma
Sussurravam-me o pecado contra a vida.
A luta era agora desigual só dentro de mim –
Sensível à dor do amor, cruel penar,
Ou submisso à utópica metafísica da alma? –
[Aquela que me angustia o dever do amor.]

– Pecado é não amar com o coração.
2010.06.06
José Almeida da Silva




Se eu tivesse um relógio

Se eu tivesse um relógio
Abri-lo-ia para lhe ver as entranhas.

[Há horas de amor e horas de solidão e dor;
Há horas de luz e horas de sombras e elegia;
Há horas de prazer e horas de choro e luto;
Há horas de esperança e horas de amargura e morte.]
………………..

Um dia encontrei o meu relógio que eu não sabia que tinha
Mas que, disseram-me depois, me fora dado na infância.
Então abri o relógio cheio de esperança. Descobri que não tinha
Coração. Pelo menos o coração que tinha na minha infância.
[Pelo menos o que eu acreditava quando era criança.]
Sempre os ponteiros desequilibrados como os pratos da balança
Que pesa os pecados e as virtudes ou a bem-aventurança.

Olhei-o penosamente. Depois deitei fora o relógio. Não me serviria.
Não me compreenderia. Não me orientaria para lugar nenhum.

Sem coração para que serve um relógio? Não sei acertá-lo.
2010.07.01
José Almeida da Silva





Dissonância

É como um maremoto o pecado,
Só força insubmissa da argila deslumbrada,
Dissonância musical da divina humanidade,
E sopro adormecido – a luz da intensa sombra.
2010.07.12
José Almeida da Silva

2 comentários:

josé ferreira disse...

Gostei muito José desta tão profunda e múltipla abordagem do pecado.

José Almeida da Silva disse...

José, Muito obrigado por tudo. Tem sido um verdadeiro amigo. Não só pela sua constante disponibilidade, mas também pela sua indescritível dedicação ao blogue.
Grato pelo comentário e pela amizade.