domingo, 24 de janeiro de 2010

pensando

faz-me pensar
não somos nós mais que muitos?
não somos nós seres únicos? marcas digitais únicas?
reduzidos a números, a estatísticas, a tabelas
decapitados
sem pinga de sangue

faz-me pensar
naquelas órbitas, paradas, sequer névoa
de quem já nada pede, nada quer,
ausente, irreal, na plateia de um filme de cinema
para maiores de nascidos

faz-me pensar
em cada rosto, cada ruga
um contar de histórias sem fim
desconhecidas
em cada perda, um elo se quebra
um nunca mais definitivo

faz-me pensar
todas estas vidas diminuídas em multidão
que nos entram pela casa adentro
sem sequer um "posso?"
e mantens igual o acto maquinal
de levar a comida à boca já tão cheia
de olhos postos em outras tão cheias de
nada
soltas tua culpa com um "coitados!" ocasional
e segues a tua vida
e todos seguem as suas vidas
e o mundo gira e gira e gira

e tu? onde estavas tu?
quando a terra decidiu mostrar as entranhas!
adormeceste em serviço?
esqueceste de proteger os que em ti acreditam?
os poupados agradecem-te!
e os outros? os engolidos pelo cinzento?
esses já nada dizem, só silêncio

faz-me pensar
afinal também tu és
silêncio

Clara Oliveira

4 comentários:

Joana Espain disse...

Obrigada Clara pela bela referência a esta ferida profunda que desta vez se viu. Faz-me pensar também. Um grande abraço.

josé ferreira disse...

Olá Clara
fazia falta este alerta que não deve passar perante tantas "vidas diminuídas" em silêncio e quase nada!

Abraço

José Almeida da Silva disse...

Olá, Clara! Gostei muito do sentido do poema. A solidariedade à flor da alma! A mãe-natureza é mãe e madastra, generosa e cruel. Lembra-nos a nossa impotência perante a sua força universal.
O "tu" a quem o sujeito poético de dirige pode confundir-se com cada um dos homens, um pigmeu face ao gigante universal, a Natureza, movendo os seus atómos à procura de outras formas. Tal como o Homem, a Natureza é responsável por si própria. Assacar-lhe responsabilidades, é uma forma de nos desculparmos da liberdade que nem sempre aceitamos por inteiro.

O milagre acontece quando o ser humano não desiste de si mesmo, aproveitando com todas as forças as condições fortuitas que estão ao seu alcance, nesse imenso silêncio em que a voz da vida soa dentro de nós. A tragédia , essa sim, é, para além de silenciosa, cega e cruel. A tragédia clama sempre no deserto - inspira a piedade e o terror de que se abata sobre nós.

Às vezes, o silêncio é uma homenagem, a mais sentida e a mais humana. Não há palavras para a morte. Mesmo que acreditemos nesse "tu" que o poema invoca.

Parabéns pela oportunidade e pela força do texto.

auxília disse...

...muito comovente. Abraço.