quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Fala de Caim a Deus


Como magoa a morte da inocência,
como dói na alma o bico faminto dos abutres,
como aterra os meus ouvidos o grito de aflição,
e o teu olhar, Senhor, na luz do céu ofendido;

Tudo, Senhor, porque me desprezaste a mim
e à minha dádiva e encheste de graça o meu irmão
a quem levantei a minha mão pesada de ódio e vingança.

Não é somente minha a culpa que carrego e não nego
o ciúme sagrado que me mancha e o medo de me ver
proscrito e condenado à errância e ao meu pecado –
penosa peregrinação de penitente ao olhar matador
de toda a gente que hei-de encontrar pelo mundo fora.

Não sei se sou capaz de olhar a luz do sol de cada dia
e cavar a terra tão a oriente deste Éden
de onde foi desterrada a alegria.

Senhor, o teu sinal será para mim indelével estigma
que livra e que castiga o meu crime cruel
pois nem a vida errante me redime.

3 comentários:

José Almeida da Silva disse...

Não fui capaz de inserir a pintura que inspirou este texto. Trata-se da pintura de Corinth Lovis 1917. Peço desculpa.

josé ferreira disse...

José gostei muito quase um tribunal em que transparece também a culpa de Deus causador de pecado e a errância na primeira pessoa assumida por Caim.conseguimos acreditar nas palavras que ele diz.

Abraço

Ana Luísa Amaral disse...

Belo texto, José! O destino comum da perda da inocência está aqui muito bem esboçado. Muito bem.