quarta-feira, 18 de novembro de 2009

(Des)inspiração

Andei a manhã toda pela cidade.
Entrei e saí vezes sem conta
De casas de comércio adiado –
Quis desistir mas já não tenho idade –
A procurar metáforas e hipérboles
Imagens e antíteses, oxímoros e quiasmos:
– Não temos, era a resposta pronta,
E eu pensava, mas aonde se meteram
Agora todas essas figuronas tontas?
Não creio que tenham ido para o Brasil,
A viagem é cara, e já não há pilim.

Nas casas de comércio ofereciam-me
– Era só o que tinham em stock – vírgulas,
Pontos, telas e agulhas de croché,
Os fios tinham esgotado e não tinham
Palavras disponíveis no mercado
E não sabiam aonde ir encomendá-las –
Era denso o nevoeiro. Sim, o mesmo nevoeiro
Com que a noite inteira me tinha debatido
Quando quis escrever e o travesseiro
Me usurpou as poucas ideias que ainda tinha,
Trouxera-as da guerra em 73 da longínqua Cabinda.

Andei a manhã toda pela cidade. E quase ao meio-dia
Dei de caras com as palavras que então procurava:
Estonteadas e em desequilíbrio precipitaram-se
No abismo. E eu sem cordas para poder içá-las
E nem um só fio para as entrelaçar – um mar opaco
Para desvendar, e eu sem Barco, sem Remos, sem Luar.
2009.11.15


Haikai

Denso o nevoeiro
O longe sem horizonte
– Sem boieiro a fonte.

José Almeida da Silva

5 comentários:

Clara Oliveira disse...

Adorei a ideia de andar às compras de palavras. É um contar de histórias muito bem conseguido.
Quanto ao Haikai, vejo a desorientação das palavras que não têm quem as guie. Bj

josé ferreira disse...

José gostei muito desta viagem de cidade, senti-me impelido a sair por aí e procurar nesse comércio
irreal e sedutor, como quem escolhe uma camisola, a cor e o feitio, a procura dos poemas, das suas várias e necessárias substâncias: "vírgulas"," "pontos", "fios", "agulhas de croché", etc.
um ritmo de desespero que atravessa
o poema e contamina o leitor.
Também gostei do haikai no escuro navegar das palavras.
Abraço

Joana Espain disse...

Olá José adorei este poema. Essa busca pelas casas comerciais da matéria do poema é muito boa. O 73 (algarismos) de Cabinda...e no final em letra maiúscula o Barco Remos e Luar como quem diz eu parto para inspiração no dia dia (já que era sobre falta de inspiração o poema e andam todos à volta agora destes imagismos:))) mas as minhas palavras líricas aparecem ainda com letra maiúscula! Especulando claro. Gostei mesmo muito José. Um abraço

Ana Luísa Amaral disse...

Gostei muito da ideia do poema: à venda os conectores; as palavras, esgotadas. Interessantíssima a sequência "vírgulas / pontos, telas e agulhas de croché". A levíssima ironia das maiusculas finais (as palavras "autorizadas" de dizer, as palavras da poesia introspectiva, os figurinos convencionais...), que desmentem as palavras anteriores todas, essas, sim, as, não figurinos, "figuronas tontas", o corpo do poema. Parabéns! Nota: só não gosto muito da palavra :) :) "estampar" no contexto

Ana Luísa Amaral disse...

Esqueci-me do haikai: muito sugestivo.