quarta-feira, 22 de abril de 2009

Uma história de candelabros

Amanhece
nasce o discurso ínfimo de recados
no início de um dia impuro cínico
de argumentos cobertos de neblina
não desejável não correcto
na procura da cura
posologia tão mínima que rasa
no tamanho o grão de milho
na dimensão do silo.

E tudo na mesma
sem sentido sem poema
como gota de geleia em caramelo
na borda do frasco de tampa seca.

Anoitece
desfiam-se folhas de alface rodelas de legumes
na salada fresca de água corrente
juntam-se cogumelos fatiados
a receita de um fio de azeite e gotas azedas
tudo se rebola na taça em cima da mesa.

O silêncio no ruído das notícias
como avalanche e certeza
que ao fim de tantos anos somos
somos apenas
uma história de candelabros
esguios apagados vazios.

Tudo começou na auréola de um crepúsculo.

Era tarde a praia deserta e trinta e um
nas águas tépidas de um Junho algarvio.
Contei-os antes do mergulho de pés molhados
à distância do pontão: trinta e um.

As gotas escoavam acendiam a pele luminosa.
Os cabelos eram limos confusos
na toalha amarela nos reflexos do sol.
Os dedos longos arqueados em brilhos de concha
distendiam em espaços uma chuva míuda de areias.

Trinta e um de novo no regresso mais junto
colocando a sombra o arrepio o pressentimento
paralelo entre o meu e o teu corpo.

Nesse fim de tarde nessa noite cada um seguiu
o seu caminho.

Na manhã seguinte uma mesa ao lado no hotel
a toalha branca a meia-de-leite o croissant
sumo de manga uma torrada e a geleia.
Foi o doce o argumento no presente
no guindaste leve do meu braço.
Usaste o charme como fala do destino
uniu palavras ideias nas areias afundadas
quando a espuma deixa o seu falar liso
e se afasta num jogo subtil que nem sempre
se entende qual o caminho: se nos falta
o areal ou se escorregam mais e mais
as ondas de caracóis nos embalos do mar.

Foi a tarde mais longa na volta das dunas
no disfarce nas cortinas dos arbustos.
Guardo imagens precisas não difusas
do puzzle descomposto de peças tuas.

Era um fruto de cidade tu mais aldeã:
" Gosto das maias que afastam os demónios
nas fechaduras, não gostas?"
Nem sequer conhecia e como esta outras
histórias. Deslumbraste as rotinas
de cafés negros jornais livros
nos fumos das nicotinas.

Naquele verão no intervalo das férias
disseram meus pais: "Vem!" eu nada sabia
passei a noite no comboio de mão dada
em misturas de saliva com uma menina algarvia.
Adormeci no seu ombro "pouca-terra...pouca-terra"
era já de madrugada. Acordei e disse adeus
na estação de Tavira.

De seguida trinta e um consequência
a praia o pontão o hotel o crepúsculo
da primeira vez.

Um fim-de-semana e foi preciso um mês
no juntar novo de brisas dos candelabros
de velas imóveis e mais cinco anos de chamas
sem derreterem as ceras fortes únicas
até aos dias de consumos vastos
só saciados no desacato das cinzas.

Anoitece
agora passaram mais cinquenta
e se por vezes falas ao meu ouvido
apenas escuto as memórias e o som
ininterrupto do silêncio
na distância de dois candelabros
entre a salada e a indiferença
sem sementes de futuros de existência
sem os fetos e as heras esquecidas
na circunstância de não sermos mais
e ser apenas dois candelabros vazios.

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