domingo, 3 de julho de 2011

Os Cavalos de Danaan





"A primeira obra que Ellen lhe desvendou seria uma tela a óleo, de grande formato, representando "Os Cavalos de Danaan". Era um tropel violento de fogosos animais, composto por chamas que se entrelaçavam, providos de arreios de ouro e ferraduras de prata, e com um diamante incrustado na fronte. Montavam-nos raparigas de cabelos loiros, e mantos ao vento, brandindo cada uma a sua lança, e galopando em direcção a um abismo entre duas escarpas de espinhos e pedregulhos.....
Decorridos longos minutos porém, subitamente desinteressada da apresentação da sua arte, a qual ia arrumando sem esmero particular, Ellen pediria ao nosso poeta que lhe falasse em português. Tomou-a nos braços, e foi-lhe segredando ao ouvido esta lengalenga, emergida de um passado que não conseguia fixar no tempo. "Pedro primeiro monarca/do mar de cá e de lá..."

Mário Cláudio " Tiago Veiga - Uma Biografia" D. Quixote 2011

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Metade do Mundo


David Hamilton



Todas as noites ela vinha ter comigo
Eu cozinhava para ela, servia-lhe chá
Ela tinha trinta e tal naquela altura
conseguira fazer algum dinheiro, vivera com homens
Deitávamo-nos para dar e receber
debaixo do mosquiteiro branco
E uma vez que nenhuma contagem começara
vivíamos mil anos num só
As velas ardiam, a lua descia
a colina polida, a cidade leitosa
transparente, sem peso, luminosa,
destapando-nos aos dois
naquele chão fundamental,
onde o amor é fortuito, desatado, desencarcerado
e do mundo perfeito se acha metade

Leonard Cohen " O Livro do Desejo" Quasi 2008

Fragmento X - A espera


Matthias Schriefl - © by: ACT / Gerhard Richter

"...o acto I; está cheio de suposições: e se tivesse havido um mal-entendido quanto à hora ou lugar? Tento recordar-me do momento em que se combinou o encontro, dos pormenores que foram acordados. Que fazer (angústia de acção)? Mudar de café? Telefonar? E se o outro chegar durante estas ausências? Não me vendo, pode partir de novo, etc. O acto II é o da cólera; dirijo violentas censuras ao ausente: " Apesar de tudo, ele(ela) bem teria podido..." "Ele (ela) bem sabe..." Ah! se ela (ele) ali estivesse, para poder censurá-lo de ali não estar! No acto III, atinjo (obtenho?) a angústia pura: a do abandono; acabo de passar, num segundo, da ausência à morte; o outro está como morto: explosão de luto: estou interiormente lívido. Assim é a peça; pode ser encurtada pela chegada do outro; se chega durante o acto II, temos uma "cena"; se chega durante o acto III, é o reconhecimento, a acção de graças: respiro profundamente, qual Pelléas a sair do subterrâneo, reencontrando a vida, o perfume das rosas.

( A angústia da espera não é continuamente violenta; tem os seus momentos mornos; espero e tudo o que rodeia a minha espera está salpicado de irrealidade: no café, vejo os outros que entram, cavaqueiam, gracejam, lêem tranquilamente: esses não esperam)

A espera é um encantamento: recebi a ordem de não me mexer."


Roland Barthes " Fragmentos de um discurso amoroso " Ed. 70

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Um poema de Miguel - À Beleza




Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Nem te curvas no jogo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses, o sorriso das pedras
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.
És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És o verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.
És a beleza, enfim! És o teu nome!
Um milagre, uma luz , uma harmonia,
Uma linha sem traço…
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço!


Miguel Torga "Odes" 4ªed. 1977

se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu


Tamara Lempicka

se alguém disser que morri, avança até à varanda do céu,
escuta a noite e recolhe o meu corpo da espuma dos planetas.
não deixes que o meu rosto se dissolva nas tuas mãos,
insiste no meu nome até que o mar ascenda à tua boca.
e de luar em luar celebra o coração que fiz teu, mudamente,
como se o amor fosse sobreviver às veias paradas de sangue.

Vasco Gato "Um mover de mão" Assírio & Alvim

terça-feira, 28 de junho de 2011

Um poema de Emily - Vou dizer-te como nasceu o Sol


Annie Leibovitz

Vou dizer-te como nasceu o Sol -
Uma Fita de cada vez -
Os Campanários nadando em Ametista -
As Notícias corriam, como Esquilos -
Os Montes desatavam os Chapéus -
As tristes-Pias - começavam a cantar -
E eu disse baixinho, para mim -
"Há-de ter sido o Sol!"
Mas como ele se pôs - isso não sei -
Parecia ser escada carmesim
Que meninos e meninas de Amarelo
Estivessem a subir e a subir -
Até que chegando do outro lado,
Um Pastor todo vestido de Cinzento -
Erguesse suave as Trancas da noitinha -
E levasse consigo o seu rebanho -

Emily Dickinson "Cem Poemas" Relógio D'água Trad. Ana Luísa Amaral

segunda-feira, 27 de junho de 2011

a carta, Brahms e um quadro



escutava as quatro baladas de Brahms
enquanto colocava um pouco mais de cor
na tela incompleta em frente da janela.

as mãos lentas mas precisas no rigor minucioso das linhas
preenchiam as quadrículas pré-estabelecidas,
fruto de um impulso indefinido e interior
talvez ditado por Atena ou uma outra deusa que desconhecia;
construía uma rainha vestida de ganga
de olhar penetrante e sapatilhas laranja.

três meses de distância -
naturalmente as chuvas permaneciam assim como a melancolia;
a carta, a carta a meio que havia escrito um destes dias -
procurava sossegar as dúvidas, construir o refúgio -
uma pintura -
e os dedos de Ashkenazi colados na música -

colocou mais azul e um pouco de branco;
um não excesso de céu porque sem nuvens só o deserto
um chapéu de palha, largo,gasto
uma trança de lado, índia, e um laço
percorrendo o ombro; esquerdo ou direito?
pensou um pouco -

nada de prédios, um lugar fora do tempo, diferente
um campo feito de silvas, arbustos , árvores -

o sol percorreu a esquina do telhado
tornou-se forte em frente da janela e deixou a sombra
primeiro no piano e depois ao longo do gato branco;
sentia-se cansado como se tivesse lavrado um campo
cavado um poço ou erguido em pequenas pedras de granito, um muro -
puxou uma cadeira, sentou-se pesado como um tronco
um braço sobre a mesa -

uma luz, uma pequena luz, oscilava lenta
como se do quadro um pêndulo
um, dois , um , dois, a hipnose -

uma aragem percorria os fios unidos do cabelo
e invadia no quarto os cantos da parede -

na intimidade do quadro as árvores tinham copas vermelhas
as folhas eram amarelas e as flores verdes -
as mãos, as mãos eram brancas -
o brilho nos olhos, flamejante -
os lábios falavam -

a carta, estava muito cansado, a carta -
a carta, Brahms, o quadro -

José ferreira 26 Junho 2011

Puma Bartolomeu Júpiter



Puma Bartolomeu Júpiter acaba de receber, summa cum laude, a maior ovação da sua vida. É uma torrente eléctrica de mãos na intermitência histérica e sublime dos aplausos, uma plateia antiga que ergue do nada um exército de rostos convencidíssimos e cauterizados, entre o rigor atrófico, a inveja fúnebre e a transpiração, e, como se isso não bastasse, o estertor das palmas das mãos de quem, finalmente, compreende, sofre um verdadeiro ataque de compreensão e fornece, por isso, ao escândalo protocolar, uma dose extra de cinismo e elegante mal-estar.
A tese de Júpiter é aparentemente muito simples: Júpiter provou que o amor dissolve-se no sexo, antes mesmo de lhe tocar. Partiu primeiro e até por intermédio das analogias da ingenuidade do composto fictício de Asimov, a “thiotiomoline”, composto este que se dissolveria em água antes mesmo de lhe tocar, e transferiu as propriedades da “thiotiomoline” para o amor e as da água para o sexo.
À forçosa semelhança de Asimov, Júpiter acreditava que o amor (100% solúvel no sexo) antecipava materialmente a sua solubilidade, porque, é ele que escreve, “há no composto raro do amor um registo espacio-temporal cindido, onde o átomo de carbono cria ligações químicas apaixonadamente reactivas à estabilidade física geral”.
O mundo não teria mudado sem esta tese de Júpiter. A sua invenção foi de tal forma sobrevalorizada, o nome de Júpiter foi tão ouvido e citado, dentro e fora da academia, que tudo se tornou previamente solúvel em tudo, tudo com o seu átomo de carbono instável, tudo com a sua face dupla e miserável, tudo com a sua insurreição temporal.
“Há um momento – pensa Júpiter, esmagado pelos aplausos – há um momento em que alguma coisa me leva a descrer profundamente na espécie humana. É como que se eu não fosse inteiramente solúvel nela e nos seus e nos meus argumentos armados viesse à tona o cadáver louco da sua antecipação.”

domingo, 26 de junho de 2011

Inscrição - Escrever um poema é ensaiar uma magia menor


Salvador Dali


Escrever um poema é ensaiar uma magia menor. O instrumento dessa magia, a língua, é assaz misterioso. Nada sabemos da sua origem. Só sabemos que se ramifica em idiomas e que cada um deles consta de um indefinido e mutável vocabulário e de um número de possibilidades sintácticas. Com esses inacessíveis elementos formei este livro. ( No poema, a cadência e o ambiente podem pesar mais do que o sentido).
É seu este livro Maria Kodama. Precisarei dizer-lhe que esta inscrição compreende os crepúsculos, os cervos de Nara, a noite solitária e as populosas manhãs, as ilhas partilhadas, os mares, os desertos e os jardins, o que o esquecimento perde e o que a memória transforma, a alta voz de almuadem, a morte de Hawkwood, os livros, e as gravuras?
So podemos dar o que já tivermos dado. Só podemos dar o que já é do outro. Neste livro estão as coisas que sempre foram suas. O mistério que é uma dedicatória, uma entrega de símbolos.

Jorge Luís Borges ”Os conjurados” Difel 1985

sábado, 25 de junho de 2011

uma pequenina luz de Jorge de Sena




Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.



Jorge de Sena
1919-1978

Antologia Poética
Jorge de Sena; edição de Jorge Fazenda Lourenço
Guimarães Editores

sexta-feira, 24 de junho de 2011

não queiras acordar as palavras durante o dia



não queiras acordar as palavras durante o dia, dormitam
vê como respiram -
depois a lua abre os olhos e as palavras esticam os braços
vê como espreguiçam -
e juntam-se em células de escrita como um tecido;
depois um corpo e um outro ainda
vê como se alinham -
tornam-se fortes, ao sul, ao norte
e preferem o mar que é vasto, largo, infinito -
vê como ensinam os ecos redondos
e escrevem um caminho
pelos reflexos brancos das ondas
iluminando as sombras negras, as culpas em fatias
esquecendo tudo e voando por cima -

vê como descansam, agora que é de dia
vê como voltam pela noite, suaves e invisíveis
rodeando
os teus olhos de Afrodite, o teu corpo de ninfa
e caindo
na prata das mãos, no ouro das linhas
como chuva de sedas, escorrendo na forma de letras
a cor permanente das tintas
e subindo, de seguida, pelo tronco dos cabelos aos ramos dos ouvidos
soprando o vento azul dos sensíveis, os versos, invisíveis;
uma cortina de lábios
por todos os lados, em uníssono
desfolhando as pétalas dos poros, síncronas e decisivas -

as palavras incompletas são como as malhas de Penélope
os versos, como os trabalhos de Ulisses
quanto ao pêndulo do tempo, não diz quando
mas pelo sal doce das vagas e pelo salto dos golfinhos
anuncia Ítaca -


José Ferreira 23 Junho 2011

quarta-feira, 22 de junho de 2011

a explicação do silêncio


Robert Doisneau

não saberia explicar o silêncio
o qual, no maior ruído absolutamente inaudível
não representava a desistência unívoca;
se de um lado um véu sem cor cobria as cortinas
do outro o deserto sem janelas e os raios fulminantes
fixavam ainda mais a frescura das palavras antigas;
a descer as nuvens, a percorrer planícies, a subir montanhas
e por fim, a seguir os rios pelos ombros comprimidos
até ao diminuir das ondas, o torná-las pequeninas;
tempos bons, tempos plenos, um mar liso -

não saberia explicar o silêncio
os dias eram os mesmos, gradualmente recuperando as margens de luz
nos passos que se arrastavam pelas sombras das árvores verdes
ou nas corridas forçadas por uma ordem, a mensagem, uma rotina de cidade;
a filosofia não explicava, não dava a anterior certeza da seta
de dias luminosos, permanecia a incerteza
e uma certa imobilidade ímpia, um céu escuro, de dia -

não saberia explicar o silêncio, o eclipse
quando o olhar se cruzasse de novo no preto e branco das fotografias
não saberia apagar o incêndio, os dias dolorosos de searas queimadas
dentro dos infinitos da pele irrigados nas artérias de versos
pelo lado de dentro, absolutamente imperceptível
exteriormente -

agia na transparência do rosto, suave no face a face;
um ligeiro levantar dos lábios, um sussurro sempre que alguém
uma palavra, sempre, uma frase mais completa e de sentido, sempre
quando alguém, alguma, ou mesmo uma chamada, do outro lado da linha
sempre, quando alguém se lhe dirigia e pretendia escutar o fim de um silêncio
tão calado, cronometrado no tic-tac ; um passo, dois passos.
por vezes imaginava, interiormente, um submundo de operários de Metrópolis
acertando as luzes nas múltiplas janelas dos prédios que invertiam os abismos
e reflectiam uma prosperidade oca de viadutos, estreitos, sem fim
verdadeiros labirintos mudos cortados pela força sonora dos violinos
dos metais, dos ruídos rufados de uma tumba de percussões
que invadiam as massas por entre danças hipnóticas nos destroços da máquina
enquanto o dilúvio ameaçava a barca dos últimos filhos -

não saberia explicar o silêncio, de mais um dia
uma multidão de tempo nos ponteiros da vida, minutos falecidos, gastos
sem qualquer substância, sem alimento entre o pensar e as mãos
sem um coração pelo meio que ditasse nos subúrbios da razão
o lugar das reticências, as gotas d’água sensíveis nos olhos irreflectidos -

não, não saberia nunca explicar o silêncio
nem a enorme força interior - a anterior chama ardente que iluminava os dias
seda, semente e nascente de tantas palavras que brotavam multifacetadas
surpreendentes, em muitas cores de tulipas, em esguias e humanas
estrelícias, palavras vaporizadas na delicadeza impregnada de bons perfumes,
de jacintos, de rosas laranja, de jasmins;
e por vezes as pálpebras caíam no sonho profundo de ter os pés elegantes
percorrendo as imperceptíveis marcas no soalho, deslocando-se pela sala
numa valsa, uma dança, de rosto direito e olhos brilhantes;
aquele desejo não realizado de decidirem qual o canto iniciático
e percorrerem um a um, rodando, rodando, rodando, todos os cantos
todos os outros cantos, esvoaçando e esvoaçantes.


não saberia explicar o silêncio
nem até quando -

surgiu de súbito uma ambulância branca de lâmpada acesa
em gritos de cruz vermelha, e todos os habitantes da rua
viraram a cabeça, rodopiando;
um táxi parou junto ao passeio e despejou uma senhora de lantejoulas
um mendigo exigiu a presença de um euro
uma criança de dois anos correu para uma Collie altiva
um carteiro de ar indeciso reviu o jogo observando as cartas
e entregou-as certas, duas para o 1º esquerdo, três para o 5º, à direita

a cidade em cada minuto apresentava um quadro, movimentava-se
mas mesmo assim, envolvido na massa
não saberia explicar o silêncio, a ausência
sentiu um manto de tristeza naquela hora de ponta -

primeiro a vibração móvel, depois a música de Viena
procurou, procurava, onde estava?
na montra da loja um cinema mudo de um noticiário
não era tarde, acertou o ritmo dos passos, quase voava
não sabia como, quase voava -

um carro travou de repente, um quase acidente
um som de flauta numa janela aberta repetiu uma estrofe de pauta
uma quase música
um casal de namorados abraçava-se e quase juntou os lábios
passou um autocarro de dois andares.

quase voava,quase voava, os pés apressados.
chegou. a campainha tocou.
a cortina de renda com o cisne do lago, oscilou.
uma cadeira de baloiço abandonada. alguém descia.

uma brisa amenizava o suor na camisa. sorria;
o primeiro dia de há muitos dias -


José Ferreira 21 Junho 2011

terça-feira, 21 de junho de 2011

O tempo presente e o tempo passado


Fotografia de Exposição "José Barrias" em Serralves



O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?
Depressa, disse a ave, procura-os, procura-os,
Na volta do caminho. Através do primeiro portão,
No nosso primeiro mundo, seguiremos
O chamariz do tordo? No nosso primeiro mundo.
Ali estavam eles, dignos, invisíveis,
Movendo-se sem pressão, sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E a ave chamou, em resposta à
Música não ouvida dissimulada nos arbustos,
E o olhar oculto cruzou o espaço, pois as rosas
Tinham o ar de flores que são olhadas.
Ali estavam como nossos convidados, recebidos e recebendo.
Assim nos movemos com eles, em cerimonioso cortejo,
Ao longo da alameda deserta, no círculo de buxo,
Para espreitar o lago vazio.
Lago seco, cimento seco, contornos castanhos,
E o lago encheu-se com água feita de luz do sol,
E os lótus elevaram-se, devagar, devagar,
A superfície cintilava no coração da luz,
E eles estavam atrás de nós, reflectidos no lago.
Depois uma nuvem passou, e o lago ficou vazio.
Vai, disse a ave, pois as folhas estavam cheias de crianças,
Escondendo-se excitadamente, contendo o riso.
Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano
Não pode suportar muita realidade.
O tempo passado e o tempo futuro
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.


T.S. Eliot (Trad. Maria Amélia Neto)

domingo, 19 de junho de 2011

Créme de La Creme


Livro de Nuno Brito apresentado pelo Prof. Arnaldo Saraiva




Aconteceu a uma irmã de Medusa cortar

os dois pulsos com vidro e esperar assustada em frente ao espelho,

Percebeu que não era sangue que lhe saía dos pulsos mas musgo,

Dos pulsos lácteos nascia-lhe musgo verde e fresco, que torneava o azul

das veias mais pequenas, musgo verde e fresco como das fontes de Minos, então voltou

a olhar-se ao espelho e percebeu que não podia morrer

Não por já estar morta, mas por estar condenada à mais doce pena, a de renascer

sem dar conta disso; o que a olhava no espelho beijou-lhe os pulsos, lambeu o fresco

musgo cheio de vida; ela deitou a cabeça no peito do que faz adormecer e sentiu o seu

batimento cardíaco. Beijou-o e lambeu-lhe os pulsos frescos e quentes,

Então ela riu-se e bebeu vinho de Marsala e com vinho de Marsala desenhou nas costas

do que faz adormecer, uma letra e outra letra e outra letra – Mandou que lhe

trouxessem papoilas e margaridas, algumas comeu, com outras decorou o cabelo


Nuno Brito

Fragmentos IX- Na calma dos teus braços amantes

É pois um apaixonado que diz:

"Na calma de dos teus braços amantes"(Jean Lahor)


Marc Chagall 1916


Abraço: O gesto do abraço apaixonado parece preencher, num momento para o sujeito, o sonho da união total com o ser amado.

Roland Barthes "Fragmentos de um discurso amoroso", Ed. 70, 1981