sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Trago-te ao espaço da janela




Trago-te ao espaço da janela.
De novo surgiram deste lado da rua.
Em voz baixa disse «uma alucinação». A
única resposta foi entrar em casa
subir ao quarto mudar de roupa
ser jovem com quem soube bem ser jovem
sábio com quem quiseste ser sábio
velho com os velhos.
Trago-te para perto da janela
o rio vê-se daqui.
A cor da terra circula.

«Talvez seja a morte» «não»
«se for a morte o coração baterá mais ou menos forte».
O corpo
não tem grande lugar.

João Miguel Fernandes Jorge, in "Meridional"

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Je pense à toi ( poèmes à Lou)


Salvador Dali " Cabeça de nuvens" Dali 1936



Je pense à toi mon Lou ton cœur est ma caserne
Mes sens sont tes chevaux ton souvenir est ma luzerne

Le ciel est plein ce soir de sabres d'éperons
Les canonniers s'en vont dans l'ombre lourds et prompts

Mais près de toi je vois sans cesse ton image
Ta bouche est la blessure ardente du courage

Nos fanfares éclatent dans la nuit comme ta voix
Quand je suis à cheval tu trottes près de moi

Nos 75 sont gracieux comme ton corps
Et tes cheveux sont fauves comme le feu d'un obus
qui éclate au nord




Penso em ti minha Lou teu coração é a minha caserna
Meus sentidos são teus cavalos tua memória é minha luzerna

O céu está cheio esta noite de sabres de esporas
Os artilheiros partem na sombra carregados e prontos

Mas a meu lado vejo constantemente a tua imagem
Tua boca é a ferida ardente da coragem

Nossas fanfarras eclodem na noite como a tua voz
Quando vou só a cavalo trotas a meu lado

Nossos 75 são graciosos como o teu corpo
E teus cabelos são fulvos como o fogo de um obus
que rebenta a norte.

Guillaume Apollinaire, IV, Poèmes à Lou

ápice


Man Ray " O violino d'Ingrés" 1924


revela-se uma unidade de destinos;
folhas pousadas no chão no seu último registo
como as dos plátanos , tão coloridas
e passos por cima naquele olhar angular e dirigido –

libertam-se os fumos dissonantes, subjectivos, a divagação das pinhas
quando ainda próximas de chuvas e vento, não à muito tempo
na presença alta dos pinheiros, enquanto
enquanto não se assume a intenção e o segredo;
a chave de miríades sensitivas, a essencial filosofia
a imponderável e permanente chama;
silêncios e paralelismo –

as águas da nascente foram titubeantes
quase presas, de poucos avanços, sem ganhar terras
sem descer montes, sem ganhar leitos, sem ver as pontes –

as águas da nascente são longas, largas e fluídas.
as margens ? de árvores tatuadas
inscritas de símbolos, marcas íntimas –

os pássaros planam planos por sobre
as curvas insinuantes e rumorosas do agora rio.
as rochas arredondam-se e despem-se sem frio.
separam-se as ausências e cessa o grito
a voz rouca do céu , do relâmpago, tão bravio –

destino uníssono
múltiplos dias de melopeia
linhas do mesmo linho
cordas de um piano
teclas agudas de um violino
ápice desvelado sem neblina –

passou pouco tempo. bem sei.
mas o que é o tempo?
o que vale o tempo?
senão o recíproco ?
quando recebemos e somos dádiva
no signo, na alma, na transparência

como quando se chora de alegria –

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Caligrama





reconheça
essa adorável pessoa é você

sem o grande chapéu de palha

olho
nariz
boca

aqui o oval do seu rosto

seu lindo pescoço

um pouco
mais abaixo
é seu coração
que bate

aqui enfim
a imperfeita imagem
de seu busto adorado
visto como
se através de uma nuvem

( Tradução retirada de um site "Antonio Miranda")

era adepta do ritmo seguro dos plátanos




“… era adepta do ritmo seguro dos plátanos, defendia a botânica. Primeiro com o pai, depois com o marido, gostava de passear pelos campos. Ao observar um sobreiro, reconhecia a sua própria natureza. Ao observar uma erva acabada de nascer, também; ao observar um pardal, também; um pavão, também; um girassol, também; um choupo, também. “ pág. 38

José Luís Peixoto “Livro” Quetzal

domingo, 17 de outubro de 2010

impera o enigma nas páginas brancas do pensamento


Paul Klee "angelus novus" 1920

folhas secas anunciam o ruído na demorada estação, descalça
nos pés rugosos das árvores, em canteiros redondos, de pouco espaço .
nos passeios a permissão abandonada de castanhos e verdes desbotados
um fim de tarde, ruas estreitas, sombras, grandes –

passo a passo, por cima de vestes despidas durante o dia
que ramos sacodem em voo breve e nervoso, sem calma ;
as folhas caem sobre os quadrados repetidos
quinze centímetros, os quadrados repetidos –

é tarde, impera o enigma nas páginas brancas do pensamento
o frio avança, move-se sobre a garganta e as folhas cantam -

o outono abre o sabre sobre o corpo qual cortiça flutuante
golpeia a água de onde se soltam gotas, impulsivas e reconstruídas
na dimensão de resistência que sempre alcançam, a mesma forma;

limites infinitos e o oceano –

sábado, 16 de outubro de 2010

Ode à paz



Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

Natália Correia

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

esta estranha surrealidade não tem nada de Breton




esta estranha surrealidade não tem nada de Breton
de Guillaume, a genialidade de Almada.
homens vulgares de palavras fáceis e actos regulares
de pecadores institucionais

não se compreende estes mortais que amealham
a benesse de serem lei e serem temporários
como lobisomens enformados de uivos
na noite escura e sem orgulho
de em duas metades, uma ser viva e articulada
e uma outra surreal e só cadáver –


(uma meditação de revolta não pela política mas por causa dos políticos)

Em comunhão com ninguém



Um convento fica longe da necessidade do mundo,
mas o amor fica ainda muito para lá do convento.
É como se não houvesse estradas para amar, ou pés
suficientemente descalços sobre as incandescências
da ausência,
e a reclusão no amor fizesse ela própria votos
de pobreza extrema,
escrevesse um diário da ingratidão
com o desmazelo,
e chegasse a uma fórmula de desviver
honestamente em comunhão com ninguém.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Quando me cansei de mentir a mim próprio


Van Gogh "A cadeira de Gauguin" 1988


Quando me cansei de mentir a mim próprio,
comecei a escrever um livro de poesia.

Foi há duas horas que decidi, mas foi há muito
mais tempo que comecei a cansar-me. O cansaço
é uma pele gradual como o outono. Pausa.

Pousa devagar sobre a carne, como as folhas
sobre a terra, e atravessa-a até aos ossos,
como as folhas atravessam a terra e tocam
os mortos e tornam-se férteis a seu lado.

A cidade continua nas ruas, as raparigas riem,
mas há um segredo que fermenta no silêncio.
São as palavras, livres, os livros por escrever,
aquilo que virá com as estações futuras.

Há sempre esperança no fundo das avenidas.
Mas há poças de água nos passeios. Há frio,
há cansaço, há duas horas que decidi, outono.

E o meu corpo não quer mentir, e aquilo que
não é o meu corpo, o tempo, sabe que
tenho muitos poemas para escrever.

(José Luís Peixoto, in "Gaveta de Papéis"/ Edições Quasi)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

sim - de um e de outro lado do sentido


Max Ernst "Vox Angelica" 1965


sim, sem a contrariedade de um mal formado vento
afirma-se o tempo elíptico, o irregular diâmetro
o círculo incompleto;

vejo no fundo dos teus olhos a dinâmica da íris
a cor clara e líquida que transporta os mundos
e um pêndulo de arames, gigante
que oscila de encontro à névoa, sem ruído
oscila, e oscila, e oscila, mudo;
não ganha a forma breve do desvario
nem o discurso de um tempo exacto e límpido
surge de um e de outro lado
de um e de outro lado do sentido, o pêndulo
oscila, e protege e solta e larga e observa
e prende e imana como espada e como escudo

de um refúgio recíproco e dádiva azul –

Poetria/ Café Progresso

do urubu e da gaivota

a dele deitava-se negra


e desistia do ar devagar


a dela tremia de espuma


ao ângulo de um outro quebrar


e sem que as árvores os vissem


trocaram em asas caladas


a terra pelo mar

terça-feira, 12 de outubro de 2010

perguntou porque a palavra saiu destituída de sonho




duas vezes repetiu a palavra, real e objectiva
para que não mais caíssem linhas cortadas, águas
de gravidade, sem transparência, sem limpidez
sobre a boca de terra húmida e fértil.

decidida e triste virou o olhar, ferida
contrária ao que supunha escrito.
não gostou, achou vulgar, perguntou porque
antes e de outra forma não lhe falou de fogo no lado direito
da mistura de cores branca e rubra cobrindo o rosto
de uma viagem de joelhos, mãos estendidas
o estado febril, suor por dentro, palpitações de galope
voos de asas à volta dos postes, canções na língua de Jacques
um jardim de plantas de firmes raízes, flores descosidas
intermediárias e interventivas
um poema escondido sobre buganvílias, brancas e suspensas.


uma maçã luzidia rolou em desafio
indício, provocação, porque … a palavra, por duas vezes
saiu destituída de sonho, perseguida sem arte pela ausência emotiva
falta de sensível, insólida, inconstruída.

ergueu-se a nuvem de pó cinzento, ruiu o castelo
paus e espadas, as cartas negras de um baralho
sem vislumbre de ouro ou prata

e o tapete alado desfiou no peso plúmbeo da palavra
vulgar, repetida, por duas vezes, sem intervalo –

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

espumas

aquela direcção de espuma branca e sigo

o mar sobe-me pelas pernas

enquanto desce espreita

e de lado repete

é morno e sei que brinca

e a minha mão vai abrindo devagar

de polegar inútil ao líquido


de lado ele faz e desfaz as costas

e as pernas do meu desenho

molhado em séculos ao mesmo som

gasta tudo o que repete

e deixa-me as pernas vazias


é então que nesse espaço solto

entre ossos e mar

nasce devagar um engano de carne seca

de peso a quatro vezes a espinha


e o mar agora só sobe sem som

perpendicular a mim - a espuma

e uma cama velha de coral