quinta-feira, 26 de agosto de 2010

As Causas


Vermeer 1675 National Gallery Londres


Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Jorge Luis Borges "História da Noite"
Trad. de Fernando Pinto do Amaral

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A uma passante (no facelessbook)





Não há crítica que convença
o cinema da minha cegueira
quando o teu corpo todo é usado
a favor de uma estátua com cílios.

Todas as imagens são filhas
da filtragem da luz do sol
e da minha introversão,
que entretanto
se encontrou finalmente
perdida.

Porque na realidade nunca te despes.
E nas tuas fotos do Facelessbook
estás demasiado convencida
que a noite não te trará nem mais um chapéu
proibido onde possas pousar a cabeça
e a fotogenia.

Ocultas o rosto na convexidade da técnica
e durante o teu sono injusto
o teu cabelo sangra copiosamente
entre o pus e o design
da dor e do atrevimento
de estares tão longe de mim.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

eros em três actos e um final feliz


Antonio Canova "Eros e Psique" Museu do Louvre Paris

de princípio a fotografia
um quadro e uma janela
apenas um vidro partido
a invisível poeira do espírito
um sopro indefinido de origem

a tridimensional melodia na forma de uma ave
um piano uma dança interminável
viagem original e válida

um moinho encantado de velas esguias
e as montanhas que sendo altas e frias
deslizam suaves como rios
rios lentos tão lentos como lagos
em planícies claras e pertinentes

- os sonhos brilham

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a passadeira vermelha aproxima os rostos
de uma bússola intempestiva
magnetismo
norte sul este oeste
os pólos atrasam-se e fundem
- os dias cansados de serem dias
- as noites
o encontro

- lábios grandes e o fogo

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na suspensa vibração de um acorde
a lua lança um grito
simbiose suprema de um uníssono
completo e único

- a noite uma laranja de crepúsculo

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

os espelhos de Vesúvio





Ácidas são por vezes as palavras
gastas na intensidade das chamas, em cinzas
vertigens de ramas duvidosas sem equilíbrio.

Ácidas e corrosivas são por vezes
sulfúricas e cáusticas
desabafos de alma que se preferem ver de fora
e não como presas
dentro das artérias mais sanguíneas
a despertar venenos de mercúrio
quando de valiosa prata e não de lava
são os espelhos de Vesúvio.

sábado, 21 de agosto de 2010

White birds


Franz Marc " Birds " 1914


I would that we were, my beloved, white birds on the foam of the sea!
We tire of the flame of the meteor, before it can fade and flee;
And the flame of the blue star of twilight, hung low on the rim of the sky,
Has awakened in our hearts, my beloved, a sadness that may not die.

A weariness comes from those dreamers, dew-dabbled, the lily and rose;
Ah, dream not of them, my beloved, the flame of the meteor that goes,
Or the flame of the blue star that lingers hung low in the fall of the dew:
For I would we were changed to white birds on the wandering foam: I and you!

I am haunted by numberless islands, and many a Danaan shore,
Where Time would surely forget us, and Sorrow come near us no more;
Soon far from the rose and the lily, and fret of the flames would we be,
Were we only white birds, my beloved, buoyed out on the foam of the sea!


As aves brancas

Desejava, amada minha, que fôssemos aves brancas na espuma do mar
Já nos cansa o meteoro, a sua chama, e ainda não se apagou, e não desapareceu;
E a luz da estrela azul, suspensa no crepúsculo à beira do céu,
Despertou em nós, amada minha, uma tristeza que talvez nunca morrerá.

É um cansaço que emana desses sonhadores, o lírio e a rosa, cobertos de orvalho;
Ah, não sonhes com eles, amada minha, com o meteoro cuja chama corre,
Ou com a luz dessa estrela azul cintilando tão baixo no crepúsculo:
Pois as aves brancas sobre a errante espuma queria ver-nos transformados: tu e eu!

Inumeráveis ilhas me encantam e encantam-me as inumeráveis costas de Danaam,
Onde certamente o Tempo nos haveria de esquecer e jamais em nós a dor se albergaria;
Em breve, longe do lírio e da rosa, longe das tormentosas chamas viveríamos
Se aves brancas fôssemos, amada minha, aves brancas flutuando na espuma do mar!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

o poder das cinzas


(retirada da internet)



tenho a perfeita consciência do poder das cinzas
a não existência enquanto corpo, enquanto a pele, o osso.
nesse dia em que os pulmões sequem o ar
e o sangue se torne lento e grosso
não mais pedirei licença ao mundo
será tarde para que a lua desça
serei eu que subo

habitarei uma cratera no infinito do tempo
e no silêncio serei mudo -

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Cedência


Kasimir Malevitch " A rapariga das flores" 1930

Nunca em ninguém vi
tanta doçura nas palavras
tantas sedas de mil lábios

E o tempo passa
coloca no tecido carcomido
a traça
e o espaço
que alarga e definha

a textura de lã grossa
em pó fino

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

as asas de um aeroplano


Paul Klee "lugar de encontro" 1932


estou insuportável meu amor neste refúgio de silêncio
desço no crepúsculo de Agosto a rua inclinada
que leva ao mar.
aqui e ali alguém sem ruído.
a brisa suave treme e imana morna
breve volta.
na sequência de um instante coloco mentalmente
uma estrada de tijolos que leva além de um arco-íris.
contrariamente ao vulgar, o improvável desconhecido
- um rosto plano, um vestido branco
uma pequena cesta pendente oscila na descida;
malmequeres, dedos de fetos, bagos de mirtilos.

estou insuportável meu amor na inquietude de uma ausência
agora penso nas linhas de um carro eléctrico
amarelo, eléctrico amarelo que revejo
metálico e ronceiro, lentamente
não soa a campainha, no fim, no término
de um cordão de pele
sem condutor nem paragem, a paisagem
desfocada e difusa.

estou insuportável meu amor
corro, agora corro
fecho a porta com estrondo.

no jardim crescem heras
escondem as rugas das pedras
do outro lado a glicínia
agora esparsa de flores violetas
daqui a um mês as amêndoas
daqui a oito o aroma doce doce doce.

estou insuportável meu amor
instável e inseguro, que tolo
de braços á volta da figueira como um aeroplano.

já é tarde
no plátano um pio de coruja aproxima a noite
o sino bate doze badaladas
e a lua crescente permanece naquele canto
a iluminar o vidro antes de adormecer .

estou insuportável, insuportável meu amor
mas a sombra de uma estrela abraça-me a testa
e as arestas em vez de duras e pontiagudas
são de veludo
e uma voz embala-me os ouvidos

ondas, ondas, ondas , o som dos búzios.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

BEBER ( ou porque bebo )

Bebo consciente,
bebo p´ra me libertar da solidão
aquela que paira dentro de mim;
Bebo p´ra me sentir feliz
ou porque me encontro feliz;
....
Bebo porque sou livre,
e nunca p´ra me apoderar da liberdade!
....
Bebo p´ra compreender o ser humano
que tanto me desilude,
bebo p´ra sentir de forma efémera
que o mundo afinal é feliz,
e que ele permite por instantes
que meus sonhos sejam viáveis!
....
Bebo porque sou livre
mas nunca p´ra me apoderar da liberdade!
....
Bebo para fugir à rotina
que me desnorteia e trucida,
mas não bebo por paixão
ou sequer por dependência;
Bebo por lúcido desafio
p´ra sentir que vale a pena a Vida;
Bebo p´ra sentir que há um amigo
ao dobrar de cada esquina,
bebo p´ra mitigar a tristeza
e p´ra compensar a incredulidade,
o desamor e a frustração.
....
Mas juro que acima de tudo
bebo porque sou livre,
não p´ra me apoderar da liberdade
nem viver o desvario
de uma qualquer perversa emoção!

(António Luíz, in "Poesia pragmática: Poemas de vidas ",
a publicar em 2010 ).

alma


Kasimir Malevitch "complexo pressentimento de figura a meio corpo com camisola amarela" 1932

não é um campo aberto
não correm cavalos selvagens
não ressalta a claridade do dorso
a escurecida crina
o brilho largo e nervoso
das narinas, do pescoço.

quieto. quieto por dentro.
não me mexo.
as mãos cobrem-me os ombros
a cabeça descaída como as aves tristes
que descansam e arfam, arfam um pouco.
quieto. quieto e doente.

mesmo que se apresente o cientista
o médico, o cirurgião exacto
não há cura, não há láudano efectivo

apenas a evidente filosofia:
não há cura para a alma
quando está quieta, parada
sem corda
de uma roda de relógio

mas o tempo avança -

domingo, 15 de agosto de 2010

boas férias boas

só para deixar desejos de boas férias e saudades para todos,
um abraço cheio de amizade ao José,
e o beijinho especial da Ana Luísa

raquel patrairca
quinze.agosto.doismiledez

chuva no pó

o som que se ouve
quando as gotas de chuva
tocam no chão
nas tardes quentes de verão
cheira a memória
a qualquer coisa
que um dia houve
mas agora não

uma companhia
meio ilusória
feita de silêncio
e de pó
onde as gotas
de chuva
tocam o chão
nas tardes frias de verão

e eu
fico só
raquel patriarca
vinteeseis.agosto.doismilenove

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Ode ao futuro


Salvador Dali "Paisagem" aguarela 1914


Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.

Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

a cortina




no lugar parado da estrada
observo e escuto o outro lado do vidro
a cortina onde tudo fica:

uma mesa pequena, uma toalha bordada
uma bandeja clara e o espaço diagonal
de dois livros de capas esbatidas, antigos;
e não tem qualquer importância
porque a resistência é das letras
- a sua arte.

as roupas diminutas de uma noite curta
as pupilas erigidas na retina
e a música suave de toada
uma balada de cordas oscilantes
no auréola circular de uma guitarra
árabe, bonita, lugar de Alhambra.

as palavras dessa música
nem todas transportam significado
mas algumas abrem clareiras
o vislumbre de sombras
isoladas e profundas, são únicas
embalam e deslumbram
naquele verso que nos toca mais no fundo
e descobrem a pura certeza sem alarme
como um barco a deslizar, a tocar os braços
os abraços
sem ondas ferozes de mar.

não era preciso nomear, não foi
não é preciso nomear
esta linha recta e paralela
de um entendimento saltitante no olhar:

substituímos as migalhas das torradas
pelo sabor ainda fresco de um sumo de frutas
um odor de um pouco de menta
a vitamina C , o doce ácido da laranja
e o desejo ainda aceso, claro como a lua
- uma luz que prende, une, enleia, funde, imana.

vestimo-nos depois
e houve algum tempo para sentir
os primeiros sons da cidade
as primeiras aves das árvores
e algumas rotinas solidárias:
deitar flocos desbotados ao peixe
acariciar os gatos de pêlo encurvado;

as ondas da rádio tocavam uma peça de jazz
permanecemos um pouco junto à janela
enquanto se despediu a madrugada:
os primeiros autocarros, o eterno movimento
pessoas de sapatos altos, de sapatos rasos
o burburinho.

saí primeiro, abatido como um flamingo
sem qualquer líquido na secura do caminho.
vestias uma camisa branca
lembro-me da transparência.

seguro agora na mão fechada
como um símbolo
o outro lado do vidro, a cortina
onde tudo fica -

são precisamente sete e trinta.
o tempo não parou, não recua
é indigno -
Espaço vazio
Passos em silêncio
Dor sem tempo só