sábado, 1 de maio de 2010

O Binômio de Newton


Vénus de Milo - Louvre


O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó
(O vento lá fora.)

Álvaro Campos

sexta-feira, 30 de abril de 2010

o prédio no meio dos outros prédios


Cidade de S.Paulo no Brasil



-----------------------"o eu é um movimento na multidão"
-----------------------Henri Michaux


o prédio no meio dos outros prédios
tem paredes tem alicerces
mas não tem braços.

por vezes assim a noite
de um lado e de outro lado
os ombros férreos apertados.

o prédio no meio dos outros prédios
tem janelas e uma porta clara iluminada
nas costas o tijolo cego
de costas um outro prédio.

por vezes assim são os lugares do medo
cintilantes na claridade frontal
sombras de cera e chama ténue
no interior de um quarto vasto.

o prédio no meio dos outros prédios
quando chove conduz as águas nas telhas
para o espaço contínuo de um pequeno rio:
é esse o objectivo
que as águas se juntem se tornem maciças
no som no ritmo na procura dos caminhos.

por vezes assim é o pensamento
que acrescenta esta e aquela sequência
e a consequência de um sentido uma linha
feita de asfalto granito ou terra batida.

há uma mão gigante atrás de cada indivíduo
recolhendo a linha como um fio
enrola enrola agarra o novelo
como um muro sem porta
aponta o caminho em frente sem reverso:
- não há regresso continua!

o prédio no meio de outros prédios
pode ganhar braços comos as árvores
arrancar raízes no orgulho de ter pernas
abrir janelas e andar pelo meio das ruas
dos carros autocarros e bicicletas
até encontrar um parque, muitas árvores
desfolhar cortinas –

por vezes assim são os quadros os poemas a escrita
a revolta de um grito -

Do amor ufano e descortês




Não, nem mesmo inscrito em aulas de cavalaria
lendária, cursos de idealização à distância,
seminários sobre as últimas consequências
de estar vivo eu pude permanecer.

Os livros diziam que os teus olhos criavam um campo magnético
sinistro, e que depois matavam o macho que havia nos meus.

Todas as cartas de amor se revelaram de leitura difícil,
aplicada a prisão preventiva em todos os meus interesses.

Contei uma a uma as tardes de hipocrisia geral,
tardes de folclore, sorriso inacabado e detergente.
Meu deus: o que eu tentava permanecer
sem permanecer!

Agora chega.
As minhas mãos têm GPS integrado
mas tão longe das tuas estão
que não há satélite que as enuncie
na rua onde vives, na casa onde moras
no quarto onde dormes, talvez vestida de drama
de amor ufano e descortês.

Nem a espada, nem a bússola assintomática que comprei
nem o mapa do tesouro do teu corpo pixelizado no meu
no momento em que liguei a câmara e todas as luzes doeram
fizeram com que eu permanecesse
no ecrã e na tua relativa ucronia.

Quixote tinha razão: havia com certeza um vírus qualquer
na forma como os moinhos de vento agitavam as suas velas
sem se verem.
E claro: um rocinante de 1987, cheio de ferrugem,
dejectos de memória imprópria, cinzas e infiltrações
de todo o tipo, nunca fora muito favorável
às prosaicas esperanças das raparigas.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Vapor de água

O amor é óbvio como a dor
Lavra rios na pele
Desfaz o meu olhar em luz

Luz e água
Um mar
Grande, gigante, sem nome

O infinito não tem cor
A morte é óbvia como a dor
Grande, gigante, sem nome

A tarde triste morre em noite
As casas estão mudas
O meu amor é óbvio como a dor

Preso, atado e mudo
Fecha os olhos
Cheios de luz e água

Grande, gigante, sem nome
No deserto do nada
As casas cantam alto

Hoje o meu amor morreu —

Poética*





Faz um mundo.
Desfaz um mundo.
Agora faz Undo.





* Esta fórmula também serve o interesse dos leitores.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

a hemoglobina que fervia




começou de forma suave.
abriu-se de uma porta leve na adolescência
idade em que os medos se admiram sem ciência
de uma alergia persistente uma febre de fenos
na intensa cor de um nascimento.

usava botas altas e mascava chiclete.
ele jogava ping pong. perdeu um ponto.
agarrou a bola fitando o rosto.
olhou-a de cabelos dentro de um lenço.
convidou-a para um bolo.
juntou no inconsciente o melhor dos seus momentos
as graças imprecisas e diferentes de um non sense.

a continuidade foi o estranho estado
em perfeita dessintonia com as tempestades
que lançava excessos de águas. os pés molhados. navegava.

não é normal abraçar candeeiros sorrir a todos os estrangeiros.
não é normal a ausência de malícia no sonho de outras raparigas.
partilhava relvas e abria asas. O equilíbrio estável de mãos e braços
em cima de um muro que não tinha limos seguro liso.

começou o lugar primeiro e a reprimenda
de todos os outros que o julgavam louco. A luz.
a luz emanava sem corrente. Um ar de primavera
mesmo a escorregar no gelo a partir o pulso no tombo
a tinturar o joelho. Tudo em movimento. Luminoso.
os lábios ora totalmente calados nos espaços
ora em velocidade na presença da libelinha.

manhã tarde fim de tarde e um crepúsculo no mar.
de noite os olhos sempre abertos redondos como os mochos
vermelhos como os peixes que sabiam de cor toda a água
e rodavam rodavam à volta por cima das gavetas da cómoda
e sonhavam sonhavam os corais a leveza das algas
flutuantes e mergulhadas.

os olhos abertos abertos nas frases dos diários
e a distância de uma noite longa que separava o dia
e a surpresa de um postal de uma pequena flor silvestre
mais de branco e verde ou mais colorida e larga
como as pétalas de amores perfeitos e lírios e lilases.
tantas tantas que antes de mudarem de mãos parecia que falavam
orgulhosas nos seus vestidos breves de máxima importância.

algodão e algodões. doces. fofos. de forma suave.
tão suaves. fofos. doces de uma nova culinária.

mais tarde tentou justificar as continuidades do estranho estado
de um outro tamanho de um outro modo.
sem o conseguir utilizou muita e muita tinta
coloriu todos os sonhos de forma analítica
registou nos cadernos princípios e complexas
numerologias cronologias e terminologias.
tentou a tese e a forma científica. Deu-lhe um nome:
a hemoglobina que fervia

não consta que tenha havido conclusão
nem ao menos a sequência de um índice
uma argola fechada nas margens
uma capa mais dura a transparência de um plástico

mas é certo que lê e relê e procura sempre
a explicação alquímica do estranho estado -

A tradição de estar triste




Da perspectiva da morte
a vida é como se nunca
tivesse havido.
É isto que nos ensinam na escola
dos cépticos:
a morte dispensa planos
e apresentações.

A morte tem os horários parecidos
com os nossos e os corolários
mergulhados na desfeita.
A morte é arte de crianças hipersones
uma greve de fantasmas vestidos a preceito
para nenhum dia seguinte nem depois.

A vida fabrica apenas paliativos genéricos
e soluções onde a nitidez é corrompida
pelo hálito quente da especulação.
Também simpósios onde a tarde acentua
a tradição de estar triste
sem pára-quedas nem efeitos laterais
manhãs previamente mordidas
mesmo quando as frutas são as mesmas

o sabor um dia pode revoltar-se
a morte deixar de ser fiel
tornar-se tudo de repente
num lugar barato e habitável.

Ensaio sobre a cara

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Conseguiram-lhe anular a expressão, vidrar o pulso: manter o cabelo na cor original - injectar na sua cara, características de todos os homens vivos, a expressão era viva, mas anulada, a sua cara era multiforme: a de todas as pessoas, mas ninguém a conseguiria descrever. Quem a olhasse de frente morria, e aí, no centro experimental de Dallas, todos os matemáticos, químicos e médicos conseguiram recriar o mito de Medusa, e torná-lo real e prático, uma mulher pronta a entrar em acções de resgate. Alterada geneticamente para que a sua cara matasse, se calhar foi sempre a cara que matou - descrevia Kluge , em "Ensaios sobre a Cara" baseado em estudos anteriores e multidisciplinares que tinham sido publicados na Universidade de Hamburgo no início dos anos oitenta: "História da Cara" publicação em três volumes de difusão rara, recentemente digitalizada embora em língua alemã na Biblioteca Digital da Universidade. Só alguns poucos estudantes de sociologia ou antropologia alemães a citavam em frases curtas nas suas teses de mestrado.
E a mulher que chamaram "Maria" para dificultar a interpretação, em guerra, de um mito pagão, foi conduzida de helicóptero até outra base e depois acompanhou os exércitos na primeira invasão do Afeganistão. Ia ser usada apenas em casos de buscas a domicílios, emboscadas de assalto e de salvamento de reféns, em espaços fechados. Entrava primeiro ela; depois as tropas só entravam quando todos os que a tivessem olhado na cara, já estivessem mortos. Uma mulher penitenciária, alterada geneticamente para que o seu olhar e cara toda matasse. Uma Medusa de cara nuclear, mas de viso irreconhecível. As operações mantiveram-se secretas apesar de algumas investigações de jornalistas, logo anuladas. Era legal, a cara da Medusa matar, era legal as armas matarem, era legal a própria guerra depois das legitimações na cimeira das Lajes. Era sobretudo legal que a cara matasse, porque a cara sempre matou: (muitas vezes por causa dela, muitas vezes ela própria)

Maria sonhou que caminhava para o mar, por um caminho estreito, e várias raparigas de cabelo curto caminhavam também para o mar numa espécie de romaria radioactiva porque o céu estava roxo e todas cantavam e dirigiam-se para o mar que no sonho estava branco, espesso e gorduroso, as ondas criavam-se pequenas porque todo o mar era de um branco gorduroso, como o leite condensado, e as raparigas de cabelo curto aproximaram-se para encheram de mar os ouvidos e com os pés no líquido, enchiam de mar o sexo e lavavam os seios e do mesmo líquido, faziam gel que punham nos cabelos e na cara até ficarem sem cara: Esse era o sonho - Um pescador tinha-lhes avisado que nesse ano as baleias se tinham vindo de mais, de uma forma nunca vista, e as baleias macho produziam esperma em quantidade e havia nesse ano um cio sub-aquático como nunca tinha havido e o esperma em breve encheu todo o mar e tornou-o branco e espesso e gorduroso e quente, e as raparigas vinham para a praia para meterem mar no sexo e nos ouvidos e para perderem a cara e a identidade: a sua - Para ganharem todas as outras - Todas as outras caras dizia o pescador. Todas tinham uma sugestão doce na boca e sabiam que era também esperma de baleia primitivas, mas ainda vivo e quente, aquilo que corria dentro dos cactos alucinatórios do norte do México. O transe e a alucinação eram naturais e marinhos.

Maria foi acordada para uma missão, no norte do país, era preciso descobrir um dos maiores plantadores de papoilas do Afeganistão. Um dos maiores transformadores de flores em heroína. As tropas precisavam de alucinação e Maria devia estar com o homem, para que este a olhasse na cara, depois de revelar o local.

Aconteceu depois a Maria, ser violada por vários soldados americanos, que usavam capacetes de espelho que cobriam toda a cara, violadores Perseu, Medusa via vários espelhos - a penetração anal, no sexo, na boca, o sémen a escorrer pelas pernas reflectido num dos capacetes de espelho, e Medusa a ver-se a si própria - cara que mata, e por isso morre. E aqui o autor termina a ficção e relembra que ela, a ficção é a Criadora da realidade. Relembra uma passagem de "Pequenos animais sem expressão" de David Foster Wallace em que um apresentador de um concurso televisivo norte americano, vai ao psicanalista, e lhe conta o sonho que teve na noite anterior - Passava em frente a um restaurante pouco aconselhado num beco escuro - Espreitou por uma pequena janela que dava para a cozinha, e viu um cozinheiro cheio de tédio, e numa sertã que estava ao lume viu a sua própria cara: A ser frita. O cozinheiro esperava.
Há outros casos semelhantes do tratamento da cara na Literatura Ocidental, sobretudo da cara tratada como factor-devir: de Fuga: A cara como perda dela própria - Algo que foge, algo que está em fuga. É o caso de um conto de Papini em que uma das personagens secundárias que vêm falar com Gog é descrito com uma cara triangular.
"A cara em fogo" é tratada por vários autores - O escritor (todos os homens - produtores de comunicação - normalmente com problemas nela própria) precisa de perder a identidade como refere Jean Deleuze - Perder a cara - A identificação - Para ganhar todas as outras. A partir da Baixa Idade Média que na iconografia cristã Deus deixa de ser representado como um indíviduo, uma pessoa (com rasgos de velho, cabelo branco, aspecto de sábio) e a doutrina cristã assume-o como algo incorpóreo. Ao contrário da cara de Cristo, que é procurada ao longo da História por sudários e cuja evolução na iconografia é a própria evolução do Cristianismo enquanto doutrina, que se reforma. O que não tem cara assusta; não existe - Se Deus não a possuí na iconografia é mitificado e visto como simples energia ou simplesmente - tudo quanto fluí.
A cara como espelho da alma é adulterada, entra em rede, é tratada em photoshop e é causa de morte.
Outro caso interessante é o referido no conto - "O crocodilo - relato de duas faces como a moeda do Vaticano" da obra "O Espelho do Túnel" que escrevi no ano passado. A História é verídica e retrata a vida de um homem toxicodependente que numa prisão mexicana, é mandado mutilar por um traficante de droga do interior da penitenciária, porque este não lhe paga. A mutilação a que recorre este traficante, depois de vários avisos é sempre a mesma, ordenar que os seus homens deitem água a ferver por cima do que incumpre o pagamento: Água a ferver no corpo nu, que origina queimaduras de elevado grau em todo o corpo, e a consequente desfiguração - O homem tratado no conto "personagem principal" - Fica com a alcunha na penitenciária de "crocodilo" por ter a pele às manchas. O homem sai da prisão e procura emprego e não o consegue. É encontrado poucos meses depois o seu corpo morto no rio, porque contínua a consumir cocaína e é morto numa tentativa de assalto.


Poderia ter sido tratada a história da cara, como a história do degelo, uma cara que derrete e se transforma em mar e faz aumentar o nível das águas, que as cidades marítimas temem: Uma cara que cobre toda a Holanda de água quente, ou uma cara que entra pela Basílica de São Marcos em Veneza e depois cobre Veneza toda, e os funcionários camarários apressam-se a retirar a cara incómoda do degelo da sua praça, para que os turistas venham - Tudo é cara e boca e olhos e identificação. Outra possível História da Cara seria ela ser um sol líquido que pinga: E por entre a cara líquida os homens passam nas suas vidas, ou para sul ou para norte, entre o sol líquido que cai entre eles. O cavalo marinho não se pensa a si próprio: a nuvem humaniza. O estado de fusão - de reconhecimento é o único possível - O Amor é perder a cara, e ter a cara do outro, porque se a sente. É comum depois do sexo, os amantes sentirem-se com a cara do outro. E no evoluir da relação são cada vez mais as expressões do outro que o amante adquire. O mesmo se passa com os afectos: A cara como abstracção - Algo a ser transformado, a estar condenado (beneficamente para a fuga - fuga de si próprio). A anulação da interpretação e a vida exclusivamente da sensação. A cara é sensação e recriação / revitalização / Potência - Mas isto apenas quando há relações de afecto. Caso contrário a cara torna-se inexpressiva, sem ânimo (alma) sem cor. E qualquer relação (anula) a identidade para Criar uma nova: Como aparece numa das cenas do filme "Nostalgia" de Tarkovsky, escrito na parede: 1+1 = 1.
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No Afeganistão cortam as orelhas às pessoas que ouvem música estrangeira, pode um afegão ouvir toda a discografia do Chico Buarque, de Sonic Youth e Gardel, depois cortam-lhe as orelhas e desenrolam os fios das cassetes e pegam fogo às cassetes e aos fios das cassetes:
E o homem contínua com memória mas sem conseguir ouvir e ouve para dentro de si a música que é tão internacional como a saudade ou as formigas. E ouve dentro de si as formigas a caminharem enquanto os exércitos americanos invadem o seu país: Os soldados passam de jipe, com a música muito alta em colunas enormes na parte de trás dos jipes, rock americano e os homens que têm orelhas ficam com ódio aos Estados Unidos. Os homens que não têm orelhas não ficam com ódio a nada.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Hoje ponho a leitura em dia, que bem que sabe.

Também queria agradecer o tão bem que soube o jantar!



13

um prato

um copo

partilhado



tão bem

passado, surpresa

e sentir



que bem calhou

vinil, guitarra

olhar-vos nos olhos

poemas

nos vossos sorrisos

sentir também o meu



que bem que soube

um doce sal

e as gargalhadas



que se for banal dizer

sermos diferentes poemas

um colorir sentidos



saudades de futuro

que sei que tenho!

El más pequeno


Cartier Bresson


Es el más pequeño de todos, el último.
Pero no le digáis nada; dejadle que juegue.
Es más chico que los demás, y es un niño callado.
Al balón apenas si puede darle con su bota pequeña.
Juega un rato y luego pronto lo olvidan.
Todos pasan gritando, sofocados, enormes,
y casi nunca le ven. Él golpea una vez,
y después de mucho rato otra vez,
y los otros se afanan, brincan, lucen, vocean.
La masa inmensa de los muchachos, agolpada, rojiza.
Y pálidamente el niño chico los mira
y mete diminuto su pie pequeño,
y al balón no lo toca.
Y se retira. Y los ve. Son jadeantes,
son desprendidos quizá de arriba, de una montaña,
son quizá un montón de roquedos que llegó ruidosísimo
de allá, de la cumbre.
Y desde el quieto valle, desde el margen del río
el niño chico no los contempla.
Ve la montaña lejana. Los picachos, el cántico de los vientos.
Y cierra los ojos, y oye
el enorme resonar de sus propios pasos gigantes por las rocas bravías.

Vicente Alexandre

segunda-feira, 26 de abril de 2010

para que os peixes saibam


Amadeu Sousa Cardoso "Entrada"


nunca por nunca de qualquer modo
quis pálpebras tristes janelas fechadas
sem asas sem aves sem árvores.
corro.corro. junto ao jardim da buganvília
à fonte da boca d'água e cara de teatro.
desço.desço. a rua inclinada
até à margem só de madrugada
de orvalho sem vivalma. e grito. grito.
para que todos os peixes saibam
que nunca. nunca por nunca
quis teus olhos tristes
os braços como espadas
os ombros altos de muralhas
e os lábios a sete chaves
sem o sopro das palavras.

Dying Mannequin




Tens quilómetros de vida debaixo do vestido
restos de documentos históricos célebres
praças chumbadas a geometria descritiva
e ainda assim nódoas negras belíssimas
lesões que dão flor na primeira primavera
de cada mês
rotundas iluminadas por minúsculas intempéries
a circulação condicionada nas artérias
de maior afluência e imperícia.

Tens, em certa medida, um apartamento
com vistas para a intermitência de riscos
e promessas de enciclopédia na pele
onde a vastidão e as areias convencem
e os olhos repetem estranhas litografias:
uma caixinha consagrada à convergência
de um homem melhor no seu mistério
a noite, como uma jóia irrequieta qualquer
dentro da caixinha
e principalmente um pedaço de juventude
acrítica e leve
posta à prova num livro entreaberto
censurado pelo vento e lido pela líbido
e os direitos autorais do teu suor
agora sou eu que os protejo e incito.

domingo, 25 de abril de 2010

Xilofone

Vou desfazendo estrelas com as mãos
Enquanto partes

d-o-r
deposito o pó em vasos
em embriões ingénuos de passado

um testamento de memórias na pele
que a água não apaga
não lava

nem as lágrimas são estrelas
— a ausência é um planeta isolado

distante o sol deseja não ser nada
só luz
perder o corpo

vou desfazendo estrelas com as mãos
enquanto partes

p-ó
nascem flores do pó
com pele de seda e água

a matéria presa
—surda
só nada em mim
quando partes

só estrelas
só sonho
s-ó

liberdade


Salvador Dali



álvaro escrevo-te hoje para agradecer
aquela carta de caligrafia tão delicada.
não se usa escrever já asssim as frases.
cortam-se as palavras nas pressas de internet.

apreciei que dissesses que me amavas
e que levasses cinquenta linhas e dez parágrafos
até que tomasse a devida nota que não sonhei
não foi por acaso aquela mão no ombro
e o beijo na face deslocado quase no canto
no canto dos lábios.

álvaro chega por volta das sete, sete e um quarto
e traz a espingarda - como bem sabes é metáfora
que gosto de todos os animais até da víbora
e não gosto de caça. matas-me e eu mato-te
quando chegares.

álvaro traz a mala verde e três mudas de roupa branca
t-shirts calças de ganga as botas fortes de borracha
dois chapéus de palha e uma enxada.ah! e não te esqueças
álvaro três diários.

álvaro vamos para o campo
só voltamos daqui a dois anos -

maria -

Roll bus roll

O autocarro é estéril
A noite calma e ébria

O portátil é o teu gira-discos

O meu amor é portátil
Descartável
Reciclável

O teu amor é um autocarro

O teu amor é o gira-discos
Portátil
Ébrio

O amor é o infinito _ reciclável

O amor é uma calma ébria
Uma noite portátil
Um gira-discos descartável

O meu amor é a tua música.