quinta-feira, 18 de março de 2010

bullying


olivier taugourdeau "janela"

qual o sinal que prenuncia o facto?
caiu uma pedra de um muro sobre a estrada
era azul e amarela na casa abandonada
agora na cor cinzenta,abstracta.
na inclinação de luz um vidro inteiro é branco
e ninguém já existe por detrás da janela;
a ruína de um quadrado, um campo de batalha
depois a escola

depois na escola as pedras não falam alto
silvam na forma de dedos maiores
uma toada por sob uma cruz de cimento
e um lamento : mas porquê?
e depois o silêncio, sempre, sempre o silêncio

passado muito tempo surge a pergunta:
como será o fundo de um rio quando quer o mar?
e os peixes?

alguns peixes sabem voar

e depois o silêncio -

paraíso


Zena Robinson "o espírito do jardim" 1997

"com o correr dos anos, observei que a beleza,
tal como a felicidade, é frequente. Não se passa
um dia em que não estejamos, um instante, no paraíso."
Jorge Luís Borges "Os conjurados"

madrugada:o fumo branco de um universo
onde o mar tem barcos de bosque e erva
raios reflexos de neve e mármores impuros

os corvos voaram sem ruído na lua breve

linha a linha a semente
o segredo múltiplo das orquídeas

a derme treme nua
cresce uma voz de terra profunda
mística como um hino na sombra:
acredito em ti mulher
em ti...em ti...em ti...

frequente instante -

terça-feira, 16 de março de 2010

Canção da mulher descalça


A imagem lendária de uma mulher descalça
não porque as mãos estejam sempre descalças
mas porque os pés são as mãos das nossas desinibições.
A cidade não está preparada para a leveza
que uma mulher desempenha descalça
e oferece a sua espada à doença simpática
do amor.

Só os pobres e os pássaros
e as ambulâncias a vêem passar
porque nunca cicatrizam onde
a necessidade vende melhor.
Na perspectiva da cidade dos homens
uma mulher descalça põe a morte em perigo
e a vida depois.


Os homens ignoram, pelo menos três vezes por dia,
esta erótica crepuscular.
E vão para o Café e discutem gases
política póstuma e cerveja com futebol.

domingo, 14 de março de 2010

Tempo fluvial


Paul Rubens "O rapto de Europa" 1629

Se eu definisse o tempo como um rio,
a comparação levar-me-ia a tirar-te
de dentro da sua água, e a inventar-te
uma casa. Poria uma escada encostada
à parede, e sentar-te-ias num dos seus
degraus, lendo o livro da vida. Dir-te-ia:
«Não te apresses: também a água deste
rio é vagarosa, como o tempo que os
teus dedos suspendem, antes de virar
cada página.» Passam as nuvens no céu;
nascem e morrem as flores do campo;
partem e regressam as aves; e tu lês
o livro, como se o tempo tivesse parado,
e o rio não corresse pelos teus olhos

Nuno Júdice

sábado, 13 de março de 2010

3D



A três dimensões
Esticava a ponta dos dedos
Para desviar as legendas

Quando era grande
Alice não sabia se queria o dandi

Bebe-me! Morde-me!respira fundo! Segue o coelho!
A chave? O chapeleiro louco
Versace, Gautier, Valentino, Galliano
Costura uma saída.

Alice tem tempo! Alice tem tempo!
Alice tem tempo de dizer que não queria.
Acabou o filme.

Grãos de milho rolam na alcatifa -

sexta-feira, 12 de março de 2010

Democracia




quanto ao tempo um pouco mais louro e quente
o adeus do inverno no caule esguio dos junquilhos.
amarelo o sorriso quanto à política.
dizem que PECados ninguém tem;
história antiga de Cerejeira que não usava brincos.

empurra para o lado
tapa o bocejo da confirmação um pouco cinza
na extinta Assembleia de credos "Pap'açorda"

o senhor presidente
silêncio. serenidade. filosofia.
Sócrates sempre soube, mas era o outro.
o gato tem sete vidas, "Free" as the wind.
TeVI à escuta do jornalista.

o senhor presidente
ar circunspecto de economista.
ainda não é hora de bomba atómica
(talvez para o ano, quem sabe
no meio do terreiro do paço;
um cogumelo mágico.
depois lava-se tudo no Tejo
e daqui a mil anos
volta o ùltimo dos moicanos)

quanto ao governo, procurador, casa pia
liberdade,censura - opinião nemhuma.

a justiça moribunda que decida -

terça-feira, 9 de março de 2010

Z


Georges Braque "O português"


As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro

e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento

e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços

a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.

António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas"

segunda-feira, 8 de março de 2010

8 de março




humildemente
na consciência da história
erros
erros inscritos como raios
o paradigma
de uma tempestade de silêncios.

flua o rio, a seiva,a mãe árvore
o incenso da verdade
que derrube as montras gastas
de palavras apertadas
que derrame o néctar
de um fio de horizonte;
um anel de fumo branco
do fundo da terra;

a essência de mãos e dedos
como escudo das espadas dos desertos
e das sombras -

domingo, 7 de março de 2010

dezoito e trinta


eucalipto (retirado da internet)


às dezoito e trinta de um dia de domingo
uma a uma as folhas de eucalipto
o seu sentido e um aroma
intenso, opulento de natura;
liberto fumo de uma lei pura
às dezoito e trinta.
domingo.

folhas de eucalipto
ferventes, nebulosas, sobrenadam
dentro de um lago de oriente
resultam fumo
gotas condensadas
lâmpadas de imagens de Aladino
voadoras, como danças indescritas
extremos quadros, alegorias
e uma tontura às dezoito e trinta -

acordes de gitanos, harpejos, harpejos
e uma nota de piano
lânguida, suspensa -
um desejo de domingo.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Súmula



Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.
Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas.
E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente eu pudesse acordar.
Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento.
Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.
- Era uma casa – como direi? – absoluta.
Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.
As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
— Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.
Era uma casabsoluta – como direi? -
um sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.
- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar.
O leite cantante.
Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.
Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.
Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


Herberto Helder, Poemacto II

quinta-feira, 4 de março de 2010

Lancaster


Lake district Lancaster (retirado da internet)



no lugar de montanhas e lagos
dois mil metros, quadrados
passo a passo
perto da cidade de Lancaster.

o gelo escorregadio no ano 84
um lugar parado, longo, largo.

nas brumas de pura lã
o recorte de altitude na distância;
um redil de água, uma moldura cinzenta
um espelho branco

as maçãs frias e um fogo de silêncio -

Vivaldi - Inverno

quarta-feira, 3 de março de 2010

O segredo do rio


Torner "quatro quartetos - quatro estações (a T.S.Eliot))" 1979


como se fosse um intervalo
na exortação dos crocodilos

entre dois rios e outras noites
um deus de pequenas coisas
revela as horas de todos os nomes;
um jardim sem limites
em busca do tempo perdido;
o caminho de Swann.

a faca não corta o fogo
de 366 poemas de amor;
a luz da sua lucidez
passeando sob a brisa
de uma cidade invisível.

combateremos a sombra
de sentimentos à deriva

na outra margem da memória -

josé ferreira



Tradução de um roubo de palavras:

O segredo do Rio - Miguel Sousa Tavares

Se fosse um intervalo – Ana a Luísa Amaral
Entre dois rios e outras noites- "

Exortação dos crocodilos – António Lobo Antunes

O Deus das pequenas coisas – Arundhati Roy

As horas – Michael Cunningham

Todos os nomes – José Saramago

O Jardim sem limites – Lídia Jorge

Combateremos a sombra - “

Em busca do tempo perdido – Marcel Proust
O caminho de Swann "

A faca não corta o fogo - Herberto Hélder

366 poemas de Amor – Vasco Graça Moura

A lucidez do Amor – Tânia Ganho

Um deus passeando sob a brisa da tarde - Mário de Carvalho

As cidades invisíveis – Italo Calvino

Sentimentos à deriva – Yves Simon

Na outra margem da memória - Vladimir Nabokov

terça-feira, 2 de março de 2010

Porque - a melodia de pianos


Gerhard Richter "Betty" 1978


A nossa cosmografia não tem textura definida
Encosta o azul riscado das gangas nos ramos distraídos
Desliza o brilho acetinado nas sedas de Viena

Reinventa o subtil estado imaterial;
Não é névoa, nem água ou imóvel sólido
Impávido de ventos

Não sobrevive de silêncios
porque todas as melodias dos pianos
transbordam o impossível esquecimento -

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Porque

«Porque», de Sophia de Mello from blocsdelletres on Vimeo.




Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.